Segundo encontro com o Papa Francisco

Em abril de 2014, há nove anos, tive o primeiro contato pessoal com o papa Francisco. Na época, pedi que valorizasse as Comunidades Eclesiais de Base (ele enviou mensagem aos participantes do 15º encontro das CEBS realizado em Rondonópolis (MT), em julho último); o papel das mulheres na Igreja; jamais se esquecesse dos pobres e dos indígenas; e reabilitasse Giordano Bruno, teólogo e astrônomo do século XVI, meu confrade na Ordem Dominicana, queimado vivo em 1600, em Roma, acusado de ideias heréticas.

Agora, na quarta, 23 de agosto, tivemos nosso segundo encontro na sala Paulo VI, no Vaticano, um dos maiores auditórios do mundo, com 6.300 cadeiras. Estava lotado. Fui credenciado para tomar assento na primeira fila, de modo que a equipe cinematográfica dirigida por Roberto Mader e acompanhada pelo cinegrafista Jacques Cheuiche, pudesse me filmar para o documentário que eles preparam sobre minha trajetória de vida.

Às 9h em ponto, o papa Francisco entrou caminhando, apoiado apenas na bengala, e tomou assento sob a impressionante escultura “A ressurreição”, em bronze e cobre, do artista Pericle Fazzini.

A palavra de Deus (Mateus 11,25-27) foi lida por homens e mulheres em italiano, francês, inglês, alemão, espanhol, polonês, árabe e português. Em seguida, o papa fez alusão e abençoou as delegações oriundas de países desses idiomas. Embora naquele dia se comemorasse a festa litúrgica de Santa Rosa de Lima, leiga de espiritualidade dominicana, Francisco se ateve, em sua alocução, em ressaltar a inculturação da mensagem evangélica ao exaltar o encontro do indígena Juan Diego com Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira das Américas.

Criticou o eurocentrismo cristão e destacou o valor dos povos indígenas. Entre o público, presentes um xamã e seu filho da etnia Yawanawa, do Acre, que presentearam Francisco com uma tabuleta onde o Pai Nosso está gravado em língua pano, uma das mais antigas do continente americano.

Antes de abandonar o palco, o papa orou o Pai Nosso em latim, deu a bênção apostólica e, em cadeira de rodas, cumprimentou os convidados instalados na primeira fila de cadeiras.

Após saudar, ao meu lado, duas mulheres equatorianas, Francisco me abraçou e beijou. Dei-lhe de presente meu livro “Jesus militante – o Evangelho e o projeto político do Reino de Deus” (Vozes) e, em espanhol, a cartilha popular, redigida por mim, e traduzida para o espanhol, sobre o Plano de Soberania e Educação Nutricional de Cuba, que assessoro desde 2019.

Expliquei-lhe que o “Jesus militante” defende a tese de que o Nazareno veio nos trazer um novo projeto político, civilizatório, que denominava Reino de Deus, em oposição ao reino de César, no qual viveu e pelo qual foi assassinado na cruz devido à ousadia de anunciar um outro reino possível.

Insisti para que participe da COP 30, a conferência mundial do clima, a ser realizada em Belém, em novembro de 2025. Ele disse que tem pensado nessa possibilidade. Pedi que intervenha junto a Biden, que se considera católico, para suspender ou, ao menos, flexibilizar o criminoso bloqueio dos EUA a Cuba, já que com Obama, que não é católico, ele havia conseguido reatar as relações diplomáticas entre os dois países e minorar as duras medidas do bloqueio imposto desde 1962 à ilha revolucionária do Caribe. E repeti o pedido feito em nosso primeiro encontro: a reabilitação de meu confrade Giordano Bruno, cujas “heresias” estão hoje integradas à teologia e às ciências ou foram descartadas como anacrônicas.

Francisco, mais uma vez, me impressionou pela simplicidade e radical opção pelos pobres. Prepara agora um complemento à encíclica socioambiental “Laudato Sí”, devido às novas questões incorporadas ao tema.

Deus conceda a ele longa vida, pois ainda há muito a reformar na Igreja e Francisco é, hoje, uma das raras vozes europeias a criticar a hegemonia capitalista (globocolonização), apontar as causas da degradação socioambiental e defender os refugiados vítimas da secular exploração da Europa aos países africanos.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

Ser mineiro

Como todo mineiro é um pouco filósofo, há um mistério sobre o qual medito há anos: o que é ser mineiro?
 
De reflexões e inflexões que extraí sobre a mineirice – muitas colhidas de metafísicas inscrições em rótulos de cachaça e quinquilharias de beira de estrada – eis as conclusões a que cheguei:

Mineiro a gente não entende – interpreta.

Ser mineiro é dormir no chão para não cair da cama; usar sapatos de borracha para não dar esmola a cego; tomar café ralo e esconder dinheiro grosso; pedir emprestado para disfarçar a fartura.

É desconfiar até dos próprios pensamentos e não dar adeus para evitar abrir a mão.

Mineiro não é contra nem a favor; antes, pelo contrário. Fala de desgraça, doença e morte e vive como quem se julga eterno. Chega na estação antes de colocarem os trilhos, para não perder o trem. E, na hora em embarque, grita para a mulher que carrega as malas: “Corre com os trens que a coisa já chegou!”

Mineiro, quando viaja, leva de tudo, até água para beber.

Relógio de mineiro é enfeite. Pontual para chegar, o mineiro nunca tem hora para sair. A diferença entre o suíço e o mineiro é que o primeiro chega na hora. O mineiro chega antes.

