Duas semanas antes do Natal, Flávio chegou da faculdade, em São Paulo, jantou com os pais e se trancou no quarto. Às 2h30 da madrugada, os pais foram acordados pelo interfone do apartamento. O porteiro avisou que subiria para falar com eles. Julgaram se tratar de assalto. Os ladrões teriam rendido o funcionário para obrigar os moradores a abrir as portas. Ao ouvir a campainha, o casal espiou pelo olho mágico. O porteiro estava rodeado de policiais. Flávio tinha se atirado do 10º andar. Completara 20 anos e era filho único.

No bilhete que deixou, Flávio atribuiu sua decisão à injusta acusação recebida do coletivo feminista da faculdade. Incluíram seu nome na lista de “abusadores”. Logo depois apagaram. Mas a indignação já havia impelido o rapaz ao gesto mortal de protesto.

Na missa de sétimo dia, comparei o suicídio de Flávio ao do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017. Acusado injustamente de corrupto, não suportou a calúnia. Como ele, Flávio foi vítima de assassinato digital.

Lembrei de frei Tito de Alencar Lima, meu confrade na Ordem Dominicana, que também tirou a vida, em agosto de 1974. Cruelmente torturado pela ditadura militar ao ser preso, em 1969, em janeiro de 1971 os sequestradores do embaixador suíço exigiram a libertação de 70 presos, entre eles Tito. Banido do país, se exilou na França.

As sequelas das sevícias se manifestavam em seu desequilíbrio mental. “É preferível morrer que perder a vida”, escreveu em sua Bíblia. Segundo seu psiquiatra, Tito se matou para evitar a loucura. Tomou a vida nas próprias mãos.

“Buscou, do outro lado da vida, a unidade que havia perdido deste lado”, declarou o cardeal Arns, arcebispo de São Paulo, na missa na catedral da Sé que, em 1984, acolheu os restos mortais do frade morto aos 28 anos.

Outrora a Igreja Católica excluía os suicidas do direito a liturgias fúnebres, como ainda o fazem outras instituições religiosas. Tal atitude decorria de interpretação equivocada do suicídio de Judas Iscariotes. Ora, Judas não foi execrado por se matar, e sim por ter traído Jesus.

Hoje a Igreja Católica confia na misericórdia de Deus, do qual somos todos filhos e filhas, e na salvação dos que atentaram contra a própria vida. Inclusive Jesus experimentou a angústia no caminho da cruz: “Minha alma está triste até a morte” (Mateus 26,38).

Conheci Flávio em uma viagem ao exterior e disse a seus pais que ele era o filho que eu gostaria de ter tido. Não havia sido batizado, mas tinha a intenção de fazê-lo. Segundo a teologia cristã, Flávio recebeu o “batismo de desejo”. Teve também o seu batismo de sangue.

Todos nós, sem exceção, nascemos em Deus. Como afirmou o apóstolo Paulo, “Nele vivemos, nos movemos e existimos.” (Atos dos Apóstolos17,28). “Deus é amor”, diz a carta de João no Novo Testamento (4,8). Um Deus amoroso não rejeita seus filhos e filhas. Nem cria um lugar de terríveis sofrimentos eternos conhecido como inferno. Após a nossa transvivenciação, a vida é terna.

Flávio foi vítima das redes digitais, do cyberbullying. Elas são úteis e necessárias, como facas de cozinha. E igualmente perigosas, porque podem assassinar reputações, induzir à violência, exacerbar o individualismo e o narcisismo.

Assim como somos educados a não usar facas contra nossos desafetos, nem o carro para atropelá-los, é preciso aprimorar a regulação das redes para evitar a “fakecracia”, com suas calúnias, perjúrios e difamações impunes e graves consequências à honra das pessoas. A liberdade de expressão, como a de locomoção, exige limites. Não posso trafegar de carro sobre a calçada, nem entrar na casa do vizinho sem pedir licença ou ser convidado. Do mesmo modo, ninguém tem o direito de propagar calúnias.

Flávio se retirou desta vida em defesa de sua dignidade. Colocou um ponto final em sua íntegra trajetória.

Parafraseando Italo Calvino, Flávio preferiu ausentar-se para que olhos alheios não o encarassem como um homem cuja moral foi partida ao meio.

FREI BETTO é escritor, autor de “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.