Evangelho, uma proposta política

JESUS MILITANTE – EVANGELHO E PROJETO POLÍTICO DO REINO DE DEUS (Vozes) me consumiu vários anos de pesquisas e leituras. É uma análise detalhada do Evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito, e no qual se inspiraram os evangelistas Mateus e Lucas.

Escrito em linguagem acessível, e até mesmo didática, tratei de evitar o “teologuês”, de modo que os leitores possam entender o que, de fato, Jesus veio nos propor.

Já no catecismo aprendemos que a palavra Evangelho significa Boa Nova. Mas que Boa Nova Jesus veio nos anunciar? Uma nova religião que, inspirada em seu testemunho, ficou conhecida como Cristianismo? Uma nova instituição religiosa chamada Igreja?

Jesus não teve a pretensão de fundar nada. Quis apenas nos transmitir que Deus nos criou, como registra o Gênesis, para vivermos em um paraíso. Se o projeto de Deus para a história humana foi subvertido pelo abuso de nossa liberdade – inclusive de rejeitar a proposta divina – uma segunda oportunidade Deus nos ofereceu ao se fazer presente entre nós na pessoa de Jesus.

Portanto, Jesus veio nos trazer uma nova proposta civilizatória, política, resumida na expressão Reino de Deus. Aliás, esta expressão aparece 122 vezes nos quatro evangelhos. E o vocábulo Igreja apenas duas vezes, e assim mesmo em um único evangelho, no de Mateus. Contudo, muito falamos de Igreja e pouco de Reino. Isso se explica por duas razões: a tradição cristã cometeu o equívoco de situar o Reino de Deus nas esferas celestiais, quando na proposta de Jesus figura em nosso horizonte histórico. E pelo fato de hoje em dia termos raros reinos, muitos deles meramente decorativos.

Ora, por que Jesus – tão amoroso e misericordioso – morreu cruelmente assassinado na cruz, a pena de morte dos romanos que ocupavam a Palestina no século I? Por razões óbvias: ele ousou, dentro do reino de César, anunciar um outro reino possível, o de Deus. Por isso o condenaram como subversivo. Assim, todos nós cristãos somos discípulos de um prisioneiro político.

A proposta civilizatória de Jesus se baseia em dois pilares – é o que ressalta o Evangelho de Marcos: nas relações pessoais, o amor, incluído o perdão; nas relações sociais, a partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. Portanto, a Igreja deveria ser o Movimento de Jesus, ou seja, o movimento que congrega seus discípulos dispostos a abraçar o exemplo de sua militância para instaurar, na história, o projeto político do Reino de Deus, no qual não haveria opressões e exclusões, nem devastação da natureza.

Este é o conteúdo de JESUS MILITANTE, no qual analiso os diferentes trechos de cada um dos capítulos do Evangelho de Marcos. O modo como Jesus rompeu com a religião esclerosada e fundamentalista do templo de Jerusalém; sua radical opção pelos pobres; suas críticas às injustiças sociais; seu repúdio à ocupação romana da Palestina.

Tudo isso reforça a certeza de que, em se tratando de Jesus, estamos diante de um paradigmático militante político em uma época em que ainda não havia discernimento entre religião e política, pois quem detinha o poder político tinha também o poder político e vice-versa. Espero que a leitura de JESUS MILITANTE nos faça compreender o caráter revolucionário da proposta de Jesus, e de como devemos dar continuidade à sua militância, imbuídos do propósito, não de ter fé em Jesus, mas de ter a fé de Jesus.

Religião e eleição

Em recente artigo, o teólogo Allen Dwight Callahan ressalta que, enquanto a Teologia da Libertação (TdL) quer mudar o mundo, a da Prosperidade quer mudar as pessoas. Nós, adeptos da TdL, fizemos opção pela galinha que, se for saudável, nos ofertará ovos de qualidade. Já os fundamentalistas optaram pelos ovos, que merecem  cuidados para que, no futuro, o galinheiro inteiro seja digno de bênçãos divinas… 

Outrora, a Igreja Católica acreditava também que chocar bem os ovos e cuidar dos pintinhos possibilitaria surgir galinheiros baseados nos mais elevados princípios cristãos. Criou uma rede mundial de escolas católicas que, ao evangelizar crianças e jovens, gestariam mais tarde adultos coerentes com a ética evangélica.

