Feliz Ano-Novo

Por que desejar Feliz Ano-Novo se há tanta infelicidade à nossa volta? Será feliz o próximo ano para os palestinos e os soldados usamericanos sob ordens de um presidente que qualifica de “justas” guerras de ocupações genocidas? Serão felizes as crianças africanas reduzidas a esqueletos de olhos perplexos pela tortura da fome? Seremos todos felizes conscientes dos fracassos de tantos tratados de proteção ambiental para salvar a lucratividade e comprometer a sustentabilidade?

O que é felicidade? Aristóteles assinalou: é o bem maior a que todos almejamos. E alertou meu confrade Tomás de Aquino: mesmo ao praticarmos o mal. De Hitler a madre Teresa de Calcutá, todos buscam, em tudo que fazem, a própria felicidade.

A diferença reside na equação egoísmo/altruísmo. Hitler pensava em suas hediondas ambições de poder. Madre Teresa, na felicidade daqueles que Frantz Fanon denominou “condenados da Terra”. 

A felicidade, o bem mais ambicionado, não figura nas ofertas do mercado. Não se pode comprá-la, há que conquistá-la. A publicidade empenha-se em nos convencer de que ela resulta da soma dos prazeres. Para Roland Barthes, o prazer é “a grande aventura do desejo”. 

Estimulado pela propaganda, nosso desejo corre o risco de exilar-se nos objetos de consumo. Vestir esta grife, possuir aquele carro, morar neste condomínio de luxo – reza a publicidade – nos fará felizes.

Desejar Feliz Ano-Novo é esperar que o outro seja feliz. E desejar que também faça os outros felizes? O pecuarista que não banca assistência médico-hospitalar para seus peões e gasta fortunas com veterinários de seu rebanho, espera que o próximo tenha também um Feliz Ano-Novo? 

Na contramão do consumismo, Jung dava razão a São João da Cruz: o desejo busca sim a felicidade, “a vida em plenitude” manifestada por Jesus, mas ela não se encontra nos bens finitos ofertados pelo mercado. Como enfatizava o professor Milton Santos, acha-se nos bens infinitos.

A arte da verdadeira felicidade consiste em canalizar o desejo para dentro de si e, a partir da subjetividade impregnada de valores, imprimir sentido à existência. Assim, consegue-se ser feliz mesmo quando há sofrimento. Trata-se de umaexperiência   espiritual. Ser capaz de garimpar as várias camadas que encobrem o nosso ego.

Porém, ao mergulhar nas obscuras sendas da vida interior, guiados pela fé e/ou pela meditação, tropeçamos nas próprias emoções, em especial naquelas que traem a nossa razão: somos agressivos com quem amamos; rudes com quem nos trata com delicadeza; egoístas com quem nos é generoso; prepotentes com quem nos acolhe em solícita gratuidade. 

Se logramos mergulhar mais fundo, além da razão egótica e dos sentimentos possessivos, então nos aproximamos da fonte da felicidade, escondida atrás do ego. Ao percorrer as veredas abissais que nos conduzem a ela, os momentos de alegria se consubstanciam em estado de espírito. Como no amor.

Feliz Ano-Novo é, portanto, um voto de emulação espiritual. Claro, muitas outras conquistas podem nos dar prazer e alegre sensação de vitória. Mas não são o suficiente para nos fazer felizes. Melhor seria um mundo sem miséria, desigualdade, degradação ambiental, políticos corruptos!

Essa infeliz realidade que nos circunda, e da qual somos responsáveis por opção ou omissão, constitui um gritante apelo para nos engajarmos na busca de “um outro mundo possível”. Contudo, ainda não será o Feliz Ano-Novo.

O ano será novo se, em nós e à nossa volta, superarmos o velho. E velho é tudo aquilo que já não contribui para tornar a felicidade um direito de todos. À luz de um novo marco civilizatório há que superar o modelo produtivista-consumista e introduzir, no lugar do PIB, a FIB (Felicidade Interna Bruta), fundada na economia solidária.