O bom mineiro não laça boi com embira, não dá rasteira em pé de vento, não pisa no escuro, não anda no molhado, só acredita em fumaça quando vê fogo, não estica conversas com estranhos, só arrisca quando tem certeza, e não troca um pássaro na mão por dois voando.

Ser mineiro é sorrir sem mostrar os dentes, ter a esperteza das serpentes e fingir a simplicidade das pombas, fazer de conta que acredita nas autoridades e conspirar contra o governo.

Mineiro foge da luz do sol por suspeitar da própria sombra, vive entre montanhas e sonha com o mar, viaja mundo para comer, do outro lado do planeta, um tutu de feijão com couve picada.

Mineiro sai de Minas sem que Minas saia dele. Fica uma saudade forte, funda, farta e fértil.

Ser mineiro é venerar o passado como relíquia e falar do futuro como utopia, curtir saudade na cachaça e paixão em serenatas, dormir com um olho fechado e outro aberto, suscitar intrigas com tranquilidade de espírito, acender vela à santa e, por via das dúvidas, não conjurar o diabo.

Mineiro fala de política como se só ele entendesse do assunto, faz oposição sem granjear inimigos, gera filhos para virar compadre de político.

Ser mineiro é fazer a pergunta já sabendo a resposta, ter orgulho de ser humilde, bancar a raposa e ainda insistir em tomar conta do galinheiro.

Mineiro fica em cima do muro, não por imparcialidade, mas para poder ver melhor os dois lados.

Cabeça-dura, o mineiro tem o coração mole. Acredita mais no fascínio da simpatia que no poder das ideias. Fala manso para quebrar as resistências do adversário.

Mineiro é isso, sô! Come as sílabas para não morrer pela boca. Faz economia de palavras para não gastar saliva. Fala manso para quebrar as resistências do interlocutor. Sonega letras para economizar palavras. De vossa mercê, passa pra vossemecê, vossência, vosmecê, você, ocê, cê e, não demora muito, usará só o acento circunflexo!

Mineiro fala um dialeto que só outro mineiro entende, como aquele sujeito que, à beira do fogão de lenha, ensinava o outro a fazer café. Fervida a água, o aprendiz indagou: “Pó pô pó?” E o outro respondeu: “Pó pô, pô”.

Mineiro não fica louco; piora. Por isso, em Minas não se diz que alguém endoidou, mas sim que “se manifestou…”

Ser mineiro é comer goiabada de Ponte Nova, queijo do Serro, requeijão de Teófilo Otoni e linguiça de Formiga, tudo regado a pinga de Salinas.

É cozinhar em fogão de lenha com panela de pedra sabão.

Mineiro não tem ideias, só lembranças; não raciocina, associa; pão-duro, tem o coração mole; pensa que esposa é parente, filho, empregado e carrega sobrenome como título de nobreza.

Ser mineiro é acreditar mais no fascínio da simpatia que no poder das ideias. É navegar em montanhas e saber criar bois, filhos e versos.

Mineiro vai ao teatro, não para ver, mas para ser visto, frequenta igreja para fingir piedade, ri antes de contar a piada e chora com a desgraça alheia. Adora sala de visitas trancada, na esperança de retorno do rei.

Avarento, não lê o jornal de uma só vez para não gastar as letras, e ainda guarda para o dia seguinte para poder ter notícias. Aliás, mineiro não lê, passa os olhos. Não fala ao telefone, dá recado.

Praia de mineiro é barzinho e, sua sala de visitas, balcão de armazém e cerca de curral. Ali a língua rola solta na conversa mole, como se o tempo fosse eterno. Certo mesmo é que o momento é terno.

Ser mineiro é ajoelhar na igreja para ver melhor as pernas da viúva, frequentar batizado para pedir votos, ir a casamentos para exibir roupa nova.

Mineiro que não reza não se preza. Acende a Deus a vela comprada do diabo. Religioso, na sua crendice há lugar para todos: O Cujo e a mula-sem-cabeça; assombrações e fantasmas; duendes e extraterrestres.

Mineiro vai a enterro para conferir quem continua vivo. Nunca sabe o que dizer aos parentes do falecido, mas fica horas na fila de cumprimentos para marcar presença. Leva lenço no bolso para o caso de ter de enxugar as lágrimas da viúva. Não manda flores porque desconfia que a flora embolsa a grana e não cumpre o trato.

Mineiro só elogia quando o outro virou defunto. E fala mal de vivo convencido de que está fazendo o bem.

Ser mineiro é esbanjar tolerância para mendigar afeto, proferir definições sem se definir, contar casos sem falar de si próprio, fazer perguntas já sabendo as respostas.

Mineiro é capaz de falar horas seguidas sem dizer nada. E cumprimenta com mão mole para escapar do aperto.

Mineiro é feito pedra preciosa: visto sem atenção não revela o valor que tem, pois esconde o jogo para ganhar a partida e acredita que a fruta do vizinho é sempre mais gostosa.

Mineiro age com a esperteza das serpentes mas se veste com a simplicidade das pombas, e encobre as contradições com o manto fictício da cordialidade. Mas conta fora tudo que se passa dentro de casa.

Ser mineiro é fazer cara feia e rir com o coração, andar com guarda-chuva para disfarçar a bengala, fingir que não sabe o que bem conhece, fumar cigarro de palha para espantar mosquitos, mascar fumo para amaciar a dentadura.

