CPI contra o MST – III

A militância do MST repete, com razão, que o Brasil tem muita gente sem terra e muita terra sem gente. E os fatos comprovam que o aumento da concentração fundiária favorece o desmatamento e a violência no campo.

Dados do Censo Agropecuário de 2017 apontam que o Brasil possuía, naquele ano, 5.072.152 propriedades rurais. Metade com área de 10 hectares ou menos. São pequenas propriedades. Todas juntas ocupam apenas 2,28% das terras utilizadas no Brasil para a agropecuária.

No entanto, 50.865 propriedades rurais, que correspondem a apenas 1% do total de imóveis do campo, ocupam 47,5% das terras agrícolas. É o pessoal que insiste em manter, ao longo de mais de 500 anos, o único modelo de “reforma agrária” ocorrida em nosso país: a divisão de grandes extensões de terra em Capitanias Hereditárias…

A média de conflitos por terra e água entre 2019 e 2022 (governo Bolsonaro) superou a média entre os anos de 2013 e 2018. E eles ocorrem predominantemente nas áreas de expansão das fronteiras agrícola e mineral – as regiões Norte e Nordeste.

Segundo dados do Inpe, o desmatamento é maior sobretudo na região de cerrado conhecida como MATOPIBA – acrônimo formado pelas primeiras sílabas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Considerada a última fronteira agrícola do Brasil, é a área mais cobiçada pelo agronegócio para implantar agropecuária em larga escala – gado, soja e eucalipto.

Entre 2018 e 2022 aumentaram em 26,7% os conflitos por terra. As principais vítimas de invasões realizadas por agentes do agronegócio são povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pescadores. Dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra) apontam que, em 2022, ocorreram 47 assassinatos no campo e 117.600 conflitos por água.

A maioria das empresas produtoras de commodities não demonstra nenhum interesse na preservação ambiental, desrespeita a legislação trabalhista, e algumas são frequentemente flagradas com trabalhadores submetidos a condições análoga à escravidão.

O retrocesso no campo se agravou desde o governo Temer, sobretudo devido a projetos de lei e emendas constitucionais como as que resultaram na reforma da Previdência (103/2019).

Segundo dados do Cedoc (Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno), entre 2013 e 2022 houve aumento dos territórios em conflito por terra. Em 2013 foram registrados 810 territórios em conflito; em 2022, 1.050 territórios. Aumento de quase 30%.

No governo Bolsonaro invasões promovidas por agentes do capital (latifundiários, mineradoras, grileiros etc) a territórios ocupados por pequenos agricultores e posseiros cresceu 146,55%. Entre 2019 e 2022 o número de famílias de pequenos agricultores que tiveram suas terras invadidas foi de 326.684. Isso se deveu a quatro fatores: 1) a iniciativa governamental no programa Titula Brasil; 2) mineração em terras indígenas; 3) extração de madeira em terras indígenas; e 4) decretos e projetos de lei encaminhados ao Congresso.

Tudo isso somado e facilitado pela redução dos recursos a Funai; a recusa de fiscalização; e o apoio de garimpeiros, madeireiros e fazendeiros com milicias armadas.

E ainda querem criminalizar os sem-terra que exercem o sagrado direito de ocupar terras improdutivas num país de dimensões continentais. Haja matas e haja mortes! A fome e a insegurança alimentar jamais serão erradicadas no Brasil enquanto não houver reforma agrária.

Frei Betto é escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros.

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CPI contra o MST – II

Agro é pop?

O agronegócio está de olho na reforma tributária proposta pelo governo, pois se nutre de incentivos fiscais e isenção de impostos. Quando exporta soja e milho, paga zero real de imposto. E a fortuna ganha fora do país nem sempre retorna. Que o digam os paraísos fiscais!

O agro mama nas tetas do governo. Raramente para ITR (Imposto Territorial Rural), recebe subsídios no crédito rural, ou seja, o governo cobre a diferença entre a taxa de juros praticada no mercado financeiro e a taxa efetivamente paga pelo produtor endividado.

Muito se fala do atentado terrorista de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e pouco de quem financiou a manifestação golpista. Foi o agroterror, conforme comprova o dossiê “As origens agrárias do terror”, divulgado em maio de 2023.

O documento aponta as conexões agrárias de 44 empresários e políticos que atuaram na organização dos atos terroristas, inclusive membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Aponta os 29 plantadores de sojas que, no Mato Grosso, financiaram bloqueios de estradas, e como Xinguara (PA) e Sobral (CE) se tornaram centros do golpismo.