Se o novo se faz advento em nossa vida espiritual, então com certeza teremos, sem milagres ou mágicas, um Feliz Ano-Novo, ainda que o mundo prossiga conflitivo; a crueldade, travestida de doces princípios; o ódio, disfarçado de discurso amoroso.

A diferença é que estaremos conscientes de que para ter um Feliz Ano-Novo é preciso abraçar um processo ressurrecional: engravidar-nos de nós mesmos, nos virarmos pelo avesso e deixarmos o pessimismo para dias melhores.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

Missa do Galo

O ano, se bem me lembro, era 1955. Nas férias de verão, Nando, treze anos, e eu, onze, fomos enviados por meus pais à casa de Isá Guinle Paula Machado Libanio e Nelson Libanio, no Rio. Nelson era primo em primeiro grau de minha mãe. Assemelhava-se a Omar Sharif pelo porte alto, os cabelos pretos cheios, o rosto encorpado. Trazia um bigode bem cuidado e falava manso, com entonações abertas.

Filho de meu tio avô, Samuel Libanio que, em Minas, ensinou medicina a Guimarães Rosa e Juscelino Kubitschek, Nelson seguiu a carreira do pai e jamais abandonou o consultório. Terminado o curso, a formatura estendeu-se em viagem à Europa. No correio de Paris, esbarrou em Isá, moça franzina cuja aparência não denunciava sua origem aristocrática. Da língua comum nasceu o encanto e o amor os fez marido e mulher.

Isá, entre irmãos, era a única filha de Celina Guinle e Lineu Paula Machado. Sua fé cristã, apurada pela ótica francesa, livrou-a dos salões e das futilidades. Nutria-se de Maritain, De Lubac, Mounier, a ponto de convencer a família a investir numa editora que divulgasse no Brasil o que havia de mais avançado na teologia europeia: a Agir.

Quem visse Isá e Nelson juntos juraria que ele era o nobre e ela, a plebeia. Garboso, gestos comedidos, ele fumava com o charme de Humphrey Bogart em Casablanca. Trajava ternos brancos de linho ou casimira, e acalentava a mineirice que o distanciava de ambições e enlevos sociais.

Os óculos de Isá adelgavam ainda mais seu rosto fino e acentuavam sua vocação intelectual. Trazia o sorriso sóbrio, porém radiante, de uma luz que refletia sua consistência de espírito. Seus valores morais sobrepujavam, e muito, os pecuniários. Era módico o conforto da casa em que habitavam em Botafogo. Mormente se comparada aos requintes do palacete neoclássico da rua São Clemente, dotado de elevador e capela, hoje transformado em Casa Firjan. Ali crescera Isá.

O Vera Cruz, trem que ligava Belo Horizonte ao Rio, todo fim de ano trazia Nando e eu à acolhida do casal, na rua Guilhermina Guinle. A casa em que vivia, em estilo moderno, tinha dois pavimentos. No térreo, áreas sociais e, acima, suítes e quartos. Entre a sala de jantar e o jardim, retalhado pela piscina, um alpendre forrado de plantas. Era o melhor lugar da casa. Ali, refestelado em cadeiras de vime, dei minhas primeiras tragadas. Não resisti à tentação das cigarreiras de prata abarrotadas de cigarros Kent.

Nando e eu, na noite de Natal, íamos à missa do galo na matriz de São João Batista, na rua Voluntários da Pátria. Não era como hoje, que mais parece missa da galinha ou do pinto, celebrada muito antes da meia-noite. Culpa da falta de fé, dos bandidos ou da nossa ansiedade de abrir os presentes e devorar a ceia? O espírito litúrgico, mais enraizado, dava importância às festas do calendário cristão.

