Aconteceu em uma escola da capital paulista. O professor de História do Brasil do 3º ano do ensino médio introduziu o tema do “Período Militar – 1964-1985”. Evitou a palavra “ditadura”. Discorreu sobre a deposição do presidente João Goulart, a mobilização de tropas pelas ruas, os cinco primeiros Atos Institucionais: cassação de mandatos, suspensão de direitos políticos, dissolução dos partidos e introdução do bipartidarismo, eleições indiretas etc.
Antes da segunda aula foi convocado à direção da escola. O diretor explicou que ele não poderia prosseguir com o tema, caso quisesse preservar o emprego. Um grupo de pais o acusava de fazer “doutrinação ideológica” de seus filhos.
O professor contra-argumentou. Frisou que não há nenhuma lição de história ideologicamente neutra. O enfoque da narrativa depende de quem se posiciona em torno do fato.
Para a elite paulista, homens como Fernão Dias Paes Leme, Domingos Jorge Velho e Raposo Tavares foram heroicos desbravadores do sertão brasileiro. Por isso merecem monumentos e seus nomes batizam importantes rodovias e logradouros. Para indígenas e negros escravizados, foram a versão colonial do Esquadrão da Morte rural.
Por que muitos livros didáticos ainda se referem aos conjurados mineiros como “inconfidentes”? Como disse Machado de Assis, “as palavras são como as moedas: quanto mais circulam, mais perdem o valor.” Mas não perdem a raiz etimológica. Inconfidência significa traição. Quem deu aos companheiros de Tiradentes a pecha de “inconfidentes” foi a Coroa portuguesa, por meio dos autos do processo judicial conduzido pela Devassa, como era chamada a investigação oficial da conspiração. Inconfidente é quem não merece confiança. Fosse hoje, a rainha Maria I denominaria a conjuração de “Deduragem Mineira”.
Contrário à censura imposta pela diretoria da escola, o professor se demitiu.
Inútil pais e escolas suporem que há alguma lição de história ideologicamente pura. Nem a história do calendário escapa, basta pesquisar por que o último mês do ano de doze meses se chama dezembro, que equivale ao numeral 10, e por que julho e agosto têm 31 dias. A dica são os imperadores Júlio César e Augusto.
Em uma sociedade tão desigual como a nossa a versão do opressor dificilmente coincide com a do oprimido. Lembro do padre francês que, recebido para jantar na casa de um casal dirigente de movimento católico, criou enorme constrangimento ao conversar na cozinha com as duas cozinheiras e saber que não tinham carteira assinada nem horário estabelecido.
Paulo Freire demonstrou que a versão do opressor costuma fazer a cabeça do oprimido, já que os detentores de poder, político e econômico, dominam os grandes meios de comunicação. Por isso, há tantos oprimidos que encaram o mundo pela ótica de quem os oprime, como o escravizado que saía da senzala para trabalhar e morar na casa grande.
O estudo curricular da História do Brasil é um acinte à própria história: há quem julgue que os colonizadores portugueses vieram trazer civilização do Brasil; as tropas brasileiras obtiveram honrosa vitória na Guerra do Paraguai; nossas etnias indígenas são incultas.
Por fazerem questão de ignorar Walter Benjamin, Michel Foucault e Eduardo Galeano é que em muitas escolas dos EUA a anexação imperialista de vastos territórios mexicanos, como Texas, Arizona, Califórnia e Novo México, no século XIX, é ensinada como simples expansão do país, a fim de cumprir seu “destino manifesto”, isto é, a missão histórica e divina de estender seu território até o Pacífico.
No país de Trump, como você acha que a Guerra do Vietnã é narrada nas escolas? Sim, há exceções, mas em geral não se admite a derrota das tropas da maior potência bélica do mundo por pobres camponeses cultivadores de arroz. Felizmente alguns professores ousam utilizar como livros de referência a obra de Howard Zinn, em especial “A People’s History of the United States” (“Uma história popular dos Estados Unidos”), que já vendeu mais de 1 milhão de exemplares.
A direita pode querer censurar escolas e professores. Jamais logrará apagar o sofrimento das vítimas e silenciar seu clamor.
Frei Betto é escritor, autor do romance sobre 500 anos da história de Minas Gerais, “Minas do Ouro”, entre outros livros.