George Washington de Oliveira Sousa, preso pela polícia de Brasília em 24 de dezembro de 2022, por tentar explodir uma bomba no aeroporto Presidente Juscelino Kubitschek, era muito mais que simples gerente de postos de combustíveis no Pará. É sobrinho de Sebastião José de Souza, dono de uma grande rede de postos de combustíveis espalhada em diversos estados da Amazônia Legal.

Durante os depoimentos, George Washington não informou de que forma obteve dinheiro para adquirir o arsenal apreendido em Brasília. Apesar de não indicar seus “patrocinadores”, o terrorista entrou em contato com duas pessoas para avisar que tinha sido preso: um amigo de nome Ricardo e um fazendeiro de nome Bento.

Ricardo Pereira da Cunha, foi candidato a vice-governador do Pará e a deputado estadual pelo Pros, sem sucesso. É dono da empresa USA Brasil, de Xinguara (PA), cuja chave Pix foi divulgada por diversos fazendeiros do Pará que recolhiam doações para financiar atos antidemocráticos.

De Bento Carlos Liebl, fazendeiro e pecuarista de São Félix do Xingu (PA), o núcleo de pesquisas De Olho nos Ruralistas constatou que, juntos, Liebl e sua família são donos de ao menos 15 mil ha de terras na região, segundo dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (SNCR/Incra). Seu pai, Bento Liebl, é dono de 4.181ha da fazenda Mamoeiro. Outro familiar, Bernadete Liebl Peschl, possui a fazenda São Carlos, com 4.342 ha, enquanto a cunhada de Bento Carlos, Simone Rudnick Liebl, aparece como proprietária da fazenda São Bento, de 3.000 ha, alvo de embargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) por desmatamento, com uso de fogo, de 24 ha de floresta.

Duas propriedades vizinhas, as fazendas Bituva Grande, de 6.786 ha, e Minuano, de 5.523 ha, estão registradas em nome de Olivia Reusing, sogra de Bento Carlos. Juntas, as seis fazendas compõem um latifúndio de quase 30 mil ha, localizado na fronteira Sul da Terra Indígena (TI) Apyterewa, a mais desmatada do país entre 2019 e 2022.

E são as pobres famílias sem-terra que cometem crimes?

Frei Betto é escritor, autor de “Parábolas de Jesus – ética e valores universais” (Vozes), entre outros livros.

CPI contra o MST – I

Fez bem a bancada direitista de deputados federais bolsonaristas de convocar a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para tentar levar o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) ao banco dos réus. Assim, o tema da violência no campo volta a ocupar o centro das atenções e os crimes do latifúndio e do agronegócio serão lembrados e denunciados.

Nascida em uma família de classe média no mais rico país do mundo – os EUA, Dorothy Stang foi tocada pela proposta de Jesus e decidiu ingressar na vida religiosa. Enviada ao Brasil como missionária, conheci-a quando preguei o retiro das irmãs da Congregação de Notre Dame de Namur, no Maranhão.

Dorothy Stang fez opção pelos pobres e foi trabalhar com os sem-terra do Pará. Defendia o primeiro projeto de desenvolvimento sustentável do estado, o PDS Esperança; a regularização da terra para famílias de trabalhadores rurais; e combatia a violência praticada contra eles por grileiros, madeireiros e fazendeiros. Em 12 de fevereiro de 2005, foi assassinada com seis tiros à queima-roupa, emboscada numa estrada rural do município de Anapu, cerca de 700km distante de Belém.

O Ministério Público apurou que a morte da religiosa foi encomendada pelos fazendeiros Vitalmiro Bastos e Regivaldo Galvão. Os pistoleiros Clodoaldo Batista, Amair Feijoli da Cunha e Rayfran das Neves Sales, contratados pelos ruralistas para executar Dorothy, foram condenados. Batista, a 18 anos, cumpre pena em regime semiaberto, em um centro de recuperação, em Belém. Amair Feijoli Cunha, a 17 anos de prisão, em prisão domiciliar. E Rayfran Sales, autor dos disparos, a 27 anos, ficou preso quase nove, foi para prisão domiciliar e em 2014 foi detido novamente acusado de outro assassinato. Vitalmiro Bastos e Regivaldo Galvão receberam penas de 30 anos cada um. Nenhum dos dois está preso…

Quem são os deputados que estão à frente da CPI? Ricardo Sales (PL-SP) dispensa apresentação. Foi ministro do Meio Ambiente no governo Bolsonaro e propôs, em reunião ministerial, “deixar passar a boiada”, ou seja, liberar a atuação de todos os empresários interessados em explorar a Amazônia sem levar em conta a preservação ambiental e os direitos indígenas.