Mineiro sabe quantas pernas tem a cobra, escova os dentes do alho, teme rasteira de pé de mesa e, por via das dúvidas, põe água e alpiste para o cuco.

Mineiro é pão-duro, não abre a mão nem pra dar bom dia. Desconfiado, retira o dinheiro do banco, conta e torna a depositar. Vive pobre para morrer rico e pede emprestado para disfarçar a fartura.

Mineiro rico compra carro do ano e manda pôr meia sola em sapato usado. Viaja ao exterior e não dá esmola a pobre. Fica sócio de clube para ter status. E faz filho para virar compadre de político.

Pacífico, mineiro dá um boi para não entrar na briga e a boiada para continuar de fora. Mas, se pisam no calo do mineiro, ele conjura, te esconjura, jurado e juramentado no sangue de Tiradentes.

Mineiro é como angu, só fica no ponto quando se mexe com ele.

Em Minas, o juiz é de fora, o mar é de Espanha, os montes são claros, o ouro é preto, o pouso é alegre, as dores são de indaiá e os poços de caldas.

“Minas Gerais é muitas”, como disse Guimarães Rosa. É fogão de lenha e comida preparada em panela de pedra sabão; turmalina e esmeralda; tropa de burro e rios indolentes chorando a caminho do mar; sino de igreja e tropeiros mourejando gado sob a tarde incendiada pelo hálito da noite.

Minas é Mantiqueira e Cerrado, Aleijadinho e Amílcar de Castro, Drummond e Milton Nascimento, pão de queijo e broa de fubá.

Minas é uma mulher de ancas firmes e seios fartos, sensual nas curvas, dócil no trato, barroca no estilo e envolta em brocados, ostentando camafeus.

Minas é saborosamente mágica.

Ave, Minas! Batizada Gerais, és uma terra muito singular.

Frei Betto é mineiro e escritor, autor do romance “Minas de ouro” (Rocco), sobre 500 anos de história de Minas.

Os super-ricos ficam fora da reforma tributária?

No Brasil, quem é pobre paga, proporcionalmente, mais impostos do que quem é rico. Este é o dado mais contundente de injustiça estrutural em um país que adota, em matéria de tributação, o imposto regressivo, concentrado sobre o consumo de bens e serviços. Agora, o presidente da Câmara, Arthur Lira, bolsonarista de carteirinha, insiste em deixar fora da reforma tributária os superbilionários, brasileiros que possuem fortuna superior a US$ 1 bilhão (= R$ 5 bilhões).

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já havia anunciado que, para o governo aumentar a arrecadação, seria enviada ao Congresso proposta para tributar os fundos de investimentos exclusivos, conhecidos como “fundos dos super-ricos”. Nesse cassino financeiro só aplica dinheiro quem possuir, no mínimo, R$ 10 milhões. Atualmente, esses fundos acumulam R$ 877,4 bilhões! Eles pertencem a 3,5 mil cotistas.

Prevista pela Constituição de 1988 no inciso VII do artigo 153, a taxação de grandes fortunas nunca saiu do papel. E já se passaram 35 anos desde a aprovação. Desde 1989, mais de 40 projetos de lei foram apresentados ao Congresso para regulamentar o imposto. E tiveram como destino a gaveta…

O governo calcula que a taxação de fundos exclusivos renderia aos cofres públicos, por ano, mais R$ 10 bilhões. E tornaria o nosso sistema tributário menos regressivo e um pouco mais progressivo (quem possui mais, paga mais, especialmente sobre rendas, dividendos e patrimônio acumulado).

Qual a diferença entre aplicações bancárias normais e as dos super-ricos? A maioria dos investimentos está sujeita ao pagamento semestral do imposto de renda sobre os rendimentos. Já os fundos de investimentos exclusivos só pagam imposto no resgate de valores e de forma regressiva, ou seja, quanto mais tempo o dinheiro fica depositado no banco, menor o imposto devido. Com essa isenção tributária até o resgate, o rendimento da aplicação é integral, o que assegura ganhos muito superiores em relação a outros investimentos.

Mas os privilégios – termo que significa “lei privada”, que só vale para alguns – não cessam aí. Se o investidor sacar parte do dinheiro sem classificar como resgate, fica isento de pagar imposto. Outra vantagem é a isenção de cobrança para movimentações do dinheiro dentro do fundo, caso desista de determinada aplicação e decida migrar para outra ou ao comprar e vender ativos sem incidência de tributos. E essa bolada ainda tem uma cereja de ouro a ser exibida no topo: em mais uma manobra para adiar o pagamento do imposto de renda, as cotas dos fundos também podem ser repassadas a descendentes.

Vamos traduzir em miúdos. Os super-ricos pagam 5% de alíquota efetiva de imposto sobre sua renda e têm quase R$ 7 em cada R$ 10 da sua renda anual isenta de tributação. O 0,01% mais rico da população detém cerca de 20% da renda total do grupo. Neste grupo, a isenção pode atingir 90% da renda pessoal.

A reforma tributária só será efetiva e promotora de justiça fiscal se adotar medidas básicas como: (1) anular a maior parte dos 600 bilhões de reais de subsídios concedidos para empresas, praticamente sem transparência alguma; (2) simplificar o sistema, unificando taxas; (3) reduzir os impostos indiretos sobre consumo; (4) diminuir o imposto de renda para os mais pobres; (5) aumentar significativamente o imposto de renda para os mais ricos, inclusive com a taxação das grandes fortunas; (6) aprimorar o sistema de cobrança para inibir a evasão fiscal.

