Em recente artigo, o teólogo Allen Dwight Callahan ressalta que, enquanto a Teologia da Libertação (TdL) quer mudar o mundo, a da Prosperidade quer mudar as pessoas. Nós, adeptos da TdL, fizemos opção pela galinha que, se for saudável, nos ofertará ovos de qualidade. Já os fundamentalistas optaram pelos ovos, que merecem cuidados para que, no futuro, o galinheiro inteiro seja digno de bênçãos divinas…
Outrora, a Igreja Católica acreditava também que chocar bem os ovos e cuidar dos pintinhos possibilitaria surgir galinheiros baseados nos mais elevados princípios cristãos. Criou uma rede mundial de escolas católicas que, ao evangelizar crianças e jovens, gestariam mais tarde adultos coerentes com a ética evangélica.
A prática, entretanto, comprovou o contrário, como acontece hoje em muitas Igrejas evangélicas fundamentalistas, cujos pastores são flagrados em corrupção.
Como bem assinala Callahan, “a tendência persistente do evangelismo é pactuar com o domínio do capitalismo e dos seus catalizadores políticos. A tendência geral, aliás, é para os evangélicos ajustarem sua fé e prática à economia política do capitalismo, por vezes reconhecendo as contradições perversas, nunca resolvendo-as. Nesse sentido, a religião evangélica negocia essas contradições em troca de um armistício precário com o regime capitalista. Atualmente, o evangelismo acomoda um capitalismo voraz e destrutivo, e também endurecido em suas formas cada vez mais misantrópicas e cleptocráticas, perpetrando crimes flagrantes.”
Para Marx, que nasceu e foi educado dentro de um regime de cristandade, o Estado cristão prussiano de caráter luterano já havia se dado conta de que “o dinheiro é o vínculo que costura a vida humana, que cimenta a sociedade. (…) É a divindade visível (…), a prostituta universal.” (Manuscritos econômico-filosóficos) “O dinheiro é o deus entre as mercadorias” (Grundrisse).
O poder de cooptação do sistema capitalista se mostra muito mais sedutor que os ensinamentos cristãos. Por isso, são inumeráveis os líderes políticos e empresariais educados em instituições católicas que, agora, se destacam como corruptos, nepotistas, arrivistas, cumpliciados com quem mantém trabalhadores em situação análoga à escravidão, devasta florestas, sonega o fisco etc. Seus interesses capitalistas falam muito mais alto que os propósitos cristãos. Até porque adotam um procedimento no mínimo contraditório: são contra a legalização do aborto e aplaudem massacres promovidos por forças policiais; chamam de irmãos os fiéis de sua Igreja e não disfarçam o preconceito étnico; incensam as bem-aventuranças frisadas por Jesus, mas têm fome e sede de mais poder e riqueza.
Se o catolicismo se instalou no Brasil de braço dado com os colonizadores, em cujas fazendas mantinham capelães que faziam vista grossa ao sofrimento dos escravos, os evangélicos aqui chegaram a partir de 1870, quando três mil vieram da Virgínia (EUA), convidados pelo Império. Traziam na bagagem uma cultura típica do sul dos EUA: racista, escravocrata e favorável à supremacia branca de perfil protestante.
A hegemonia católica, entretanto, predominou durante décadas. E, na primeira metade do século XX, ensaiou possuir um braço político que, talvez, viesse a se transformar em partido: a Liga Eleitoral Católica (LEC). Os bispos indicavam os candidatos que mereciam fé. Porém, o Partido Democrata Cristão surgiu para tentar cumprir esse papel de braço político da hierarquia, embora sem o êxito de sua matriz inspiradora, a Itália.
Foi na década de 1970 que os evangélicos trouxeram ao Brasil a Teologia da Prosperidade (TdP), a bordo do pentecostalismo. Ela havia sido politicamente exportada pelo órgãos de inteligência dos EUA, como a CIA, com a finalidade de deter o avanço das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Teologia da Libertação.
Em maio de 1980, o governo dos EUA, presidido por Jimmy Carter, emitiu o documento Santa Fé I, denominado “Uma nova política interamericana para os anos 80”. E no governo George Bush pai o documento Santa Fé II, intitulado “Uma estratégia para a América Latina nos anos 90”.
Os signatários desses dois documentos consideravam que “o regime democrático é aquele no qual o governo tem a responsabilidade de preservar a sociedade vigente de ataques externos ou da intromissão do aparato estatal permanente.” Ou seja, evitar a influência comunista e reduzir ao máximo a intervenção do Estado na economia.