Marussa Boldrin (MDB-GO) teve como doadores de campanha José Fava Neto, autuado três vezes pelo Ibama por uso irregular de área de cerrado, na Bahia, para plantio, e Oscar Strochon, multado duas vezes pelo Ibama, num total de R$ 400 mil, por obras poluidoras em área de cerrado.

Evair de Melo (PP-ES) teve como doadores os irmãos Vigolo, que lhe repassaram R$ 60,5 mil, e são investigados por compra de sentenças para grilagem de terras na Bahia. A empresa deles, Bom Jesus Agropecuária, já recebeu multas do Ibama que superam o valor de R$ 10 milhões.

Domingos Sávio (PL-MG) teve como doadores os irmãos Vigolo e Mauro Schaedler (este doou R$ 25 mil), autuados pelo Ibama por atividades pecuárias potencialmente poluidoras e sem licença ambiental. Recebeu multas que somam R$ 2,7 milhões.

Coronel Assis (União-MT) recebeu doações no valor de R$ 80 mil de Edmar de Queiroz, acusado de comércio ilegal de ouro. Teve sua empresa Madeplacas interditada, em 2005, por suspeita de contrabando de madeira ilegal na Amazônia. E Dambros Sbizero, detido em 2019 por suspeita de participar de fraude no sistema de criação de créditos florestais.

Charles Fernandes (PSD-BA) recebeu R$ 27,6 mil de doação de Manoel Rubens, multado pelo Ibama em mais de R$ 100 mil.

Joaquim Passarinho (PL-PA) teve como doadores Adelson Souza de Oliveira, réu em sete autos de infração do Ibama por danos à floresta Amazônica, que somam R$ 1,8 milhão em multas, e Roberto Paulinelli, dono do Frigorífico Rio Maria. Nos últimos seis anos, Paulinelli recebeu multas de R$ 387 mil por delitos ambientais.

Marcos Pollon (PL-MS) teve como doador Renato Burgel, que cometeu duas infrações por plantar sementes transgênicas em áreas de proteção ambiental.

Como diz o Evangelho, pelos frutos se conhece a árvore…

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

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Quer ser feliz?

Imagino que sim, como todo ser humano. Os filósofos antigos sempre admitiram que o objetivo último da vida humana é a busca da felicidade. Santo Tomás de Aquino assegura que, em tudo que faz, mesmo ao praticar o mal, o ser humano busca a própria felicidade.

Diz a lenda que um homem muito rico, mas infeliz, vendeu todos os bens e partiu mundo afora disposto a comprar a felicidade. Foi buscá-la em todos os recantos do planeta. Até que, ao atravessar o deserto, viu um conjunto de tendas. Tratava-se de um mercado. À frente de uma delas havia uma placa: “Aqui, felicidade”. Ao entrar, deparou-se com um balcão e, atrás, uma bela jovem.

“É aqui que vendem felicidade?”, indagou. A moça respondeu surpresa: “Não vendemos, senhor. Damos de graça!”. “De graça?”, respondeu o ricaço estarrecido. “Então eu quero, pois estou à procura dela há anos!”

A jovem foi até os fundos da tenda e retornou com uma caixinha do tamanho dessas que guardam fósforos. Entregou-a ao forasteiro que, espantado, abriu-a e viu ali várias sementes.

“Mas… o que é isso? Eu peço felicidade e você me entrega uma caixa com sementes?!” A jovem pegou a caixa, espalhou as sementes sobre o balcão e disse: “Veja, esta aqui é a semente da amizade; esta, da solidariedade; esta, da fome de justiça; esta, do desapego. Se o senhor souber cultivá-las, será um homem muito feliz.”

Todos os filósofos concordam neste ponto: a felicidade é a finalidade da atividade humana, embora proponham caminhos diferentes para chegarmos a ela.

Há que distinguir felicidade e prazer. O consumismo capitalista tenta nos convencer de que a felicidade resulta da soma de prazeres. Se você usa este cartão de crédito, dirige este carro, faz esta viagem, bebe este vinho etc., você será feliz. Vide a propaganda da Coca-Cola, focada no vocábulo “felicidade”.

O prazer é efêmero, agrada o ego e os sentidos. Ao findar, muitas vezes traz sensação de vazio ou até mesmo frustração. A alegria é um estado de espírito passageiro, momentâneo, que carece de permanência.

E a felicidade, o que é?