A EBC (Empresa Brasil de Comunicação), em mãos do governo federal, deveria fazer ampla campanha de justiça tributária. Mostrar, para toda a nação, as injustiças decorrentes dos privilégios dos beneficiários de isenções fiscais; como será aplicado o volume maior de dinheiro a ser arrecadado a partir da reforma; quem são os brasileiros com fortunas em paraísos fiscais.

A Receita Federal divulga anualmente os “Grandes Números do Imposto da Renda Pessoa Física”, uma precisa radiografia do topo da distribuição de renda no país. Estamos falando de 2.342 pessoas em 2021, com renda anual variando entre R$ 20 milhões e R$ 22 bilhões por ano. As rendas não tributáveis e aquelas sujeitas à tributação exclusiva representam 95% dos rendimentos desse 0,01% mais rico do Brasil.

O patrimônio declarado desse grupo soma R$ 2,33 trilhões. Lucros e dividendos declarados somaram, em 2021, R$ 555,7 bilhões. Deste total, R$ 411 bilhões ficaram nas mãos do 1% mais rico, e R$ 117 bilhões, com 0,01% no topo, ou seja, com as 2.342 pessoas super-ricas. Como nem todo patrimônio tem valor de mercado atualizado, esses dados estão provavelmente subestimados.

A única maneira de inibir o “trator da isenção” deste Congresso majoritariamente fisiológico e direitista, é escancarar para o público a real situação tributária do Brasil: um paraíso fiscal para os ricos, um inferno de impostos para pobres e classe média.

E no mundo, quais são os dados? Como nosso planeta é, hoje, dominado pelo capitalismo, onde o dinheiro fala mais alto que os direitos humanos, a Oxfam denuncia que 1% das pessoas mais ricas acumula o dobro das riquezas do restante da população mundial. A Oxfam sugere a implementação de um imposto de até 5% sobre fortunas de multimilionários e bilionários, o que resultaria em ao menos 1,7 trilhão de euros (R$ 8,6 trilhões) anuais – o suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza. Além disso, quer introduzir impostos solidários e taxas sobre lucros excessivos.

Nos últimos dois anos, 2/3 de todas as novas riquezas geradas no mundo – o equivalente a 42 trilhões de dólares (R$ 214 trilhões) – foram acumulados por 1% da população mundial. O montante é quase o dobro da riqueza gerada por 99% dos habitantes do mundo. “As fortunas bilionárias estão crescendo 2,7 trilhões de dólares (R$ 13,8 trilhões) por dia, até mesmo com a inflação pressionando para baixo os salários de 1,7 bilhão de trabalhadores”, alerta a Oxfam.

Para a Oxfam, as empresas de alimentos que aumentaram seus lucros com a subida da inflação mundial deveriam pagar impostos extraordinários para diminuir a desigualdade do planeta. Assim como as empresas de energia, a Oxfam critica as empresas de alimentos por usar as mudanças climáticas, o aumento do custo de vida, a guerra entre a Ucrânia e Rússia e a pandemia de Covid-19 como desculpas para aumentar os preços ao consumidor.

A Organização avaliou 95 empresas que tiveram lucros excessivos e diz que 84% dessa quantia foram pagos a acionistas, enquanto os preços maiores foram repassados a consumidores. Alguns governos decidiram taxar empresas fornecedoras de combustíveis fósseis pelos lucros extraordinários depois que a guerra entre Ucrânia e Rússia (que, de fato, é entre EUA e Rússia) gerou aumento dos preços de petróleo e gás natural.

Uma boa ideia para o Brasil.

Frei Betto é escritor, autor de “Parábolas de Jesus – ética e valores universais” (Vozes), entre outros livros.

Empoderamento de Policiais Militares

Tome-se um rapaz educado em família pobre ou de classe média baixa, morador de favela ou bairro de periferia, marcado pelo ressentimento frente aos jovens de classe média e rica com acesso a bens de consumo que lhe são proibitivos. Aliste-o na Polícia Militar, vista-o com a farda que lhe imprime autoridade, coloque em suas mãos armas como pistolas Glock ou fuzil Parafal. Convença-o de que, agora, não apenas zela pelo cumprimento da lei, mas também está investido do poder de agir acima da lei, protegido pela impunidade.

Ele não vai sair atirando a esmo nas primeiras rondas que faz. Mas estará em companhia, na mesma viatura, de colegas que se gabam de já ter dado fim a tantos “marginais”. Verá seus colegas de farda abordarem um suspeito (em geral, negros) na base de tapas e rasteiras. Poderá estacionar em uma padaria ou restaurante, comer e beber à vontade, sem pagar, e ainda escutará, na saída, a voz agradecida do gerente ou proprietário. E aprenderá rápido como colegas seus, com o baixo soldo da PM, possuem casa própria, carros de luxo e sítios: dinheiro obtido com “bicos” nas horas vagas; vista grossa frente ao narcotráfico e milícias; apropriação de valores encontrados em batidas policiais.

Sim, sei que policiais corruptos são exceção e que, todos os anos, vários são expulsos da corporação. Só no Rio 40 policiais militares já foram expulsos em 2023. Mas são assustadores os dados. No Rio, de janeiro a março de 2023, houve aumento de 160% no número de civis mortos, e 106% de feridos por “balas perdidas”, comparado com o mesmo período do ano passado. Nos últimos 30 dias, foram assassinadas, supostamente em “confrontos” com a PM, 30 pessoas na Bahia, 19 no Guarujá (SP) e 13 no Rio.