Missa do galo sem comunhão era aniversário sem bolo. Confessávamos ao padre os escrúpulos, o despertar do sexo, pequenas mentiras, birras que ficavam na conta de brigas. Três pai-nossos, três ave-marias e pronto!, estávamos reconciliados com Deus, malgrado o débito com o purgatório.

Mandava a Igreja que se fizesse jejum pelo menos três horas antes de se aproximar da mesa eucarística. Exceto água. Jejum na adolescência era um suplício, sobretudo naquela casa equipada com três geladeiras repletas de fiambres, queijos, compotas, sorvetes, doces e geleias. Quem sabe o sacrifício não valesse mil anos de indulgência!

Para bons quitutes, Nando tinha faro pantagruélico. Enamorou-se de uma torta coberta de chocolate que desfrutava lugar de destaque na geladeira da copa. Fomos à missa com a torta a aguçar-nos imaginação e apetite. O rito era em latim e o padre celebrava de costas à assembleia. Fora a beleza dos cânticos, nada distraia-nos da expectativa do maná que nos aguardava em casa. Se a comunhão trazia o céu à Terra, a torta com certeza nos remeteria da Terra ao céu. Pronunciado o Ite missa est, saímos céleres pela noite quente de Botafogo, onde o que havia de mais alto, abaixo das estrelas, eram as copas frondosas das árvores.

Passava de uma da madrugada quando fomos abrir os presentes. Isá, já recolhida, gritou do quarto: “Não deitem sem lanchar”. Nando retirou da geladeira nossa maçã do Paraíso e, solene, pousou-a sobre a mesa da copa. O Menino Jesus já havia nascido, o galo cantado, os sinos repicados e as ceias devoradas. Restava apenas saciar o nosso abissal apetite juvenil.

Cortou-se a primeira fatia: um creme. Várias camadas multicores, um bolo assorvetado entremeado de frutas cristalizadas e encharcado em licores. Veio a segunda: agora sim, o paladar, apaziguado, apreciava melhor. Não era uma simples torta. Era o manjar que os reis magos deviam ter ofertado no presépio. A cobertura crocante de chocolate derretia na boca e o olfato impregnava-se desse perfume de baunilha que nos remete à calda espessa e quente. Chocolate cheira a aconchego; agasalha-nos por dentro. A massa leve evolava-se na língua que, atenta, atinava com o licor, as nozes, os pistaches, as tâmaras e as cerejas. 
Não falávamos. No silêncio da madrugada, a curva do doce encolhia-se, fatia a fatia. Há que ser educado! Éramos hóspedes e convinha deixar um pedaço, o bastante para o casal anfitrião provar à sobremesa. Fomos dormir o sono dos eleitos.

Acordou-nos um grito. O sol ia alto, mas tínhamos ainda os olhos pesados. Clamor de perplexidade e desolação. Era Isá. Foi a única vez que a ouvimos estarrecida. Não vimos; enfiamos a cabeça nos lençóis.

A torta era a sobremesa que o casal levaria ao almoço de família no palacete da São Clemente. Viera de Paris, encomendada do Maxim’s, aos cuidados da Air France. O glutão do Papai Noel passara e não resistira… 

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mario Sérgio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papyrus), entre outros livros.

Espiritualidade e Religião

Abordar a espiritualidade é o meu propósito. Não falo em nome da Igreja Católica. Não tenho autoridade nem tal pretensão. Aliás, sou um católico que, todo dia, rogo a Deus fazer de mim um cristão.

O enfoque será católico, no sentido etimológico da palavra. O termo vem do grego καθολικός (katholikós), que deriva de kata (= sobre) e holos (=todo), através do todo, universal. No sentido atual, globalizado.

Até o surgimento do Cristianismo, as religiões se prendiam a seus limites étnicos, culturais e territoriais. O apóstolo Paulo universalizou a proposta de Jesus, estendeu-a a todos os povos sem precisarem renunciar às suas identidades culturais.

