Eleições, reta final

No próximo domingo, 2 de outubro, mais de 156 milhões de eleitores irão às urnas decidir quem deve ocupar na administração pública brasileira funções servidoras de deputado estadual, governador, deputado federal, senador e presidente da República.

A maioria dos votantes, segundo pesquisas comprovam, já sabe em quem votar, sobretudo quanto aos cargos majoritários, governador e presidente da República. 

Será uma eleição de caráter plebiscitário, na qual o povo brasileiro decidirá se o governo deve continuar em mãos de quem defende milicianos; protege a si próprio e familiares de investigações de corrupção; acoberta garimpo ilegal, incendiários e devastadores de florestas, invasores de territórios indígenas e comércio ilegal de armas; ignora crimes cometidos por forças policiais; despreza as mulheres, a ciência, o sofrimento das vítimas de Covid e seus familiares; e trata os adversários com ódio e escárnio.

Ou os eleitores darão preferência, sem medo de ser felizes, a quem promoveu o Brasil à condição de nação soberana, livre das interferências do FMI, e foi capaz de reduzir significativamente a inflação e o desemprego; retirou o Brasil do Mapa da Fome (ao qual retornou em 2018); criou o Prouni e o sistema de cotas nas universidades; ampliou o número de escolas técnicas de nível superior; disseminou as Farmácias Populares; trouxe médicos cubanos para atender as populações mais carentes e distantes dos centros urbanos; valorizou a agricultura familiar; fortaleceu os programas sociais e reduziu a desigualdade social. Por isso, Lula deixou seus 8 anos de governo com 87% de aprovação por parte da opinião pública brasileira.

Ao votar para governador e presidente da República os eleitores devem estar atentos ao apoio parlamentar necessário para que seus candidatos, uma vez empossados, possam transformar em realidade suas promessas de campanha. Por isso é importante adequar a escolha dos nomes a cargos majoritários aos votos a quem deve ser eleito deputado estadual, deputado federal e senador. 

Machado de Assis, em sua primeira crônica na “Gazeta de Notícias”, em 1892, escreve sobre o pleito de 20 de abril daquele ano para preencher vaga no Senado após renúncia do general João Severiano da Fonseca. Eleito o republicano Aristides Lobo, que era deputado pelo Distrito Federal, Machado confessa: “Não entendendo eu de política, ignoro se a ausência de tão grande parte do eleitorado na eleição do dia 20 quer dizer descrença, como afirmam uns, ou abstenção como outros juram. A descrença é fenômeno alheio à vontade do eleitor; a abstenção é propósito.”

Machado, um sátiro inveterado, reafirma não entender de política em crônicas posteriores: “Não entendo de política, limito-me a ouvir as considerações alheias” (25 de fevereiro de 1894); “política, matéria estranha às minhas cogitações” (6 de janeiro de 1895); “Não há quem não conheça a minha desafeição à política e, por dedução, a profunda ignorância que tenho desta arte ou ciência” (7 de abril de 1895); “Nada entendendo de política nem de finanças” (8 de dezembro de 1895); “Não estranheis ver-me assim metido em política, matéria alheia à minha esfera de ação.” (7 de junho de 1896). 

No entanto, toda a obra de Machado de Assis está impregnada de política. Mesmo porque não há nada que não seja político, seja por omissão, seja por participação. O que o fundador da Academia Brasileira de Letras quis evitar é a acusação de partidarismo.  E o bom voto não é necessariamente o que nasce de convicções partidárias. Há quem, filiado a partidos, se empenha na eleição de seus correligionários porque deseja que o programa partidário seja efetivamente aplicado. Mas há também os que, movidos por interesses nem sempre confessáveis, estão de olho em bons empregos e ter amigos agora transformados em políticos influentes.

Na crônica de 7 de agosto de 1892, em “Gazeta de Notícias”, Machado condena a abstenção ao comentar que, para eleger a vaga deixada por Aristides Lobo, o “eleitorado ficou em casa”. “Uns querem ver nisto indiferença pública, outros descrença, outros abstenção. No que todos estão de acordo, é que é um mal, e grande mal.”

Sim, abster-se ou anular o voto nesta eleição de 2022 é um grande mal, porque significa cruzar os braços diante da tragédia brasileira, com mais de 30 milhões de pessoas padecendo fome crônica; 10 milhões de desempregados; desmatamento na Amazônia ampliado em 21% neste ano, comparado a 2021, e deve chegar a 15 mil km2 de floresta derrubada até o fim do ano; inflação de mais de 8% ao ano; aumento abusivo do preço dos alimentos; e milhares de famílias forçadas a ocupar as ruas por falta de moradia e renda.

Votemos no resgate da democracia, da dignidade e dos direitos do povo brasileiro. 

Votemos Lula, 13!

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Por que tanto medo?

É a banalização do mal. Ou melhor, a bolsonarização da violência.

Esta é a campanha eleitoral do medo. O medo é uma reação involuntária em prol de nossa sobrevivência. Temos medo de assalto e, por isso, não caminhamos solitários por determinadas ruas à noite; o medo de atropelamento nos faz esperar o sinal fechar; o medo de um cão nos impede entrar em uma casa enquanto ele estiver solto. 

Nosso medo é que o Inominável seja reeleito e, assim, acelere o desmonte do Estado brasileiro e fortaleça o comércio de armas, o garimpo ilegal, a impunidade a quem desmata nossas florestas. Medo de um arremedo de democracia militarizada, de forças de segurança agindo ao arrepio da lei, de mulheres, negros e indígenas prosseguirem vulneráveis à ação cruel da supremacia machista e racista. Medo de que a fome prospere e a desigualdade social se agrave.

O medo é uma sensação de insegurança, pavor ou repúdio diante de uma pessoa, um objeto ou uma situação. Quando temos medo, nosso cérebro produz substâncias que disparam o coração, tornam a respiração ofegante, contraem os músculos. 

Como perder o medo? Só conheço um antídoto: quando aquele ou aquilo que se ama tem, a nossos olhos, um valor acima de nossas próprias vidas. Pode ser uma pessoa, uma causa, um ideal ou até mesmo uma utopia. É o que imprime coragem frente uma situação de ameaça. E o que está em jogo nesta eleição não é a minha vida, é a vida de um povo, a independência de um país, a soberania de uma nação, a conquista da democracia.

No 7 de setembro o bicentenário de Independência foi jogado para escanteio e o que se viu foi um escandaloso uso da máquina pública, com dinheiro do contribuinte, para tentar alavancar o candidato que ora ocupa o Planalto. 

Ele, que tanto prometeu golpe na data, recuou. Faltaram-lhe apoios internacional e do grande capital nacional. Restringiu-se a aglomerar supostos apoiadores (sei de funcionários que votam Lula, mas embolsaram calados o dinheiro extra dado pelo patrão e compareceram) e suscitar em coro um refrão chulo digno de cervejada miliciana: “Imbrochável!”, enlameando a família brasileira que ele diz tanto defender e respeitar.

Chegou a hora de dar um Basta! Pelo voto haveremos de manifestar nossa vez e voz em prol de um Brasil sem medo de ser feliz.

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Frei Betto e a globocolonização

Brasil 247 – Literatura & Pensamento Crítico

Cesar Calejon entrevista Frei Betto, frade dominicano, jornalista e escritor brasileiro, que aborda a sua produção intelectual, a relação entre religião e política, o atual cenário sociopolítico do país e o conceito da “globocolonização.

Encontros com Gorbachev

Em março de 1985, Mikhail Gorbachev assumiu a direção da União Soviética e introduziu reformas que a levariam a se desintegrar, abandonar o socialismo e ingressar na órbita do capitalismo.

Em maio de 1986 visitei o Kremlin, mas não estive com o líder soviético. Só fui encontrá-lo no ano seguinte, quando participei, em Moscou, do Fórum por um Mundo sem Armas Nucleares e pela Sobrevivência da Humanidade.  

Em torno de Gorbachev já não havia o mesmo consenso do ano anterior. Muitos o aplaudiam por erradicar a gerontocracia e levar aos cárceres, como corruptos, autoridades durante décadas tidas como intocáveis. Outros, contudo, o criticavam por permitir que dissidentes de ontem caminhassem, hoje, livremente pelas ruas de Moscou. 

O Fórum reuniu cerca de mil participantes, oriundos de 80 países. Gente das mais diferentes tendências políticas e atividades profissionais, de banqueiros a generais, de escritores a religiosos, de cientistas a artistas de cinema. Óbvio que a atenção da mídia e do público se centrava em figuras como Yoko Ono, Gregory Peck, Michel Legrand, Paul Newman e Shirley MacLaine. Do Brasil, participaram também o maestro Cláudio Santoro, o compositor Marlos Nobre e o professor Cândido Mendes.

Ao chegar ao Kremlin para o encerramento do Fórum, entramos pela porta da antiga biblioteca de Lenin e ingressamos no Palácio dos Congressos. Gorbachev tomou assento sob a grande estátua de Lenin.

Mereceu mais aplausos do que o anfitrião o escritor inglês Graham Greene que, com bom humor, falou de improviso em nome de homens e mulheres da cultura:      

— Marx previra um mundo melhor, quando já não tivessem igrejas e mosteiros. Mas vivi anos na América Latina e posso assegurar que ali há cooperação entre católicos e comunistas. Juntos, lutam contra os esquadrões da morte Portanto, antes de morrer espero ver um embaixador da União Soviética no Vaticano.