A prática, entretanto, comprovou o contrário, como acontece hoje em muitas Igrejas evangélicas fundamentalistas, cujos pastores são flagrados em corrupção.

Como bem assinala Callahan, “a tendência persistente do evangelismo é pactuar com o domínio do capitalismo e dos seus catalizadores políticos. A tendência geral, aliás, é para os evangélicos ajustarem sua fé e prática à economia política do capitalismo, por vezes reconhecendo as contradições perversas, nunca resolvendo-as. Nesse sentido, a religião evangélica negocia essas contradições em troca de um armistício precário com o regime capitalista. Atualmente, o evangelismo acomoda um capitalismo  voraz e destrutivo, e também  endurecido em suas formas cada vez mais misantrópicas e cleptocráticas, perpetrando crimes flagrantes.” 

Para Marx, que nasceu e foi educado dentro de um regime de cristandade, o Estado cristão prussiano de caráter luterano já havia se dado conta de que “o dinheiro é o vínculo que costura a vida humana, que cimenta a sociedade. (…) É a divindade visível (…), a prostituta universal.” (Manuscritos econômico-filosóficos) “O dinheiro é o deus entre as mercadorias” (Grundrisse). 

O poder de cooptação do sistema capitalista se mostra muito mais sedutor que os ensinamentos cristãos. Por isso, são inumeráveis os líderes políticos e empresariais educados em instituições católicas que, agora, se destacam como corruptos, nepotistas, arrivistas, cumpliciados com quem mantém trabalhadores em situação análoga à  escravidão, devasta florestas, sonega o fisco etc. Seus interesses capitalistas falam muito mais alto que os propósitos cristãos. Até porque adotam um procedimento no mínimo contraditório: são contra a legalização do aborto e aplaudem massacres promovidos por forças policiais; chamam de irmãos os fiéis de sua Igreja e não disfarçam o preconceito étnico; incensam as bem-aventuranças frisadas por Jesus, mas têm fome e sede de mais poder e riqueza. 

Se o catolicismo se instalou no Brasil de braço dado com os colonizadores, em cujas fazendas mantinham capelães que faziam vista grossa ao sofrimento dos escravos, os evangélicos aqui chegaram a partir de 1870, quando três mil vieram da Virgínia (EUA), convidados pelo Império. Traziam na bagagem uma cultura típica do sul dos EUA: racista, escravocrata e favorável à supremacia branca de perfil protestante. 

A hegemonia católica, entretanto, predominou durante décadas. E, na primeira metade do século XX, ensaiou possuir um braço político que, talvez, viesse a se transformar em partido: a Liga Eleitoral Católica (LEC). Os bispos indicavam os candidatos que mereciam fé. Porém, o Partido Democrata Cristão surgiu para tentar cumprir esse papel de braço político da hierarquia, embora sem o êxito de sua matriz inspiradora, a Itália.

Foi na década de 1970 que os evangélicos trouxeram ao Brasil a Teologia da Prosperidade (TdP), a bordo do pentecostalismo. Ela havia sido politicamente exportada pelo órgãos de inteligência dos EUA, como a CIA, com a finalidade de deter o avanço das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Teologia da Libertação. 

Em maio de 1980, o governo dos EUA, presidido por Jimmy Carter, emitiu o documento Santa Fé I, denominado “Uma nova política interamericana para os anos 80”. E no governo George Bush pai o documento Santa Fé II, intitulado “Uma estratégia para a América Latina nos anos 90”.

Os signatários desses dois documentos consideravam que “o regime democrático é aquele no qual o governo tem a responsabilidade de preservar a sociedade vigente de ataques externos ou da intromissão do aparato estatal permanente.” Ou seja, evitar a influência comunista e reduzir ao máximo a intervenção do Estado na economia.

No contexto da Guerra Fria, os documentos alertavam para a “ofensiva cultural marxista” inspirada pelas obras de Gramsci: “Para os teóricos marxistas, o método mais promissor para a criação de um regime estatista em um ambiente democrático se obtém mediante a conquista da cultura da nação. De acordo com este modelo, todos os movimentos marxistas na América Latina têm sido encabeçados por intelectuais e estudantes, e não por trabalhadores.” 