E como explicar tantas armas privativas da Polícia Militar e das Forças Armadas apreendidas em mãos de bandidos, milicianos e traficantes? Por que os sistemas de controle são tão precários?

Como um rapaz, que ingressou na PM motivado por ideais nobres, se torna autor de crimes hediondos? Apenas envolvidos no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes se incluem Ronnie Lessa, na época do crime sargento reformado da PM (só foi expulso da corporação em fevereiro de 2023); Élcio de Queiroz, lotado no 16ºBPM, batalhão responsável por Olaria, Vigário Geral, Cordovil e outros bairros da Zona Norte carioca; Maxwell Simões Corrêa (expulso do Corpo de Bombeiros do Rio em maio de 2022); Edimilson da Silva de Oliveira, policial militar reformado, morto a tiros em novembro de 2021, caso que é visto como uma possível execução; e os ex-policiais José Carlos Roque Barboza; Adriano da Nóbrega, chefe do Escritório do Crime, assassinado em 2020, na Bahia (possível execução); e o braço-direito de Adriano, Luiz Carlos Martins, o Orelha, assassinado em 2021, em Realengo, Rio (possível execução).

Procede o espanto de Ruy Castro: “Incrível o que o salário de um ex-PM pode comprar. O homem que atirou em Marielle Franco e Anderson Gomes, hoje preso, o ex-policial Ronnie Lessa, possui um terreno de 3.500 metros quadrados no condomínio Portogalo, em Angra dos Reis; um imóvel num condomínio em Mangaratiba; dois carros blindados, avaliados em R$ 150 mil cada; e uma casa no condomínio Vivendas da Barra, tendo como vizinho e colega de patuscadas Jair Bolsonaro.”

Será que no currículo dos cursos de formação de policiais militares que, em geral, duram dois anos, há disciplinas como ética e direitos humanos?

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

Políticas Sociais mudam a cabeça do povo?

Minha resposta à pergunta acima é não. Em setenta anos de União Soviética, o povo foi beneficiado com direitos que o Ocidente ainda não conquistara. Homens e mulheres desempenhavam os mesmos trabalhos e tinham igual remuneração. Já na década de 1920, 600 mulheres ocupavam cargos similares ao de prefeita, enquanto na maioria dos países ocidentais elas nem tinham direito a voto.

A União Soviética foi o primeiro país da Europa a apoiar direitos reprodutivos, em 1920. As mulheres detinham plena autoridade sobre seu corpo.[1] O ensino escolar era gratuito, inclusive a pós-graduação. Os estudantes recebiam do poder público livros didáticos e material escolar.[2] Também o sistema de saúde era inteiramente gratuito. O número de usuários de drogas era extremamente baixo e os poucos que conseguiam entorpecentes o faziam através de turistas que contrabandeavam para dentro do bloco.[3] Foram os soldados que ocuparam o Afeganistão, no fim da década de 1980, que infestaram de drogas os países do bloco soviético.

Apesar de tudo, a União Soviética colapsou sem que fosse disparado um único tiro. O povo deu boas-vindas ao capitalismo. Hoje, a Rússia é um dos países onde a desigualdade social é mais alarmante.

O socialismo soviético não fez a cabeça do povo em prol de uma sociedade solidária. Do mesmo modo, o Estado de bem-estar social, predominante na Europa “cristã” até ruir o Muro de Berlim, não fez a cabeça do povo.

Antonio Candido dizia que a maior conquista do socialismo não se deu nos países que o adotaram, e sim na Europa Ocidental, onde o medo do comunismo levou a burguesia a ceder os anéis para não perder os dedos.

Findo o socialismo, a burguesia ergueu os punhos e revelou sua verdadeira face: prevalência dos privilégios do capital sobre os direitos humanos; repúdio aos refugiados; privatização dos serviços públicos; alinhamento à política belicista dos EUA.

Governos do PT

O Brasil conheceu 13 anos de governos do PT que asseguraram à população de baixa renda vários benefícios: Bolsa Família; salário mínimo corrigido anualmente acima da inflação; Luz para Todos; Minha casa, Minha vida; Fies; cota nas universidades; redução drástica da miséria, da pobreza e do desemprego; aumento da escolaridade etc.

No entanto, Dilma Rousseff foi derrubada sem que o povo fosse às ruas defender o governo. E Bolsonaro foi eleito presidente em 2018. Em 2022, perdeu para Lula pela diferença de apenas 2 milhões de votos, de um total de 156 milhões de eleitores.

Freud e Chomsky

Segundo Freud, “a massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não existe para ela. (…) Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza. Vai prontamente a extremos; a suspeita exteriorizada se transforma de imediato em certeza indiscutível, um germe de antipatia se torna um ódio selvagem. Quem quiser influir, não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma fala. (…) Ela respeita a força, e deixa-se influenciar apenas moderadamente pela bondade, que considera uma espécie de fraqueza. Exige de seus heróis fortaleza, até mesmo violência. Quer ser dominada e oprimida, quer temer os seus senhores. No fundo, inteiramente conservadora, tem profunda aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência pela tradição.”[4]

Quem faz a cabeça do povo é o capitalismo, que exacerba nosso lado mais individualista e narcisista. E promove 24h por dia a deseducação da sociedade ao estimular o consumismo, a competitividade, a ambição de riqueza, o “salve-se quem puder”.