Por que espiritualidade e não propriamente religião? Espiritualidade e religião se complementam, mas não se confundem. A espiritualidade existe desde que o ser humano irrompeu na natureza. As religiões são recentes, datam de 8 mil anos.

A religião é a institucionalização da espiritualidade, como a família é do amor. Há relações amorosas sem constituir família. Há quem adote uma espiritualidade sem se identificar com uma religião. Há inclusive espiritualidade institucionalizada sem ser religião; é o caso do budismo, uma filosofia de vida.

As religiões, em princípio, deveriam ser fontes de espiritualidade. Nem sempre ocorre. Em geral, a religião se apresenta como um catálogo de regras, crenças e proibições, enquanto a espiritualidade é livre e criativa.

Na religião, predomina a voz exterior, da autoridade religiosa. Na espiritualidade, a voz interior, o “toque” divino.

A religião é instituição; a espiritualidade, vivência. Na religião há disputa de poder, hierarquia, excomunhões, acusações de heresia. Na espiritualidade predominam a disposição de serviço, o respeito para com a crença (ou a descrença) alheia, a sabedoria de não transformar o diferente em divergente.

A religião culpabiliza; a espiritualidade induz a aprender com o erro. A religião ameaça; a espiritualidade encoraja. A religião reforça o medo; a espiritualidade, a confiança. A religião traz respostas; a espiritualidade suscita perguntas. As religiões são causas de divisões e guerras; as espiritualidades, de aproximação e respeito.

Na religião se crê; na espiritualidade se vivencia. A religião nutre o ego, uma se considera melhor que a outra. A espiritualidade transcende o ego e valoriza todas as religiões que promovem a vida e o bem.

A religião provoca devoção; a espiritualidade, meditação. A religião promete a vida eterna; a espiritualidade a antecipa. Na religião, Deus, por vezes, é apenas um conceito; na espiritualidade, experiência inefável.

Há fiéis que fazem de sua religião um fim. Ora, toda religião, como sugere a etimologia da palavra (religar), é um meio de amar o próximo, a natureza e a Deus. Uma religião que não suscita amorosidade, compaixão, cuidado do meio ambiente e alegria, serve para ser lançada ao fogo.

Há que tomar cuidado para não jogar fora a criança com a água da bacia. O desafio é reduzir a distância entre religião e espiritualidade, e precaver-se para não abraçar uma religião vazia de espiritualidade nem uma espiritualidade solipsista, indiferente às religiões.

Há que fazer das religiões fontes de espiritualidade, de prática do amor e da justiça. Jesus é o exemplo de quem rompeu com a religião esclerosada de seu tempo. Vivenciou e anunciou uma nova espiritualidade, alimentada na vida comunitária, centrada na atitude amorosa, na intimidade com Deus, na justiça aos pobres, no perdão. Dessa espiritualidade resultou o Cristianismo. E mais importante do que ter fé em Jesus é ter a fé de Jesus.

O fiel que pratica todos os ritos de sua religião, acata os mandamentos, paga o dízimo e, no entanto, é intolerante com quem não pensa ou crê como ele, pode ser um ótimo religioso, mas carece de espiritualidade. É como uma família desprovida de amor.

A espiritualidade deveria ser a porta de entrada das religiões.

Frei Betto é escritor, autor de “Espiritualidade, Amor e Êxtase” (Editora Vozes), entre outros livros.

Lista de Natal

Neste Natal, não quero o Papai Noel das promoções comerciais, das ceias pantagruélicas, dos presentes caros embrulhados em afetos raros. Quero o Menino Jesus nascido no coração manjedoura, esperança acesa num pasto de Belém, Maria a cantar que os abastados serão despedidos de mãos vazias e os pobres saciados de bens.

Não quero o Papai Noel das lojas enfeitadas, do celofane brilhante das cestas de produtos importados, das garrafas em que os néscios afogam tristezas rotuladas de alegrias. Quero o Menino palestino em busca de uma terra onde nascer e viver, o Menino judeu arauto da paz na Terra aos homens e mulheres de boa vontade, o Menino poupado da estupidez das guerras.

