“Inicio pelo que não sou (e muitos julgam o contrário): padre e filiado a partido político”, diz Frei Betto no primeiro parágrafo de “O que a vida me ensinou”, um dos seus 60 livros publicados. Sempre sereno, olhar suave, aonde chega, todos querem ouvi-lo, perguntar, observar e, de certo tempo pra cá, fazer fotos, sejam eles intelectuais ou nem tanto, como aconteceu recentemente na Flip, em Paraty.

Embora a maioria pense o contrário, Carlos Alberto Libanio Christo (nome de Frei Betto) nunca foi filiado ao PT, embora tenha sido o coordenador de mobilização social do Programa Fome Zero, do primeiro governo Lula. O mineiro escreveu, aliás, dois livros sobre o ex-presidente, mas se afastou do governo, decepcionado com os rumos políticos do Partido dos Trabalhadores. Essa liberdade de pensamento e ação sempre foi valiosa para Frei Betto, que jamais quis trabalhar para a iniciativa privada e sempre teve uma inquietação intelectual muito grande.

Estudou Jornalismo, Antropologia, Filosofia e Teologia e foi, também, assistente de direção de José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina, na primeira montagem de “O rei da vela”, e crítico de teatro do jornal “Folha da Tarde” (1967/1968). Tanta independência acabou gerando sua prisão sob o regime militar: adepto da Teologia da Libertação e militante de movimentos pastorais e sociais, cumpriu quatro anos de prisão na ditadura.

Ganhador de dois prêmios Jabuti de Literatura, também não faltam a frei Betto prêmios por sua luta em defesa da ecologia e dos direitos humanos. Além de livros infantis, Frei Betto escreveu até sobre gastronomia, uma das suas paixões, não fosse filho de Maria Stella Libanio Christo, autora do clássico “Fogão de Lenha – 300 anos de cozinha mineira”. Bom de garfo, o título do livro de frei Betto já diz tudo: “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que tem um céu na boca”. Leia sua entrevista:

UMA LOUCURA: “Ter aceitado o convite de José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, para ser seu assistente de direção na primeira montagem de “O rei da vela”, de Oswald de Andrade, em 1967. A peça inspirou o movimento tropicalista e marcou a história do teatro brasileiro. Fiquei tentado a me tornar diretor de teatro.”

UMA ROUBADA: “Não ter me evadido do carro que me conduzia de Viamão a Porto Alegre, sob o pretexto de me esconder da repressão da ditadura militar, em novembro de 1969. Chovia muito e, por isso, não escapei, mesmo intuindo que o rapaz que dirigia o veículo me levava a uma cilada, o que se confirmou na manhã seguinte, quando fui preso. Os detalhes estão em meu livro “Batismo de sangue” (Rocco), cujo filme de mesmo título foi dirigido por Helvécio Ratton.”

UMA IDEIA FIXA: “Preferir correr o risco de me equivocar ao lado dos pobres a pretender acertar ao lado dos ricos. Por isso, toda a minha trajetória política e pastoral é ao lado dos movimentos sociais. Não acredito que aqueles que tiram proveito dessa sociedade tão desigual tenham interesse em mudá-la. A mudança sempre vem de baixo, daqueles que, de alguma forma, são vítimas das estruturas sociais injustas.”

UM PORRE: “Ulisses”, de Jaime Joyce. Tentei três vezes. Me parece mais ensaio literário do que romance. Gosto muito de seus outros livros, como “Retrato do artista quando jovem” e “Dublinenses”.

UMA FRUSTRAÇÃO: “O Programa Fome Zero ter sido enterrado pelo mesmo governo que o gerou. Ele tinha caráter emancipatório. Já o Bolsa Família tem caráter compensatório. O Bolsa Família é bom, mas o Fome Zero era ótimo, pois implicava mudanças nas estruturas sociais brasileiras e seu cadastro não era controlado pelos prefeitos, como ocorre hoje no Bolsa Família, e sim por Comitês Gestores eleitos em cada município pelos movimentos sociais.”

UM APAGÃO: “Ao ser interrogado pelos policiais da ditadura. Fiquei tão nervoso que deu um branco em minha memória, felizmente.”

UMA SÍNDROME: “Compulsão literária. Já publiquei 60 livros (vide www.freibetto.org) e não consigo passar mais de 24 horas sem escrever algo.”

UM MEDO: “Medo de trair a esperança dos mais pobres na busca de um outro mundo possível, de justiça e paz.”

UM DEFEITO: “Meu defeito é ser muito desorganizado no varejo, embora organizado no atacado. O quarto em que moro no convento é uma atração turística, tamanha a balbúrdia. Mas me acho lá dentro.”

UM DESPRAZER: “Desprazer é aparecer na TV ou me deixar filmar. Sofro de focofobia…”

UM INSUCESSO: “Não dedicar mais tempo à meditação. O que mais gosto na vida é orar e escrever.”

UM IMPULSO: “Tratar a cozinheira e a patroa, o garçom e o anfitrião do mesmo modo, com a mesma atenção e respeito.”

UMA PARANOIA: “Isolar-me 120 dias do ano só para escrever, quando me sinto criativo e me dedico melhor à oração, à leitura e à ginástica.”

Julho 2015 – Paraty – Flip