E no Documento Santa Fé II se afirma que, nesse contexto, “deve ser entendida a Teologia da Libertação, uma doutrina política disfarçada como crença religiosa com uma significação antipapal e contrária à livre empresa, com o propósito de debilitar a independência da sociedade.” 

Embora a hierarquia católica tenha apoiado o golpe militar de 1964, a repressão a militantes das CEBs, incluindo bispos, a partir do AI-5 (1968) houve um refluxo no apoio ao governo militar. A CNBB se distanciou gradativamente da ditadura e a atuação progressista de novos cardeais, como Dom Aloísio Lorscheider e Dom Paulo Evaristo Arns, identificados com o profetismo crítico dos bispos Dom Helder Camara e Dom Pedro Casaldáliga, tornou a Igreja Católica objeto de repúdio da ditadura, o que favoreceu o movimento das CEBs e a TdL. 

O processo de abertura política e a agonia da ditadura, em fins da década de 1970 e início da de 1980, possibilitaram ao catolicismo progressista apoiar a fundação do PT e de movimentos populares de âmbito nacional, como a CUT e o MST. 

Na década de 1980, que marca o fim do regime militar e a redemocratização do Brasil, a atuação política de João Paulo II, eleito papa em 1978, se irmanou ao reacionarismo de Ronald Reagan nos EUA e Margareth Thatcher no Reino Unido. Isso provocou o arrefecimento das pastorais populares da Igreja Católica e da TdL. À medida que os setores populares se viram desprovidos da presença das CEBs, este espaço passou a ser progressivamente ocupado pelos evangélicos da Teologia da Prosperidade. Já nas eleições de 1986, 33 deputados federais e senadores formaram a Bancada Evangélica, enquanto os católicos na política institucional não chegavam a se articular como bancada. As pautas conservadoras, entretanto, aglutinavam no Congresso evangélicos, católicos e espíritas. Criaram-se, assim, as condições para, em 2018, eleger Bolsonaro, um político ultraconservador, católico rebatizado evangélico no rio Jordão.

Callahan conclui seu artigo frisando que “tudo isso implica uma realidade que qualquer liderança, de qualquer partido, ignora por sua conta e risco: a importância da formação política em nível de base, ensinada incansavelmente nas escolas dominicais e por ‘intelectuais orgânicos’ comprometidos com o bem-estar daqueles que sofrem com a barbárie do neoliberalismo atual. É hora de candidatos, campanhas e enxurradas de propaganda política — a hora exata para educar a base cristã não para o mal, mas para o bem.  É o momento de promover formação política progressista nas Igrejas evangélicas da periferia. Ou seja, uma formação política comprometida com o bem-estar daqueles que vivem sem socorro, sem segurança e sem certeza nas favelas e localidades  esquecidas pelos partidos progressistas. Ou seja, uma formação política que ensine a não perder o coração neste mundo tão sem coração, e a nos impregnar do espírito nesta época tão sem espírito.”

Esse desafio só será assumido e seu objetivo alcançado se os partidos progressistas admitirem que no povo  brasileiro a porta da razão é o coração e a chave do coração, a religião. Isso não significa abrirem mão de sua natureza laica, e sim abandonarem qualquer conduta antirreligiosa e voltarem ao trabalho de base junto ao povo crente. Do mesmo modo, cabe aos setores progressistas das Igrejas cristãs se desclericalizarem e retomarem a leitura da Bíblia pela ótica dos oprimidos, na linha do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), e reativarem, nos setores populares, as CEBs. 

Há um fator favorável nesse ano eleitoral: por mais que o Cristianismo conservador ressuscite o fantasma do comunismo e do falso moralismo (aborto, kit gay etc.), a população mais pobre enfrenta profundas dificuldades sociais e econômicas devido ao crescente desemprego, à alta da inflação, dos combustíveis, dos preços dos alimentos e dos aluguéis. Somam-se a isso a precarização dos serviços de saúde, o aumento exacerbado dos planos privados e as frequentes endemias em plena pandemia de Covid-19. Essa contradição é o tendão de Aquiles do discurso conservador. E, ao mesmo tempo, a brecha para que o discurso progressista dos partidos e das Igrejas identificadas com a Teologia da Libertação resulte em expressiva votação para candidatos antibolsonaristas.

Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.

O que fazer para eleger Lula

Há muitas razões para votar em Lula para presidente. A principal é tirar Bolsonaro do Planalto e reconstruir o Brasil demolido por essa aliança milicianos-centrão-fundamentalistas religiosos-fanáticos neofascistas-elite gananciosa. 

Não há que cantar vitória antes do tempo. Nada garante que Lula será eleito e, se eleito, que tomará posse. Ameaças de golpe pairam sobre a nação. E só há uma maneira de evitar essas graves ameaças à democracia: nossa mobilização!

O que fazer? Aqui enumero várias sugestões:

  1. Em suas redes digitais, organize Comitês Lula Presidente. Contate 5 pessoas, cada uma delas formará outro Comitê de 5 pessoas, e assim se fará a multiplicação geométrica. Nesses contatos, mantenha informações que reforcem a candidatura Lula e enfraqueçam, sempre mais, as candidaturas dos que são apoiados por milicianos.
  2. Evite formar Comitê com muitas pessoas. Há o risco de se ficar no debate interno e não se engajar em ações práticas e efetivas.
  3. Dê ao seu Comitê um nome simbólico: Chico Mendes, Margarida Alves, Luther King, Helder Camara, Vladimir Herzog, Tito de Alencar Lima etc.
  4. Cada Comitê Digital deverá denunciar as notícias falsas (fake news) e relembrar como o Brasil avançou nos 13 anos de governos do PT. Assinale as conquistas: combustível mais barato; cotas nas universidades; Luz para Todos; Minha Casa, Minha Vida; correção anual do salário mínimo acima da inflação; demarcação de terras indígenas; Comissão da Verdade; soberania nacional; Programa Mais Médicos etc.
  5. Inclua na campanha eleitoral o candidato progressista para o governo do Estado, para o Senado, e candidatos a deputados federais e estaduais. Precisamos eleger a base parlamentar que dará sustentação do governo Lula no Congresso Nacional. 
  6. Abasteça de conteúdo seu Comitê através do email: comitespopulares2022@gmail.com
  7. Promova, por iniciativa de seu Comitê, iniciativas lúdicas e esportivas Lula Presidente: com skates, bicicletas, motos e carros; apresentações musicais nos bairros da periferia; debates políticos presenciais e nas redes; atos religiosos ressaltando como os mestres espirituais e as grandes tradições religiosas sempre defenderam a justiça e a paz. 
  8. Ignore provocadores e golpistas. Como aconselha Jesus no Evangelho de Mateus (7,6), “não joguem pérolas aos porcos”. 
  9. Anuncie o amor onde eles querem armas; paz onde querem conflito; respeito onde querem ódio; democracia onde querem ditadura; combate à desigualdade social onde querem tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. 
  10. Acesse e debata a Cartilha Projeto Popular para o Brasil: http://projetobrasilpopular.org/

É hora de deixar de ser espectador(a) da conjuntura política e atuar intensamente para salvar a democracia brasileira, cujo resgate, após 21 anos de ditadura militar, foi pago com o preço da vida, do sangue e do sofrimento de toda uma geração heroica que não teve tempo de ter medo e fez derreter os anos de chumbo.

Salvemos a frágil democracia brasileira!

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros.

Retrocesso Brasil

Em quase quatro anos de (des)governo Bolsonaro, o Brasil continua a andar para trás. De novo, a fome (33,1 milhões de pessoas), a insegurança alimentar, a inflação (há nove meses acima de 10%), o aumento dos combustíveis e da energia elétrica, o desemprego, a evasão escolar, a escalada dos juros, o endividamento progressivo das famílias (65 milhões de endividados), o retorno de doenças endêmicas. E poderíamos multiplicar os exemplos. Até a Covid dá mostras de voltar.