Neste Natal dispenso abraços protocolares e sorrisos sob medida, sentimentos retóricos e emoções que encobrem a aridez do coração. Quero o amor sem dor, a oração só louvor, a fé comungada no sabor de justiça. Não quero presentes dos ausentes, a litúrgica reverência às mercadorias, a romaria pagã aos templos consumistas dos shopping centers. Quero o pão na boca da criança faminta, a paz que se alarga dos espíritos atribulados aos campos de batalha, o gozo de contemplar o Invisível. 

Neste Natal, não quero essa pavorosa troca de produtos entre mãos que não se abrem em solidariedade, compaixão e carinho despudorado. Quero o Menino solto no mais íntimo de mim mesmo, semeando ternura em todos os canteiros em que as pedras sufocam as flores.

Não quero esse ruído urbano que esmaga a alma, os ouvidos aprisionados aos telefones, o olfato condenado por odores insalubres, a boca em cascatas de palavras inúteis, despidas de verdade e sentido. Quero o silêncio indevassável de meu próprio mistério, o canto harmônico da natureza, a mão que se estende para que o outro se erga, a fraternura dos amigos abençoados pela cumplicidade perene.

Neste Natal, não me interessam as oscilações dos índices financeiros, as promessas viciadas dos políticos, os cartões impressos a granel, cheios de colorido e vazios de originalidade. Quero as evocações mais ternas: o cheiro do café coado de manhã por minha avó, o som do sino da matriz, o rádio Philco exalando sabonete Eucalol enquanto a babá me via brincar no quintal.

Não quero as amarguras familiares que se guardam como poeira nas dobras da alma, as invejas que me alienam de mim mesmo, as ambições que me tornam tristes como as galinhas, que têm asas e não voam. Quero os joelhos dobrados no átrio da igreja, a cabeça curvada ao Transcendente, a perplexidade de José diante da gravidez inusitada de Maria.

Neste Natal, não irei às ruas febris dos mercadores de bens finitos, não disfarçarei em algodão a neve que se amontoa em meus dessentimentos, nem prenderei falsas sinetas no frontispício de minha indiferença. Quero o segredar dos anjos, a alegria desdentada de um pobre reconhecido em seu direito, a euforia imaculada de um bebê acolhido em braços amados. 

Não viajarei para longe de mim mesmo, à procura de uma terra na qual eu próprio me sinta estrangeiro, falando um idioma cujo significado me escapa. Mergulharei no mais profundo de minha subjetividade, lá onde as palavras se calam e a voz de Deus se faz ouvir como apelo e desafio.

Neste Natal, não entupirei o meu verão de castanhas e nozes, panetones e carnes gordas. Nem deixarei o que me resta de sensatez resvalar pelo gargalo de uma bebida destilada. Porei sobre a mesa Deus fatiado em pão, a entornar de vinho cálices alados, e convidarei à festa os famintos de bem-aventuranças.

Não rezarei pela bíblia dos que professam o medo, nem acenderei velas aos guardiões do Inferno. Não serei o alpinista de cobiças desmedidas, nem o coveiro de utopias libertárias. Desfraldarei sobre o telhado a bandeira de sonhos inconfessos e semearei estrelas no jardim de meus encantos, lá onde cultivo essa doce paixão que me faz sofrer de saudades do que é terno.

Neste Natal, farei de minhas gravatas uma imensa corda para enforcar o cinismo das convenções sociais e descerei um por um os degraus dos podres poderes, até ingressar nos subterrâneos repletos de luz dos servos da esperança. Não sonegarei sentimentos e encantos.

Andarei nu pelas ruas para que todos vejam como o tempo enrugou delicadamente a minha pele, imprimiu flacidez a esses membros prenhes de história e cobriu-me de pelos alvos como o frescor da velhice coerente.