No contexto da Guerra Fria, os documentos alertavam para a “ofensiva cultural marxista” inspirada pelas obras de Gramsci: “Para os teóricos marxistas, o método mais promissor para a criação de um regime estatista em um ambiente democrático se obtém mediante a conquista da cultura da nação. De acordo com este modelo, todos os movimentos marxistas na América Latina têm sido encabeçados por intelectuais e estudantes, e não por trabalhadores.”
E no Documento Santa Fé II se afirma que, nesse contexto, “deve ser entendida a Teologia da Libertação, uma doutrina política disfarçada como crença religiosa com uma significação antipapal e contrária à livre empresa, com o propósito de debilitar a independência da sociedade.”
Embora a hierarquia católica tenha apoiado o golpe militar de 1964, a repressão a militantes das CEBs, incluindo bispos, a partir do AI-5 (1968) houve um refluxo no apoio ao governo militar. A CNBB se distanciou gradativamente da ditadura e a atuação progressista de novos cardeais, como Dom Aloísio Lorscheider e Dom Paulo Evaristo Arns, identificados com o profetismo crítico dos bispos Dom Helder Camara e Dom Pedro Casaldáliga, tornou a Igreja Católica objeto de repúdio da ditadura, o que favoreceu o movimento das CEBs e a TdL.
O processo de abertura política e a agonia da ditadura, em fins da década de 1970 e início da de 1980, possibilitaram ao catolicismo progressista apoiar a fundação do PT e de movimentos populares de âmbito nacional, como a CUT e o MST.
Na década de 1980, que marca o fim do regime militar e a redemocratização do Brasil, a atuação política de João Paulo II, eleito papa em 1978, se irmanou ao reacionarismo de Ronald Reagan nos EUA e Margareth Thatcher no Reino Unido. Isso provocou o arrefecimento das pastorais populares da Igreja Católica e da TdL. À medida que os setores populares se viram desprovidos da presença das CEBs, este espaço passou a ser progressivamente ocupado pelos evangélicos da Teologia da Prosperidade. Já nas eleições de 1986, 33 deputados federais e senadores formaram a Bancada Evangélica, enquanto os católicos na política institucional não chegavam a se articular como bancada. As pautas conservadoras, entretanto, aglutinavam no Congresso evangélicos, católicos e espíritas. Criaram-se, assim, as condições para, em 2018, eleger Bolsonaro, um político ultraconservador, católico rebatizado evangélico no rio Jordão.
Callahan conclui seu artigo frisando que “tudo isso implica uma realidade que qualquer liderança, de qualquer partido, ignora por sua conta e risco: a importância da formação política em nível de base, ensinada incansavelmente nas escolas dominicais e por ‘intelectuais orgânicos’ comprometidos com o bem-estar daqueles que sofrem com a barbárie do neoliberalismo atual. É hora de candidatos, campanhas e enxurradas de propaganda política — a hora exata para educar a base cristã não para o mal, mas para o bem. É o momento de promover formação política progressista nas Igrejas evangélicas da periferia. Ou seja, uma formação política comprometida com o bem-estar daqueles que vivem sem socorro, sem segurança e sem certeza nas favelas e localidades esquecidas pelos partidos progressistas. Ou seja, uma formação política que ensine a não perder o coração neste mundo tão sem coração, e a nos impregnar do espírito nesta época tão sem espírito.”
Esse desafio só será assumido e seu objetivo alcançado se os partidos progressistas admitirem que no povo brasileiro a porta da razão é o coração e a chave do coração, a religião. Isso não significa abrirem mão de sua natureza laica, e sim abandonarem qualquer conduta antirreligiosa e voltarem ao trabalho de base junto ao povo crente. Do mesmo modo, cabe aos setores progressistas das Igrejas cristãs se desclericalizarem e retomarem a leitura da Bíblia pela ótica dos oprimidos, na linha do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), e reativarem, nos setores populares, as CEBs.
Há um fator favorável nesse ano eleitoral: por mais que o Cristianismo conservador ressuscite o fantasma do comunismo e do falso moralismo (aborto, kit gay etc.), a população mais pobre enfrenta profundas dificuldades sociais e econômicas devido ao crescente desemprego, à alta da inflação, dos combustíveis, dos preços dos alimentos e dos aluguéis. Somam-se a isso a precarização dos serviços de saúde, o aumento exacerbado dos planos privados e as frequentes endemias em plena pandemia de Covid-19. Essa contradição é o tendão de Aquiles do discurso conservador. E, ao mesmo tempo, a brecha para que o discurso progressista dos partidos e das Igrejas identificadas com a Teologia da Libertação resulte em expressiva votação para candidatos antibolsonaristas.
Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.