Noam Chomsky[5] enumera os recursos do sistema para evitar a consciência crítica: o entretenimento constante (vide a programação de TV); disfarçar os abusos como necessidades, como o aumento das tarifas dos transportes (“Medidas que são, na verdade, prejudiciais à população por favorecer os interesses escondidos de uma minoria, passam a ser implantados como se fossem garantir benefícios em comum”); tratar o público como criança e manter a consciência infantilizada; fazer a emoção prevalecer sobre a razão; manter o público na ignorância e na mediocridade, como a linguagem cifrada utilizada nas matérias sobre economia; autoculpabilização (sou o único responsável por meu fracasso ou sucesso); convencer que a grande mídia sabe mais do que qualquer pessoa etc. São o que Chomsky denomina as “armas silenciosas para guerras tranquilas”.

O PT governou por quatro vezes os municípios de Maricá (RJ) e Ipatinga (MG), assegurando grandes benefícios às suas populações. Em 2022, Bolsonaro venceu nos dois turnos nas duas cidades.

Isso significa que é real o risco de a direita voltar à presidência da República em 2026. Por mais benefícios que o governo Lula venha a garantir ao povo brasileiro. Qual é, então, a saída? Como evitar que isso venha a ocorrer?

Educação política

Só há uma alternativa: intenso e imenso trabalho de educação popular, pelo método Paulo Freire, utilizando dois recursos preciosos que o governo dispõe, a capilaridade e o sistema de comunicação. Capilaridade seria adotar a pedagogia paulofreiriana na formação dos agentes federais em contato com os segmentos mais vulneráveis da população, como saúde, IBGE, Embrapa etc. Por que não incluir no Bolsa Família, que atende mais de 21 milhões de famílias, uma terceira condicionalidade, além da escolaridade e da vacina? Seria a capacitação profissional. Além de propiciar qualificação aos beneficiários, de modo a que possam produzir a própria renda, as oficinas de capacitação seriam pelo método Paulo Freire. Mulheres que se inscreverem para se capacitarem em oficinas de culinária e costura, por exemplo, aprenderiam esses ofícios segundo o método que desperta consciência crítica.

A rede de comunicação do governo federal

O outro recurso é a EBC – Empresa Brasileira de Comunicação -, poderoso sistema de comunicação em mãos do governo federal, desde a “Voz do Brasil”, ouvida diariamente por 70 milhões de pessoas.

A TV Brasil, Canal 2, rede de televisão pública, conta com 50 afiliadas em 21 estados. Em 2021, ficou entre as 10 emissoras mais assistidas do país. O sistema de rádio EBC engloba 9 emissoras próprias em 2 estados e no Distrito Federal. A EBC dispõe do maior sistema de cobertura nacional de rádio, com 14 rádios afiliadas. A Rádio Nacional é uma rede de emissoras da EBC. É formada pelas seguintes emissoras: Rádio Nacional do Rio de Janeiro (alcance em todo o território nacional por transmissão via satélite); Rádio Nacional de Brasília; Nacional FM (Brasília); Rádio Nacional da Amazônia (sede em Brasília, mas programação voltada para a região Norte); Rádio Nacional do Alto Solimões (Tabatinga, AM); e as Rádios MEC e MEC FM (Rio de Janeiro).

A comunicação do governo federal dispõe ainda da Radioagência Nacional, agência de notícias que distribui áudios produzidos pelas emissoras próprias da EBC e emissoras parceiras. Segundo a estatal, mais de 4.500 emissoras de rádios utilizam os conteúdos da Radioagência. E a Agência Brasil, focada em atos e fatos relacionados a governo, Estado e cidadania, alcança 9,19 milhões de usuários por mês.

Há ainda o Portal EBC, plataforma na internet que integra conteúdos dos veículos (Agência Brasil, Radioagência Nacional, Rádios EBC, TV Brasil, TV Brasil Internacional) da Empresa Brasil de Comunicação e da sociedade em um único local.

A EBC, além de gerenciar as emissoras públicas federais, também é responsável pela formação da Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP). A RNCP visa estabelecer a cooperação técnica com as iniciativas pública e privada que explorem os serviços de radiodifusão pública. Atualmente, a rede conta com 38 emissoras espalhadas por todo o país.

Dentro da política da RNCP, a EBC pode solicitar a qualquer tempo canais para execução de serviços de radiodifusão sonora (rádio FM), de sons e imagens (televisão) e retransmissão de televisão por ela própria ou por seus parceiros. São as chamadas Consignações da União. Atualmente, 13 veículos são operados dessa forma em todo o país: TV Brasil Maranhão, com o Instituto Federal do Maranhão; TV UFAL, com a Universidade Federal de Alagoas; TV UFPB, com a Universidade Federal da Paraíba; TV UFSC, com a Universidade Federal de Santa Catarina; TV Universidade, com a Universidade Federal do Mato Grosso; e TV Universitária, com a Universidade Federal de Roraima.

Imagina o leitor ou a leitora toda essa rede voltada para o despertar da consciência crítica do público. Basta para isso mudar a chave epistemológica, passar da lógica analógica, que apenas se foca nos efeitos dos problemas sociais, à lógica dialética, centrada nas causas dos problemas sociais.

Quando vemos na TV campanhas em favor de quem tem fome, em geral aparecem indicações de locais de coleta de alimentos e doações de cestas básicas. Em nenhum momento o noticiário levanta as perguntas: por que há pessoas com fome? Por que não têm acesso aos alimentos? É natural que haja abastados e famintos? Como superar essa desigualdade?