Quem anda seguro pelas ruas do Brasil? Hoje, o PIB do país é igual ao de 2013. Vinte e quatro anos de retrocesso! A produção de veículos automotores equivale à de 2006. A de eletrodoméstico retrocedeu 18 anos!

Desde o golpe parlamentar que derrubou a presidenta Dilma, o PIB engatinha em torno de 1,5% ao ano. Em 2013 o seu valor real per capita foi de R$ 44 mil. Segundo o Boletim Macro do Ibre/FGV, só em 2029 – daqui a sete anos – voltaremos ao patamar de 2013!

Em 2014, o Brasil comemorou sua saída do Mapa da Fome. Zerou as 9,5 milhões de pessoas (5% da população) que, diariamente, esperavam em vão um prato de comida. Hoje são 33,1 milhões de brasileiros em fome crônica (15% da população), mesmo índice de 1992. É a política da marcha à ré! O governo extinguiu o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar) e desmontou as políticas de proteção social.

Nos últimos 40 anos, nosso país avançara consideravelmente na escolarização fundamental das crianças. Agora, a evasão escolar na faixa de 5 a 9 anos é igual à de 2012. O aprendizado de matemática regrediu a 2007, enquanto o de português a 2011. Entre 2019 e 2021 o número de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler nem escrever aumentou 66%, passou de 1,4 milhão para 2,4 milhões. No segundo trimestre de 2021, o número de crianças e jovens, entre 6 e 14 anos, fora da escola atingiu o espantoso índice de 171%.

Bolsonaro, como demolidor, teve êxito sobretudo ao desmatar nossas florestas, em especial a Amazônia. Nesta região, a área desmatada era, em 2012, de 4.571 km². Em 2021, abrangia 13.235 km². E as motosserras continuam decepando árvores de madeiras nobres, graças ao incentivo governamental a grileiros, garimpeiros e fazendeiros que invadem áreas indígenas e de preservação ambiental. A falta de demarcação das terras indígenas e a transformação da Funai em Funerária Nacional dos ïndios abrem espaço ao ecocídio. O demolidor extinguiu o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e inviabilizou o Fundo Amazônia, de quase R$ 2 bilhões.

Ao contrário dos 13 anos de governo do PT, quando o salário mínimo era anualmente corrigido acima da inflação, Bolsonaro corrige abaixo. Assim, o consumo das famílias retrocedeu a 2015 e a indústria, a 2009, de acordo com as Contas Nacionais Trimestrais do IBGE. .

A troca do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil dobrou o valor com o piso de R$ 400, mas esvaziou o Cadastro Único que mapeia as famílias necessitadas. Isso significa que 700 mil famílias que ficaram fora do Cadastro se encontram, literalmente, ao deus-dará. E os recursos para adquirir alimentos da agricultura familiar, que somavam R$ 550 milhões em 2012, agora se reduzem a míseros R$ 53 milhões.

Como uma nação pode se desenvolver com tais índices? Como progredir se o crédito é mais caro, a renda familiar ficou reduzida, o mercado de trabalho está precarizado e milhões de brasileiros são empurrados para a pobretarização?

Cada dia o governo derruba mais um pilar da democracia brasileira. Além de fazer a apologia das armas e ignorar a gravidade da pandemia, agora em junho decidiu extinguir a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Só falta ao governo revogar a lei da gravidade, enquanto cantamos a música “Caranguejo”, de Latino, Alan & Alisson: “Caranguejo é quem anda pra trás / Se não deu valor / Então vai / Vai na paz e não volta jamais.”

É o recado que as urnas devem dar em outubro próximo.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

O maior condomínio de luxo do mundo

Não sei quantos amigos meus têm contato direto com os pobres, além de faxineiras, cozinheiras, garagistas etc. Mas quase todos sabem que faço ponte entre pessoas muito pobres e/ou excluídas e o mundo dos remediados e ricos. Com frequência, promovo campanhas, com a de Quaresma, e coleto cestas básicas, medicamentos e outros bens imprescindíveis.

A pobreza é aterradora e humilhante. Ninguém a escolhe. A rigor, o que existem são empobrecidos. Pessoas que foram levadas, pelas estruturas de nossa sociedade, a ficarem privadas de direitos básicos, como alimentação, saúde e educação.