Não aceitarei os brindes de mãos que não se tocam, nem irei às ceias dos que se devoram. Não comerei do bolo que empanturra corações e mentes, nem deixarei que a aurora do Menino me surpreenda empanzinado de sono.

Alimentado como um pássaro, sairei na noite feliz guiado pela estrela dos magos; dançarei aleluias entre as galáxias da Via Láctea e, pela manhã, em cada raio de sol injetarei poesia para que todos acordem inebriados como se fossem borboletas livres do casulo.

Neste Natal, não direi adeus ao ano que finda, no qual recebi vida, fé e mais perguntas que respostas. Pisarei cuidadoso entre mortos inocentes e alentos frustrados, e haverei de conferir no monitor eletrônico quantos foram os dissabores disseminados pela fera disfarçada de humano.

De mãos dadas com o Menino, deixarei que as águas lavem o avesso de minha pele e, em seguida, caminharemos silentes rumo ao novo ano. E eu estarei com os olhos fixos no Menino para que seu verbo se faça carne em meu coração de pedra, cuidando para que ele cresça despregado da cruz, exaltado pela vitória inelutável da Ressurreição. 

Frei Betto é escritor, autor de “A Obra do Artista – uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.

Duas pessoas em uma

Observo com frequência pessoas intelectualmente eruditas, socialmente brilhantes, dotadas de insignes títulos acadêmicos e, na vida privada, irritadiças, destemperadas, emocionalmente infantis. Não suportam críticas e mendigam elogios. Nelas há uma nítida divisão (e conflito) entre o racional e o emocional.

Ao falarem a uma plateia, são magistrais, expressam-se com lógica, arrancam do fundo da memória consistentes citações. Mas, no espaço privado, parecem negar todo o discurso público: tratam os subalternos com indiferença ou superioridade, jamais indagam o nome do taxista ou do garçom, não têm a menor disposição para trocar um minuto de conversa com a faxineira ou a copeira do espaço de trabalho.

E muitas se declaram cristãs, discípulas de Jesus e, no entanto, cegas para a dignidade de uma pessoa em situação de rua. Elas encarnam o ditado: “Façam o que digo, não o que faço”.

Recebi no parlatório do convento a filha de uma senhora endinheirada. Veio contar que a mãe, ao se aprontar para a inauguração de uma galeria de arte, não encontrou sua corrente de ouro com um pingente de esmeralda. Após intensa procura pela casa, pressionou a empregada doméstica, há oito anos na casa, para devolver a joia. A mulher negou o roubo, mas todo o seu choro não foi suficiente para convencer a patroa de sua inocência. Sob uma chuvarada de ofensas, entre as quais abundaram xingamentos racistas, a faxineira foi demitida após a ameaça de que a patroa enviaria a polícia à casa dela.

A patroa em questão é professora emérita de prestigiosa universidade paulista.

Dia seguinte, a mãe contou o episódio à filha que acabara de retornar da Argentina. Perplexa, a moça reagiu: “Mãe, o colar está comigo. Não se lembra que me emprestou para eu ir ao casamento de fulana?”

Freud dizia que “não somos senhores em nossa própria casa”. Referia-se à impotência do eu em relação às pulsões. Se o consciente é racional, o inconsciente é pulsional, movido a emoções.

Não é fácil manter o equilíbrio entre razão e emoção. A razão habita o território do intelecto; a emoção, o do afeto. A razão pode me dizer que devo economizar dinheiro para gastos futuros. A emoção me induz a comprar algo que me onera, embora realce meu status social. O desafio é evitar que a razão leve a decisões desumanas e que a emoção provoque impulsos de consequências nefastas. O ideal é que a razão conduza a emoção, assim como o dono controla o seu cão.