Há diferentes respostas. Para Epicuro, é ausência de dor e sofrimento. Para Kant, satisfação de todas os nossos desejos. Leibniz considera que “é o prazer da alma quando considera garantida a posse de um bem presente ou futuro”. E Espinoza arremata: “Quanto maior a alegria que desfrutamos, mais passamos a um estado de maior perfeição e participamos da natureza divina”.

Epicuro afirma que, para ser feliz, basta satisfazer as nossas necessidades naturais, já que os prazeres não naturais são ilimitados, poços sem fundo que aumentam constantemente suas exigências e, assim, nunca trazem plena satisfação. Por isso, muitas vezes provocam infelicidade, pois despertam o canto da sereia de querer sempre mais e mais. Ele defende que a busca da felicidade seja trilhada na prática da virtude. Para os estoicos, a virtude é, por si mesma, a felicidade, sobretudo a moderação, pois quem a abraça põe rédeas nos desejos, que são infinitos.

O Cristianismo, manipulado pelas elites feudais e, mais tarde, capitalistas, transferiu a felicidade da Terra para as esferas celestiais. Há que suportar o sofrimento nesta vida para merecer o Paraíso… O capitalismo, sem descartar a religião, decidiu antecipar para esta vida, aos seus eleitos (os que possuem riqueza), as delícias paradisíacas. Assim, o consumismo, perfumado de hedonismo, suscita a ilusão de que todos os nossos desejos podem ser satisfeitos… basta ter dinheiro!

Muitos filósofos, como Aristóteles, advogam que uma das condições prioritárias para ser feliz é ter amigos e amigas. Amplie-se o conceito para relações sociais de cumplicidade, valores e ideais. É aqui que a porca torce o rabo. Os novos avanços técnicos e científicos, como as redes digitais, promovem a atomização dos indivíduos e esgarçam os vínculos de solidariedade e sociabilidade. O contato pessoal é substituído pelo isolamento na “bolha”; o diálogo, pelo monólogo; a reflexão, à simples reprodução de mensagens. Ali na janela eletrônica exacerbam-se o individualismo e o narcisismo, a ponto de bandidos notórios não relutarem em expor os requintes que desfrutam como resultado de seus crimes.

A cultura consumista, inerente ao capitalismo, impõe mais que o prazer como simulacro de felicidade. Acresce o dever: há que ser belo, esbelto e, se possível, ter milhões de seguidores nas redes digitais.

No livro “Le bonheur paradoxal” (Paris, Gallimard, 2006), o sociólogo G. Lipovetsky mostra que o viver bem (não confundir com o “bem viver” dos indígenas andinos) é a nova religião de nossas sociedades democráticas. Transformou-se mesmo numa espécie de tirania! Converteu-se num ideal exaltado e cantado em prosa e verso em todos os ambientes.

Em suma, o hiperconsumo é apresentado, hoje, como o caminho mais viável à felicidade. Adicione-se a isso a boa saúde, a ausência de desgraça ou sofrimento e o bem-estar. E, como cereja do bolo, o poder, qualquer que seja ele.

Ora, a busca desse “ideal” em uma sociedade tão desigual desencadeia uma frenética concorrência. As pessoas que se deixam impregnar dessa necrocultura, sofrem da profunda angústia provocada pelo medo de “falhar”. Medo de empobrecer; medo de engordar; medo de não serem valorizadas; medo de serem deslocadas do foco de atenção etc. Haja terapia, autoajuda, patologias físicas e mentais: úlcera, infarto, depressão…

Como escapar desse círculo infernal e alcançar a felicidade? Não vejo outro caminho senão a mudança de valores. Evitar a inveja e aprofundar o desapego. Passar da competitividade à solidariedade; do barulho ao silêncio; do individualismo à amorosidade; do exibicionismo à modéstia. Ter boas amizades e aprender o mais difícil: a gostar de si mesmo.

Mas, o que é a felicidade? É a plenitude de espírito, quando se é capaz de prescindir de todos os bens exteriores. Que o digam os místicos!

Frei Betto é escritor, autor de “Felicidade foi-se embora?”, em parceria com Leonardo Boff e Mário Sérgio Cortella (Vozes), entre outros livros.

Por que o MST assusta tanto?

O MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), que vi nascer e ao qual permaneço vinculado, é o mais popular, combativo e democrático movimento popular do Brasil. Congrega, hoje, cerca de 500 mil famílias assentadas e 100 mil acampadas. Luta por um direito elementar, jamais efetivado no Brasil, um país de dimensões continentais e onde há muita gente sem terra e muita terra sem gente – a reforma agrária.

