Neste Natal, refrearei os meus impulsos perante os que não sabem conjugar os verbos no plural; agendam sentimentos e estão sempre atrasados na vida; mendigam admiração e se prostituem frente à sedução do poder.
Manterei distância daqueles que dão “mau dia” ao acordar, afogam em trevas interiores a alegria que lhes resta, encaram a vida com acidez. E os que julgam que laços de família se cortam com a ponta afiada da língua e ignoram que o sangue escreve letras indeléveis.
Haverei de saudar os navegadores cibernéticos, mariposas de noções fragmentadas, amantes virtuais que se entregam, afoitos, ao onanismo eletrônico, digitando a própria solidão. E os poetas que tragam emoções e engolem com ira palavras prenhes de significados.
Desdenharei as mulheres que se embelezam por fora e colecionam vampiros e escorpiões nos lúgubres porões do espírito. E os homens que malham o corpo enquanto definham a inteligência, transgênicos prometeus acorrentados ao feixe dos próprios músculos.
Mas erguerei um brinde a todos os infelizes, aos que o são e aos que se julgam, cegos às infinitas possibilidades de luz e das rotas. Sejam todos agraciados pela embriaguez de alegria divina, abertos ao Deus que os habita e ao amor que, como nascente cristalina, jamais nega água a quem está sedento, reverencia o milagre da vida e aprende a embriagar-se de alteridade.
Neste Natal, não contabilizarei as perdas no ano velho, nem recolherei pedras em minhas aljavas. Colecionarei afetos, permitindo que lagartas se transmutem em borboletas. Calarei as palavras sem raízes no coração.
Serei evasivo com as bordadeiras de emoções que gastam a vida desfiando intrigas e agulhando a boa fama alheia. E com os céticos desprovidos de horizontes, debruçados sobre a própria cegueira para contemplar abismos.
Não seguirei os passos dos sonegadores de alvíssaras, dos mancos de bondade, dos cegos de utopias, dos ébrios de ambições e dos medrosos perante a ousadia de viver. Nem dos que proferem palavras furtivas, segredam mentiras, sonham com elefantes de papel e tentam fugir da própria sombra.
Não me espelharei nos que cercam suas almas com arame farpado, abrem com foices seus caminhos na vida e, ainda assim, não sabem o rumo a tomar; traçam labirintos em seus mapas imaginários, enfeitam a vida com buquês de impropérios e rasgam o ventre da água com os seixos adormecidos no leito de seus pesadelos.
Neste Natal, rasgarei o escafandro dos meus temores para revestir-me de ensolaradas primícias, desdobrarei a subjetividade, rompendo a casca do ego para deixar nascer o homem novo, e louvarei os artífices da paz que, entre conflitos, exalam suavidade, não achibatam com a língua a fama alheia, nem naufragam nas próprias feridas. E aos emotivos que deixam escapar das mãos as rédeas da paciência e nunca abandonam as esporas da ansiedade.
Abraçarei os que tecem com o olhar o perfil da alma e no silêncio dos toques curam a pele de toda aspereza. E beijarei os amantes tragados pelo ritmo incessante de trabalho, carentes de carícias, que postergam para o futuro o presente que nunca se dão.
Serei portador do ovo de promessas, sem que a ilusão o quebre e, crédulo, dobrarei os joelhos diante do mistério divino. Identificarei as trilhas aventurosas da vida mapeadas na geografia de minha pele e não me envergonharei da topografia disforme de meu corpo.
Dançarei sem pudor de abraçar o menino que carrego dentro de mim, amarrarei meu burrico à sombra da sabedoria e jamais negociarei a felicidade em troca de uma arroba de milho que, vista à distância, parece pepita de ouro.
Abrirei caminhos com os próprios passos e cultivarei em meus jardins a rosa dos ventos. E darei boas-vindas aos que colhem borboletas ao alvorecer e sabem que a beleza é filha do silêncio.
Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.