Todos nós temos um lado apolíneo e outro, dionisíaco. Apolo e Dionísio eram filhos do mesmo pai: Zeus. O primeiro era o deus do bom senso e da razão; o segundo, da loucura e da transgressão. Manter o equilíbrio dessa polaridade é sinal de maturidade. Contudo, nem sempre é fácil casar sonho e realidade, delírio e sapiência, como Dom Quixote.

Para pessoas excessivamente emotivas que desabafam comigo aconselho a meditação. Conter a imaginação, segurar os impulsos, tentar ver a situação pela ótica do outro, sempre ajuda a não perder a serenidade e o equilíbrio. Já aos excessivamente racionalistas sugiro a música e, em especial, a dança. Dançar é fazer poesia com o corpo.

Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros.

Eles ainda estão aqui

”Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” Este conto de apenas sete palavras, considerado o mais curto da literatura universal, é do hondurenho Augusto Monterosso (1921-2003), premiado escritor. Como toda literatura de ficção, o conto é polissêmico, mas adquire especial significação no contexto latino-americano, cuja história é marcada por inúmeras ditaduras militares e civis. E se aplica perfeitamente ao Brasil, que nunca impediu que o dinossauro se fizesse presente.

Logo após sair da prisão, em 1973, em conversa com Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira que publicou meu primeiro livro, “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), opinei que a ditadura ainda haveria de durar ao menos 10 anos. Ênio me recriminou o pessimismo, tinha esperança de que ela não resistiria mais 5 anos. E ela durou mais 11 anos.

O dinossauro, entretanto, não foi abatido. Ao contrário de países como a Argentina, o Chile e o Uruguai, nos quais assassinos e torturadores foram severamente punidos – o que separou, nas Forças Armadas, o joio do trigo -, em nosso país o dinossauro continuou a ser alimentado por uma Justiça inócua. Aprovou-se uma lei esdrúxula, a “anistia recíproca”, em nome de uma suposta pacificação do país. Ora, como anistiar quem sequer foi denunciado, investigado, julgado e punido? Assim, assassinos e torturadores, autores de crimes hediondos cometidos sob o manto do Estado, permaneceram impunes. O dinossauro ainda estava aqui…

Foi essa impunidade – mãe de todos os crimes – que permitiu a eleição de Bolsonaro em 2018. O caldo de cultura do golpe militar de 1964 permaneceu aquecido nas academias militares. Os torturadores, exaltados como heróis. Enquanto os que lutaram pela redemocratização, considerados terroristas…

O dinossauro permanece alerta. E quando acordamos para um novo período democrático, com a terceira eleição de Lula a presidente, em 2022, as patas do dinossauro se moveram da porta dos quarteis para depredar os prédios dos três poderes da República, em Brasília.

Agora, investigações da Polícia Federal e a delação do tenente-coronel Mauro Cid comprovam que a trama golpista era muito mais profunda. Seria deflagrada com o assassinato de Lula, do vice-presidente Alckmin, e do ministro do STF Alexandre de Moraes. E lembro que ainda não conhecemos o teor da delação de Mauro Cid.

Pela primeira vez o dinossauro é intimidado. Foram indiciados 25 oficiais das Forças Armadas, entre quais Bolsonaro, que pretendiam derrocar o Estado Democrático de Direito. Militares que juraram, em suas formaturas, defender a Pátria e a Constituição e, no entanto, conspiraram para praticar atos terroristas e subverter a ordem democrática.

Agora resta a Justiça levar adiante os processos disciplinares, suspender o soldo, os proventos e todas as regalias dos indiciados, extinguir o Batalhão de Forças Especiais (Kids pretos) e obrigá-los a ressarcir os danos causados aos cofres públicos pelas mobilizações neofascistas que promoveram. E puni-los com o rigor da lei.

Caso a Justiça e o Congresso sejam lenientes, quando acordarmos o dinossauro ainda estará aos nossos pés, pronto para transformar o Brasil em Pátria armada, sob intensa salva de tiros.

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.