Há muito a fazer para conscientizar, organizar e mobilizar o povo brasileiro. Recursos existem. E há vontade política por parte de Lula e da Secretaria Geral da Presidência da República, monitorada pelo ministro Márcio Macedo. Faltam apenas maior empenho, produção de material para os veículos de comunicação social e verba para que o governo disponha de uma rede de educadores populares de, no mínimo, 50 mil pessoas!

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco) e, com Paulo Freire, “Essa escola chamada vida” (Ática), entre outros livros.

[1] Abortion, Contraception, and Population Policy in the Soviet Union, David M. Heer.
[2] A Geography of Russia and its Neighbors”, do geógrafo Mikhail S. Blinnikov
[3] Arquivo da CIA: The USSR and Illicit Drugs: Facing Up to the Problem.
[4] Psicologia das massas e análise do eu, 1921.
[5] Mídia – propaganda política e manipulação, São Paulo, Martins Fontes, 2013.

Narrativas hipócritas

Frente à chacina que a PM paulista provocou no Guarujá (oficialmente, 16 mortos), como vingança ao assassinato de um policial militar, o governador de São Paulo tentou justificar ao alegar que muitas vítimas tinham antecedentes criminais. Se tinham, por que estavam soltos? E deveriam ter sido presos, não assassinados.

Tal justificativa é uma declaração de incompetência de sua polícia, incapaz de levar à prisão criminosos, e de que adotou a lei do talião, como se crime se respondesse com crime e morte com mortes. E o pior: praticados pelas forças de segurança do Estado, mantidas por nossos impostos e que deviam dar o exemplo de eficiência, ética e respeito aos direitos humanos.

As práticas das milícias e do narcotráfico não podem servir de exemplos a corporações que têm, por princípio, a obrigação de assegurar o cumprimento das leis.

Pensa o governador que a reação homicida de policiais trará à sonhada paz pública? Pelo contrário, só acelera ainda mais a espiral da violência.

Sim, o Brasil está infestado de criminosos, meliantes, assassinos, e o que fazem é hediondo. Mas por que não se perguntam pelas causas? O que faz uma pessoa abraçar a trilha do crime? Apenas a vontade de delinquir? E por que nossas penitenciárias não reeducam detentos?

Vivi dois anos na condição de preso comum sob a ditadura militar. Estive na Penitenciária do Estado de São Paulo, no Carandiru e na Penitenciária Regional de Presidente Venceslau (SP), presídio de segurança máxima, onde hoje se encontra o comando do PCC.

Aprendi na convivência a etiologia da criminalidade. O que esperar de uma criança cuja mãe, após um dia de faxinas em casas de classe média, apanha do marido bêbado, desempregado, diante do filho? O que esperar de uma criança que se evade da escola por vergonha de não ter sapatos minimamente decentes e, crescida, alia-se ao narcotráfico para exibir nos pés um tênis de marca? O que esperar de uma criança cujo pai, ignorante, surra-a com cinto ou cabo de vassoura porque ela, descuidada, deixou quebrar uma garrafa de cerveja?

A miséria, governador. A miséria, como ensinam Fanon e Foucault, produz não apenas carência e vergonha, mas também revolta, ressentimento, desespero. Daí a importância de políticas sociais favoráveis aos excluídos, como fazem os governos do PT. Isso não significa que o PT seja sempre exemplar. Ao menos no quesito segurança pública, pois o atual governo da Bahia (31 mortos pela PM entre 28 de julho e 4 de agosto) parece seguir a mesma cartilha dos governadores Tarcísio de Freitas e Cláudio Castro: vista grossa à ação criminosa de policiais e narrativas tão hipócritas que soam ridículas, como de chacinas por “enfrentamentos” e “balas perdidas”, cujos responsáveis pelos disparos jamais são achados.

O belicismo bolsonarista fez escola e, agora, faz escala. Felizmente encontrou pela frente a ação determinada de um juiz, Alexandre de Moraes, e dos ministros Flávio Dino, Silvio Almeida e Anielle Franco. Os assassinos de Marielle Franco e Anderson Gomes que o digam, após anos de encobrimento do crime por policiais civis do Rio com o apoio de figuras do Judiciário. Agora, o fio da meada começa a ser desenrolado. Quantos ainda precisarão ser mortos no Guarujá para saciar a sede de vingança daqueles que deveriam zelar pela vida dos cidadãos e a ordem pública?

Como bem observou Freud, “o Estado proíbe ao indivíduo a prática de atos infratores, não porque deseja aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los”.

Frei Betto é assessor de movimentos populares e escritor, autor de “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.

Necropolítica

O capitalismo se pauta pela necropolítica, vocábulo derivado do grego antigo “nékros”, que significa “morto”. Em suma, a política que produz morte. Morte das pessoas e da natureza. Basta verificar como a maioria dos governos se comporta diante da desigualdade social e da crise ambiental. São raros os que, como o atual do Brasil, implementam políticas sociais para proteger e promover a população mais vulnerável, e adotam medidas eficazes contra a destruição do meio ambiente.

A necropolítica não enche vagões ferroviários de segmentos populacionais descartados pela política vigente rumo a campos de extermínio, como fizeram os nazistas. Ela é mais sutil. Promove a concentração de riqueza como valor supremo e empobrece milhões para que uma minoria possa usufruir das fortunas acumuladas. Investe mais em artefatos bélicos do que no combate à fome. E se fantasia de “economia verde ou sustentável” para desmatar florestas e extrair minerais preciosos.

