Conto inserido na coletânea “20 contos sobre a pandemia de 2020”, por Rogério Faria Tavares, Belo Horizonte, Autêntica, 2020.
I
E agora?
Agora o quê, companheiro?
Estamos fritos. Esse povo conseguiu deter o nosso avanço em pouco tempo.
Ora, Corona, você sabe como os chineses são disciplinados. Funcionam como um exército. Quem libertou um país deste tamanho do colonialismo euronipônico, haveria de nos enfrentar com agilidade. E ainda mais agora, que contam com avançadas tecnologias que permitiram detectar com rapidez cada pessoa que conseguimos infectar.
Felizmente, caro Covid, logramos ultrapassar a muralha da China. Bem que você teve a brilhante ideia de nos introduzir nas equipes de resgate de estrangeiros que pousaram em Wuhan para levar de volta americanos, franceses e ingleses.
Mal sabiam eles que, ao penetrarmos na célula humana, em menos de vinte e quatro horas nos reproduzimos em cem mil cópias! Os humanos são a nossa salvação, Corona. Fora deles nosso prazo de validade é muito curto.
Sim, Covid. Segundo nosso Manual de Sobrevivência, podemos ter brevíssima vida útil em superfícies plásticas e metálicas. Mas fora da célula não temos salvação.
Nossa saída, agora, é emigrar. Vamos acertar o seguinte: eu viajo pelo mundo e você fica aqui monitorando, combinado?
Combinado, Corona.
II
Olá, Covid, como vão as coisas aí na Itália?
Maravilhosas! Giuseppe Sala, prefeito de Milão, declarou que não representamos nenhuma ameaça. Em poucos dias, nossos replicantes já fizeram um enorme estrago na Lombardia. São centenas de mortos a cada vinte e quatro horas e milhares de infectados.
Parabéns, Covid! E as outras regiões do país?
Tomaram precauções. A partir da experiência dos chineses, adotaram medidas preventivas rigorosas, o que dificulta a nossa disseminação. Todo mundo fica em casa, as ruas estão vazias e o comércio fechado. Todos usam máscaras e lavam as mãos diversas vezes ao dia.
Não é uma boa notícia, confesso. Embora sejamos resistentes aos mais potentes antibióticos, descobriram o nosso calcanhar de Aquiles – o sabão. Impossível suportar uma bolha de sabão. Estoura a nossa pele e nos leva imediatamente a óbito.
As máscaras, Corona, retêm as gotículas que nos transportam. Felizmente encontro aqui gente que não faz o uso correto delas e a todo o momento leva as mãos ao rosto.
Esses são os nossos aliados, Covid, considerando que temos apenas três portas de entrada no corpo humano – olhos, narinas e boca. Quanto mais colocarem as mãos no rosto, mais nos liberam o trânsito.
Avançamos também no Reino Unido, cujo primeiro-ministro andou nos desdenhando. Então, decidi infectá-lo. Foi parar num hospital público, onde esteve aos cuidados de uma enfermeira filipina e um enfermeiro português. Logo ele, o homem do Brexit, que defendia a privatização do sistema de saúde e a expulsão de imigrantes e refugiados do país!
Bem feito, amigo! Assim ele abaixa aquele topete despenteado. Quais seus planos agora?
Viajar a dois países cujos presidentes são nossos aliados – Estados Unidos e Brasil.
Excelente ideia, companheiro! Vá em frente!
III
Aqui nos Estados Unidos, caro Corona, nosso avanço colhe o maior sucesso! Comecei por Nova York, a fim de dar uma rasteira na petulância da cidade. Ela se julga o umbigo do mundo.
Então encontrou condições favoráveis?
Muito. O presidente Trump me deu o green card no mesmo dia em que cheguei. Favoreceu-nos muito ao minimizar o nosso potencial de letalidade. Pelo jeito, aqui teremos mais êxito. Milhares e milhares de mortos! Diante do desespero da população, Trump sugeriu que os infectados se curassem com injeções de desinfetante. No primeiro dia, após o anúncio, apenas em Nova York morreram trinta pessoas que deram ouvidos à Casa Branca.
E o Brasil?
Também o presidente preparou um terreno muito propício à nossa expansão. Declarou que o nosso efeito na saúde humana não passa de uma “gripezinha”, e todo fim de semana ele dá o exemplo de que não se deve guardar quarentena. Assim, circula pelas ruas sem máscara, põe as mãos no rosto, cumprimenta e abraça as pessoas. Um grande aliado!
Tive notícias aqui, Covid, de que o SARS e o MERS, gerações viróticas que nos antecederam, estão com muita inveja de nosso sucesso. Não conseguiram se disseminar tanto como nós e foram logo contidos por eficazes vacinas.
Vai ser difícil os humanos nos deterem, Corona. Os laboratórios atuam na lógica capitalista, de acirrada concorrência. Os da Alemanha não compartilham suas pesquisas com os dos Estados Unidos e nem os deste país com os da França. É a nossa sorte. Houvesse cooperação entre eles, uma vacina já teria sido criada para nos exterminar.
Que belo estrago causamos, amigo! O sistema capitalista ficou de joelhos. Agora as Bolsas de Valores deveriam ser chamadas de Bolsas de Desvalorização, tão profunda foi a queda do valor das ações. Com a redução dos transportes terrestres, aéreos e marítimos em todo o planeta, o preço do barril de petróleo despencou e as empresas petroleiras já não dispõem de tanques para estocar combustível. O desemprego aumentou em todo o mundo. Nos Estados Unidos subiu, em duas semanas, de 16 milhões de desocupados para mais de 35 milhões. O rombo na economia global será maior do que o causado pela crise de 1929, a grande depressão.
Quem manda essa gente não investir em sistema público de saúde! Transformaram a medicina em mercadoria e hastearam, como panaceia para todos os males, a bandeira da privatização. Resultado: falta o básico nos hospitais, como pessoal qualificado, respiradores, equipamentos de proteção individual, e até álcool em gel, essa gelatina que nos faz escorregar para o corredor da morte.
Não sou ingênuo, Covid. Sei que um dia seremos contidos por uma vacina. O que me consola é a certeza de que teremos descendentes, assim como somos o nono galho de nossa árvore genealógica viral.
Por que diz isso com segurança, Corona?
Porque os humanos continuarão a criar condições para novos coronavírus enquanto devastarem o planeta, alterarem seu equilíbrio ambiental e aumentarem o aquecimento global. Apesar da rasteira que levaram agora com a nossa ofensiva global, os humanos voltarão a ser indiferentes à desigualdade social, e bilhões deles não terão como sobreviver senão em locais desprovidos de saneamento básico e, portanto, propícios ao surgimento de nossos descendentes.
Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor do romance sobre a história de Minas Gerais, Minas de Ouro (Rocco).