Morei cinco anos em uma favela, em Vitória. E há décadas assessoro movimentos populares. Por isso conheço casos como o de dona Rosa, que nunca teve oportunidade de passar do segundo ano do ensino fundamental. Empregada doméstica (sem carteira assinada), casou e teve cinco filhos. O marido, desempregado, deu pra beber. E espancá-la. Rosa se separou e… foi despedida do emprego porque passou a levar o filho mais novo, de dois anos, por não ter com quem deixá-lo. Agora sobrevive da solidariedade de vizinhos e amigos.

Em novembro de 1989 caiu o Muro de Berlim. Em outubro, estive em Berlim Oriental. Vi a muralha desabar. E brotou a grande esperança de que, a partir de então, o mundo não mais teria muros segregadores.

Vã expectativa. Dois acontecimentos fizeram surgir novos muros: a queda das torres gêmeas, nos EUA, a 11 de setembro de 2001, e a crise dos refugiados em 2015, quando um milhão deles ocuparam a Europa.

Como estrutura física dois muros se destacam: o erguido por Israel para segregar os palestinos, e o que a Casa Branca estende na fronteira dos EUA com o México (3.145 km) para tentar conter a onda migratória. Segundo Frank Jacobs, atualmente há pelo menos 70 fronteiras muradas em todo o mundo.

A União Europeia é, hoje, o maior condomínio fechado do mundo. Outros países também trancam as portas, como Japão, Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul. Esse seleto grupo de países, incluídos EUA e Canadá, abriga apenas 14% da população mundial e, em 2009, possuía 73% da riqueza global. Os 86% da população mundial extramuros sobrevivem com apenas 27% da renda total.

Dentro do condomínio, a renda média mensal é de 2.500 euros. Fora, apenas 150 euros. As 50 melhores cidades do mundo em qualidade de vida estão dentro do condomínio.

A guerra da Coreia, na década de 1950, rachou a península coreana em duas. A zona desmilitarizada, que separa a Coreia do Sul da Coreia do Norte, e serve de “muro”, se estende por 248 km. Ela é considerada intransponível, a ponto de os desertores do Norte preferirem escapar pela fronteira com a China.

No norte da África se destaca a cerca de fronteira que separa as cidades espanholas de Ceuta e Melilla do território de Marrocos. Toda em arame farpado e construída em 1993, a cerca, equipada com sofisticados sensores, tenta deter o fluxo de migrantes da África subsaariana.

O Muro de Evros, edificado em 2012, separa a Turquia da Grécia e impede que imigrantes ilegais acessem por ali a União Europeia.

A Índia constrói, atualmente, a cerca de 4.000 km – o Muro de Bengala – que a separa de Bangladesh, sob a alegação de evitar a entrada de contrabandistas e terroristas. De fato, ali o fluxo migratório se caracteriza por fuga da pobreza e das mudanças climáticas.

 Algumas barreiras são entre bairros, como os Muros de Paz que, em Belfast, na Irlanda do Norte, separa as comunidades católicas/nacionalistas das comunidades protestantes/loyalistas. O maior deles, com 1 milhão de tijolos, divide a propriedade protestante Springmartin do Parque Católico de Springfield.

No Brasil proliferam condomínios fechados, como Alphaville, em São Paulo, e o AlphaVilla, em Belo Horizonte. No Rio, eles se multiplicam sobretudo na Barra da Tijuca, em cuja porta se ergue uma réplica da Estátua da Liberdade…

Um dos projetos dos bilionários para desfrutarem com tranquilidade de seus excessivos luxos é construir ilhas móveis nas quais teriam seus condomínios privados. Com a vantagem de se moverem pelos mares do mundo, escaparem das leis e se protegerem de qualquer risco de assaltos ou sequestros. Isso enquanto não conseguem colonizar o planeta Marte e transferir realizar lá suas utopias paradisíacas.

Contudo, o muro mais maciço e intransponível se situa no coração humano. É o preconceito, o fundamentalismo, a discriminação e a arrogância que mais criam barreiras entre os seres humanos e cimentam as gritantes desigualdades sociais.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Tom vermelho do verde” (Rocco) sobre massacres indígenas na Amazônia.