Gorbachev riu e aplaudiu, talvez sem dar importância à premonição que ele próprio haveria de cumprir, pois em janeiro de 1989 a URSS e o Vaticano estabeleceram relações diplomáticas. 

Em seu discurso de uma hora e três minutos, o autor da perestroika recordou Hiroshima e Nagasaki para advertir:

— Agora, um único submarino estratégico contém mais poder de destruição que todas as armas da Segunda Guerra Mundial. Do dilúvio nuclear não poderá se salvar uma nova Arca de Noé.

Em seguida, ridicularizou o presidente Reagan por ter lhe proposto, num encontro, uma ação conjunta URSS-EUA, caso o nosso planeta fosse atacado por seres extraterrestres! Caímos na risada. Gorbachev defendeu a destruição imediata de todas as armas capazes de provocar genocídio; a inspeção das bases usamericanas no exterior; e o retorno de suas tropas aos EUA. Assegurou que a União Soviética estava retirando seus soldados da Mongólia e do Afeganistão, e concluiu:

— É preciso salvar na Terra o dom sagrado da vida, possivelmente único no Universo. Para isso, é preciso acabar de vez com as armas nucleares, esse ídolo que exige sempre novos sacrifícios. Nem a União Soviética nem os Estados Unidos tem o direito de decretar pena de morte à humanidade. É preciso pôr um fim à separação entre política e moral. Queremos traduzir nossa filosofia moral na linguagem da práxis política.

Não se ateve apenas às questões de política externa; abordou também a perestroika:

— Vocês chegaram aqui quando realizamos reformas revolucionárias. Só compreendendo a essência delas é possível entender nossa política interna. É ela que determina nossa política externa. E o seu objetivo é o pleno e livre funcionamento de todas as formas de organização da sociedade. Queremos democratizar toda a vida social. Almejamos mais socialismo e, portanto, mais democracia.

Encerrou sem citar nenhum clássico do marxismo. Findo os discursos, passamos todos ao salão de recepção, dividido em diversos patamares. Logo, os alto-falantes anunciaram que, dentro em pouco, “o presidente Mikhail Serguêievitch Gorbachev ingressará no salão e todos devem permanecer em suas mesas, pois ele passará cumprimentando um por um”, advertiu o locutor.

Comentei com Emílio Monte, pastor evangélico argentino sentado ao meu lado, que aquilo não daria certo. Bem fazia Fidel ao postar-se à entrada do salão, estender a mão a cada convidado e, em seguida, desaparecer.

— Quando Gorbachev aparecer ali embaixo, ninguém segura essa boiada – adverti ao pastor. — Se quisermos cumprimentá-lo, teremos de descer.

— Descer como? Os seguranças não nos deixarão passar.

— Vamos descer – insisti. — Duvido que nos barrem. Devem pensar que todos aqui são muito importantes.

Puxado por mim, o pastor se animou. Passamos pelos seguranças sem ser molestados. Logo, instalou-se um forte movimento centrífugo abaixo. Gorbachev havia entrado e, conforme eu previra, as personalidades vips súbito trocaram a etiqueta pela tietagem. 

— Avistei ali Marcello Mastroianni – comentei com o pastor.

— Onde? Onde? 

O homem perdeu a compostura. Não queria mais nada com Gorbachev. Suplicou para ajudá-lo a descobrir o ator italiano. Entramos num impasse: eu queria ir na direção de Gorbachev e, ele, na de Mastroianni. Os alto-falantes rogavam, em vão, que as pessoas retornassem às mesas. Previ que Gorbachev não daria mais nenhum passo para dentro do salão e, o quanto antes, trataria de fugir daquela turba. Minha intuição sugeriu que ele faria uma curva antes de alcançar a porta de saída. Postei-me no local da curva, em companhia do pastor, que prosseguia de pescoço esticado à cata de Marcello Mastroianni. Logo, Gorbachev veio em nossa direção, acompanhado pelo empresário estadunidense Armand Hammer, que fora amigo de Lenin e, na Guerra Fria, servira de vínculo confiável entre a Casa Branca e o Kremlin. 

Antes de nos movermos ao seu encontro, o dirigente soviético veio em nossa direção.  Mas logo se viu de novo cercado por outros ansiosos por cumprimentá-lo. Estampando seu sorriso tímido, Gorbachev tratou de apressar o passo e desapareceu atrás da porta que lhe prometia tranquilidade.

Anos mais tarde, reencontrei-o no norte da Itália em um evento cultural. Já não atraía a atenção, talvez por ter deixado como legado um país imerso no mais visceral capitalismo, governado por um caudilho e impregnado das mesmas ambições expansionistas do antigo Império Russo e da União Soviética.

Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.