O leão e a abelha

Conta uma antiga história que o leão, ciente de ser o rei dos animais, passeava impávido pela selva e assustava todos com seu rugido ameaçador. A quem ousasse desafiar o seu poder, exibia os dentes afiados, o olhar sinistro, a bocarra aterradora.

O leão nutria seu orgulho com o olhar admirado de múltiplas espécies da fauna. Por onde passava a turba de víboras o aplaudia, como se ele fosse o Leão de Judá, o enviado de Deus.

Só um detalhe incomodava o leão: a provocação da abelha ao anunciar a todos que, um dia, haveria de destronar o rei dos animais. Era inaceitável, para ele, que um inseto que lhe parecia tão insignificante ousasse desafiá-lo. O leão chegou a aprisioná-la, mas ela se livrou. Então, tentava abocanhá-la, mas a abelha, em voo certeiro, se evadia das mandíbulas assassinas e das agressivas patadas que cortavam os ares.

Embora muitos animais julgassem o leão dotado de plenos poderes, ele bem conhecia seus limites: não podia voar como a abelha. Mas esta não era a única diferença. O leão babava sangue com seu insaciável apetite carnívoro, enquanto a abelha polinizava as flores e distribuía mel pela floresta. O doce da abelha conquistou, aos poucos, mais adeptos que a amargura do leão.

Chegou o dia da eleição. Quem haveria de assumir o governo da selva? O leão estava absolutamente convencido de sua supremacia. Tinha o poder em mãos. Javalis, hienas, piranhas e escorpiões – animais muito perigosos – o apoiavam. E ele zombava da abelha respaldada por espécies que não ameaçam ninguém, não têm sede de sangue e são laboriosas, como a multidão de formigas que habitavam, sobretudo, o Nordeste da mata.

Ao longo da campanha eleitoral, o leão fez de tudo para tentar desacreditar a abelha. Acusou-a de corrupta, bandida, mentirosa. A abelha, ao contrário, não proferiu inverdades sobre o leão, apenas destacou quão inoperante ele havia sido em seu governo e quantos inocentes morreram famintos e doentes, vítimas de seu descaso.

Apurados os votos, a abelha venceu o leão. Inconformado e revoltado, o leão emudeceu engasgado pelo próprio ódio.

A abelha ignorou-o. Ovacionada pelos animais que encabeçavam governos de outras florestas, comprovou que a esperança vence o medo. Todos sabiam que, agora, já não haveria mais queimadas devorando as matas, poluindo o ar e calcinando animais, nem as águas seriam contaminadas pela sanha dos que abrem covas para explorar as riquezas do subsolo.

Moral da história: as alcateias rugem, mas são as colmeias que, solidárias, produzem o que há de mais doce na vida.

Frei Betto é escritor, autor de “O estranho dia de Zacarias” (Cortez), entre outros livros.

Lula e a fome de beleza

Acabolsonaro! O povo brasileiro escolheu Lula para governar o Brasil pela terceira vez. O Inominável pode chiar, ofender, mas será despejado do Palácio do Planalto na manhã de 1º de janeiro de 2023. Voltará a ser um cidadão comum, sem imunidades, sujeito a responder, perante a Justiça, às inúmeras, sérias e graves acusações que pesam contra ele.

Lula ganhou, mas ainda não venceu. Sabe que enfrentará dificuldades significativas ao seu desempenho presidencial. Terá que lidar com um Congresso Nacional hegemonicamente conservador. E com governadores declaradamente bolsonaristas à frente de estados que exercem papel preponderante na política e na economia do Brasil, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

O mais atribulado desafio será enfrentar a cultura bolsonarista impregnada em milhões de cidadãos que incensavam o “mito” e, agora, assistem a sua queda e amargam a vitória lulista. Essa gente não é organizada, mas é autoritária, agressiva, violenta. Seu propósito é sabotar as instituições democráticas, propagar fake news e a filosofia do negacionismo, reforçar preconceitos (às mulheres, aos negros, aos indígenas e aos gays) e anarquizar a cultura.

Acometida de pareidolia, essa gente enxerga comunismo no vermelho de vestes cardinalícias. O bolsonarismo não é um sistema filosófico, é uma seita religiosa em torno de um líder miliciano. Não busca justiça, age por vingança. Não tem proposta, faz protesto. Não confia na força da lei, e sim na lei da força. Não tem adversários, mas inimigos. Valoriza mais a polícia que a política. Não respeita direitos humanos e apregoa a violência. Não dialoga, atira. Não crê em Deus, usa seu Santo Nome em vão. Considera a democracia um estorvo; a cultura, um caldo de cultura marxista; a diversidade, uma aberração; a crítica, uma ofensa.

Para governar o Brasil, Lula precisará demonstrar excepcional jogo de cintura. O PT tende a ocupar o vazio deixado pelo PSDB. Terá que atender as demandas dos pobres e dos ricos. Mas, como adverte o Evangelho, “ninguém é capaz de agradar a dois senhores…” (Mateus 6,24).

Lula tem plena consciência do que deveria e poderia ter feito em seus dois primeiros mandatos e não fez. Resta saber se terá condições políticas de levar adiante seus propósitos – reformas estruturais, políticas sociais robustas, combate à fome e ao desemprego, aumento significativo da qualidade da Saúde e da Educação; preservação ambiental.

O caminho para fortalecer o governo Lula não é propriamente o conchavo de bastidores, as alianças partidárias, os pactos federativos. Essa via já foi trilhada e resultou em escândalos e sobressaltos. Não se pode confiar num jogo em que o parceiro não age com lisura. A costura por cima sempre favorece quem despreza os que estão por baixo.

O caminho é o da conscientização, organização e mobilização populares. Sem povo na rua e nas redes, o governo Lula correrá o risco até mesmo de sofrer impeachment. Para se consolidar, terá que saciar a fome de pão e, também, a fome de beleza – pela educação política do povo. Há que promover um imenso mutirão paulofreiriano.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.