Escreveu Onelio Cardoso que o ser humano tem duas grandes fomes, a de pão e a de beleza. A primeira é saciável; a segunda, infindável. 

O que, em última instância, sacia a alma humana é preencher a fome de beleza, o sentido que se imprime à existência, ainda que exija sacrifícios. É o que explica indígenas aldeados se recusarem a trocar sua vida na selva pelos confortos da cidade ou missionários religiosos abandonarem a comodidade de suas famílias ricas para se dedicarem a comunidades duramente afetadas por pobreza e doenças.

Eis a razão do crescimento exponencial das Igrejas evangélicas: resgate da dignidade humana. O catador de material reciclável e a faxineira “invisíveis” para a sociedade, são reconhecidamente filhos e filhas de Deus no culto que reforça vínculos de solidariedade frente às dificuldades da vida.

No projeto original do Programa Fome Zero, em 2003, incluímos a perspectiva de associar a resposta à fome de pão à da fome de beleza. Cada família beneficiária passaria por um processo de educação cidadã. A garantia de cesta básica se somaria aos recursos pedagógicos capazes de “transformar a consciência ingênua em consciência crítica” (Paulo Freire, 1982).

A proposta não avançou porque o Fome Zero, de caráter emancipatório, deu lugar ao Bolsa Família, compensatório. Ainda assim, criou-se na esfera federal a Recid (Rede de Educação Cidadã), mobilizando cerca de 800 educadores populares. Infelizmente a Recid não mereceu o devido apoio do governo que tirou o Brasil do Mapa da Fome, mas não dessa cultura necrófila que naturaliza a desigualdade social e tantos preconceitos e discriminações.

Considero os governos do PT os melhores de nossa história republicana, os que mais asseguraram ao povo brasileiro os três principais direitos humanos: alimentação, saúde e educação. Faltou, no entanto, a educação política, a formação à cidadania, a mobilização em prol do protagonismo social. O abismo entre povo e governo não foi encurtado.

Nosso povo ainda não se deu conta de que ele é o ator político principal, e que governo não é uma gigantesca vaca com uma teta para cada boca. O resultado todos conhecemos: a incapacidade de o Planalto captar o caráter das manifestações populares de junho de 2013; a passividade da população frente ao golpe de Estado armado por Temer e antipetistas em 2016; e a eleição de Bolsonaro em 2018.

Lula inicia seu terceiro mandato. Sabe que não pode decepcionar e tem a responsabilidade de deixar um legado que impeça a nação de voltar a ser governada por negacionistas, belicistas e terraplanistas. Para isso, não basta destacar suas prioridades: o combate à fome e à insegurança alimentar, a proteção socioambiental e a redução da desigualdade social. É preciso incluir a educação política, cidadã e participativa da população. Porque da deseducação cuida a cultura neoliberal revestida de religiosidade alienante.

Como escreveu Paulo Freire (1981), “seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de maneira crítica.” Não há verdadeira democracia sem participação popular, fruto de conscientização, organização e mobilização do povo brasileiro.

Frei Betto é assessor de movimentos populares e autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.