Dotada de poderosa máquina de persuasão ideológica, a necropolítica suscita indignação frente à anexação da Crimeia pela Rússia, mas encobre de silêncio a apropriação usamericana da base naval de Guantánamo, em Cuba, e dos territórios palestinos pelos colonizadores judeus antissemitas. Ergue a voz para acusar a Rússia de apoderar-se da Ucrânia, mas nada diz da anexação de Porto Rico pelos EUA.

A necropolitica não usa câmaras de gás; ela destila o preconceito – a pobres, negros, gays, refugiados etc. – até que a exclusão os induza à privação da vida. Promove a precarização das condições de trabalho. Sobretudo, se apoia da indiferença diante dos vulneráveis, como fez o governo Bolsonaro ao não tentar impedir a morte de mais de 700 mil vítimas da Covid-19.

Como denuncia Saskia Sassen, cientista social holandesa, nas últimas décadas passamos de um sistema que, ao menos em parte, se preocupava com a inclusão da população no mercado de consumo (social-democracia), a um sistema de deliberada exclusão, agora acelerada pelas inovações tecnológicas que dispensam mão de obra.

A pandemia foi um alerta da natureza de que a espécie humana pode ser facilmente erradicada da face da Terra, como ocorreu aos dinossauros, caso se aprofunde a destruição ambiental. Curioso o fato de nenhuma outra espécie ser contaminada pela Covid-19, somente a humana. Ora, a natureza, cuja idade passa de 13,7 bilhões de anos, evoluiu milhares e milhares de séculos sem a nossa existência. Em nada necessita dos humanos. Pode prosseguir a sua jornada nas estrelas sem a nossa incômoda presença. Nós, no entanto, em tudo dependemos dela, da alimentação que nos mantém vivos à matéria-prima de todos os nossos artefatos, da roupa aos computadores.

Quando se vive em um sistema que promove a morte coletiva em função do lucro (guerras, drogas, seletividade, apropriação privada, exclusões etc.), isso provoca profunda insegurança, como no naufrágio do Titanic, quando cada um se agarrou à própria sobrevivência sem se importar com aqueles que não tinham acesso aos botes salva-vidas. É essa insegurança que, hoje, reforça a nova face da necropolítica: o autoritarismo. Ele produz a erosão dos valores democráticos que, em tese, se propõem a oferecer botes em que caibam todos. Agora se trata de salvar a elite, a primeira classe, aqueles que podem pagar pelo direito à vida.

Imagine um casal que leva o filho criança a um parque de diversões. O menino corre, brinca, interage com outras crianças, usufrui de uma liberdade e um espaço que não tem no pequeno apartamento em que mora. Súbito, ouvem-se o estampido de um tiro e a notícia de que um criminoso está à solta. A criança, apavorada, se agarra ao pai e à mãe, em busca de proteção e segurança.

É essa síndrome da insegurança que reforça o autoritarismo da necropolítica. E um bom exemplo, na América Latina, é o atual governo de Nayib Bukele em El Salvador. Em nome do combate à criminalidade, passou a dominar o Legislativo e o Judiciário e criou megaprisões, verdadeiros campos de concentração, que hoje abrigam mais de 100 mil presos, muitos deles sem provas ou culpa formada. A megaprisão inaugurada em Tecoluca, em fevereiro de 2023, comporta 40 mil detentos! É a maior do mundo.

Outro exemplo de necropolítica é a rejeição dos países europeus aos refugiados africanos e árabes, milhares deles naufragados no Mediterrâneo por falta de socorro. O capitalismo criou um estilo de vida tão bem moldado pelos filmes de Hollywood, que retrata uma “seleta espécie humana” que merece o direito à vida: branco, cristão e rico. Os demais são todos encarados como subprodutos da espécie e não merecem os mesmos direitos do núcleo seleto, como dignidade, saúde e educação.

Esse preconceito nos é incutido de tal modo que perdemos a capacidade de nos indignar. Já não nos perturba ver imagens de crianças latino-americanas fechadas em jaulas na fronteira do México com os EUA; famílias palestinas cercadas por soldados israelenses que as observam de marretas na mão, destruindo as próprias casas; corpos negros boiando no Mediterrâneo. Nem causa estupor ver países ricos revacinarem quatro ou cinco vezes suas populações e recusarem vacinas a países pobres.

A humanidade não é dada a autocrítica. É muito difícil os países europeus admitirem os genocídios praticados na África, na América Latina e na Ásia durante séculos, para explorar seus povos e riquezas. Agora, fecham as portas às suas próprias vítimas. Os EUA não admitem sequer a derrota que lhes foi imposta pelos vietnamitas; os genocídios atômicos de Hiroshima e Nagasaki (que Obama visitou, mas se recusou a, ao menos, pedir desculpas); a anexação a seu território de quase metade do México; as ditaduras sanguinárias emplacadas pela Casa Branca na América Latina, e outros tantos crimes de lesa-humanidade.

Só podemos enfrentar a necropolítica com a biopolítica. Não no sentido que Michel Foucault empregou a este termo, mas sim como projeto de redução da desigualdade social, defesa intransigente do meio ambiente, combate aos preconceitos, sobretudo ao racismo, misoginia, homofobia e fundamentalismo religioso.

Como alertava Marx, o caminho à humanização da humanidade é longo. Ou como diria Thomas Hobbes, filósofo do século XVI, ainda hoje “o homem é o lobo do homem”. Bem faz o papa Francisco ao propor uma economia alternativa ao capitalismo.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.