É, no mínimo, uma vergonha constatar que no século XXI os únicos países que não fizeram reforma agrária na América Latina foram Brasil, Argentina e Uruguai. O modelo de propriedade da terra que ainda perdura em nosso país é o das capitanias hereditárias. E a relação de muitos proprietários de terras com seus empregados pouco difere dos tempos de escravidão.

Nascido em 1984 e prestes a completar 40 anos em 2024, o MST sabe, desde seus primórdios, que governo é como feijão, só funciona na panela de pressão… Ainda que tenha contribuído decisivamente para eleger Lula presidente, o MST jamais se deixou cooptar pelo governo. Mantém a sua autonomia e sabe muito bem que a relação de governo com movimentos sociais não pode ser de “correia de transmissão” e, sim, de representação das bases sociais junto às instâncias governamentais. Muitos políticos enchem a boca com a palavra “democracia”, mas temem que passe de mera retórica para ser, de fato, um governo cujo principal protagonista é o povo organizado.

O MST se destaca também pelo cuidado que dedica à formação política de seus militantes, o que muitos movimentos e partidos de esquerda negligenciam. Os sem-terra mantêm, inclusive, um espaço próprio para o trabalho pedagógico, a Escola Florestan Fernandes, em Guararema (SP). E em todos os eventos que promove, o movimento valoriza a “mística”, ou seja, atividades lúdicas (cantos, hinos, painéis etc.) e símbolos (fotos, artesanato etc.) de caráter emulador.

O MST segue rigorosamente os ditames da Constituição Cidadã de 1988. A Carta defende o uso social da terra, que deve respeitar o meio ambiente e ser produtiva. E exige algo ainda em compasso de espera e imprescindível se o Brasil quiser alcançar o desenvolvimento sustentável e abandonar sua submissão aos ditames das nações metropolitanas, que nos impõem a mera condição de exportadores de produtos primários, hoje elegantemente chamados de “commodities”…

Ocupação não é invasão. Jamais o MST ocupa terras produtivas. Hoje, o movimento é o maior produtor de arroz orgânico na América Latina e defende a Reforma Agrária Agroecológica, capaz de facilitar o acesso à terra como direito humano; produzir alimento saudável e sustentável para toda a sociedade brasileira; oferecer ao mercado alimentos salubres e livres de agrotóxicos; valorizar o papel da mulher trabalhadora do campo; expandir o número de cooperativas de agroecologia; e ampliar a soberania e a biodiversidade alimentares no combate à fome e à insegurança alimentar.

A campanha do “Abril Vermelho” não usa o adjetivo como evocação da cor preferida dos símbolos comunistas (e, também, das vestes solenes dos cardeais), como querem interpretar os detratores do MST. É, sim, a cor do sangue dos 19 sem-terra cruelmente assassinados pela Polícia Militar em Eldorado dos Carajás, no sul do Pará, a 17 de abril de 1996. Sete vítimas foram mortas por foices e facões, e os demais por tiros à queima-roupa.

Cerca de 100 mil famílias aguardam assentamento no Brasil. E é no mínimo um desserviço o agronegócio promover o desmatamento de nossas florestas para expandir a fronteira agrícola, usufruir de isenção fiscal na exportação de seus produtos e concentrar sua produção em apenas cinco mercadorias: soja, milho, trigo, arroz e carne, controladas por grandes empresas transnacionais.

A fome cresce no mundo. Já são quase 1 bilhão de pessoas afetadas. E isso não resulta da falta de alimentos. O planeta produz o suficiente para alimentar 12 bilhões de bocas. Resulta da falta de justiça. No sistema capitalista, o faminto morre na calçada à porta do supermercado. Porque o alimento tem valor de troca e não de uso. Ora, enquanto a produção alimentar não seguir os padrões agroecológicos e a terra e a água, recursos naturais limitados, não forem considerados patrimônios da humanidade, a desigualdade tende a se agravar e, com ela, toda sorte de conflitos. Paz rima com pão.

O MST assusta tanto porque luta para que o Brasil, uma das nações mais ricas do mundo, e que figura entre as cindo maiores produtoras de alimentos, deixe de ser um país periférico, colonizado, marcado por abissal desigualdade social.

Tomara que, um dia, nunca mais se torne realidade os versos cantados por João Cabral de Melo Neto em “Funeral de um lavrador”: “Não é cova grande / É cova medida / É a terra que querias / Ver dividida”.

Frei Betto é escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros.