FB: Quando vejo o Planalto negociando com o Congresso dominado pela oposição ao executivo, pergunto ao senhor: o brasileiro sempre teve este espírito de conciliação?

JHR: O espírito de conciliação tem origem antiga. Data dos primeiros contatos luso-indígenas. Os portugueses pensaram, a princípio, como escreveu Caminha em sua saborosa Carta, que “a esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos”. E começaram, logo nos primeiros dias, aquele método de dissolução cultural com que pensavam amansá-los. Às resistências opostas uma terrível violência ensinaria que o poder é poder e que Portugal representava na época, ao abrir a Fronteira Mundial, o maior poder agressor mundial. O medo, que gera a violência e a agressão, já estava em Caminha, ao dizer que “os índios andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles”. Uma desafeição geral contra a terra e a indiada dominava a gente portuguesa; um ódio incontido contra o gentio levava-o a praticar as maiores iniquidades, como as que praticaram Mem de Sá e Jerônimo de Albuquerque ao mandarem colocar, à boca de bombardas, feitos em pedaços, os índios que mataram cristãos. As guerras contra tabajaras, potiguaras, aimorés, tamoios, caetés, contra índios de todo o Brasil, mostram o aspecto demoníaco das horas de vitória do voluntarioso, o esmagamento do indígena e a dureza portuguesa.

FB: Prevalece no inconsciente coletivo a imagem de que o brasileiro é pacífico, conciliador, avesso à violência. O senhor concorda?

JHR: Se, de modo geral, prevalece da parte do povo o espírito de conciliação, que se manifesta na unidade linguística, na mestiçagem, na tolerância racial e nas acomodações que atenuam os antagonismos sociais, seria falso sustentar que seu comportamento foi sempre conformista. Lutas sociais sem fim e com grande derramamento de sangue mostram as divisões inconciliáveis e os comportamentos inconformistas. As lutas sangrentas pela posse da terra, pela expulsão indígena, de latifundiários e destes com sertanejos, fizeram correr muito sangue. O crime no sertão, onde reinou sempre mais respeito pela propriedade que pela vida, as lutas de famílias oligárquicas, mancharam de sangue os alicerces sociais, e com sangue se foi formando a consciência política. Nem foram menores a violência, a crueza e o sangue das guerras contra quilombos negros, mineiros, baianos, cariocas e pernambucanos. O de Palmares suportou 17 expedições punitivas, na última das quais, em 1694, foi cercado por 3.000 homens e custou inumeráveis vítimas e muito sangue. Essas explosões de sangue mostram o inconformismo do povo, o radicalismo da liderança popular e a violência e crueza da repressão pela minoria dominante. A fase colonial não valida a tese da tradição política pacífica, que uma historiografia oficial vem sustentando para abater os impulsos de revolta e para satisfazer as esperanças da minoria dominadora.

FB: Significa então que nossos colonizadores foram implacáveis na violência?

JHR: O que fez a liderança colonial? Não deu ao povo sequer os benefícios da saúde e da educação, o que levou Antônio Vieira a dizer: “Não sei qual lhe faz maior mal ao Brasil, se a enfermidade, se as trevas”.

FB: Perdura também a ideia de que a nossa Independência, em 1822, foi uma dádiva dos colonizadores portugueses. Isso procede?

JHR: A historiografia latino-americana e mesmo a norte-americana não falam de nossa Guerra de Independência, como se a nossa libertação fosse uma dádiva portuguesa. Se Bolivar, em 1824, chegou a dirigir 9.000 homens entre colombianos e peruanos; se San Martin, em 1817, contou com 8.000 homens; na guerra da Independência da Bahia as tropas brasileiras atingiram, em 1823, 11.000 homens. No Maranhão, mais de 8.000 combatentes lutaram pela Independência. Houve aqui, como em toda a América, grande derramamento de sangue.

Nota do autor: José Honório Rodrigues (1913-1987) foi historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Todas as palavras acima foram literalmente extraídas do capítulo 1 de seu livro “Conciliação e Reforma no Brasil”, publicado em 1965 pela Civilização Brasileira.

Frei Betto é escritor, autor de “Minas do Ouro” (Rocco), que descreve 500 anos da história de Minas Gerais, entre outros livros.