Quantos cabem em nosso planeta?

Na penúltima semana de setembro de 2022, o planeta Terra chegou a 8 bilhões de habitantes. Uma pergunta ficou no ar: quantas pessoas o nosso planeta suporta?

A presença humana já se estendeu a todo o espaço terrestre. Não há áreas “vazias”. Nossas impressões digitais já se encontram em toda parte. Em 2018, mergulhadores acharam um saco plástico 10,8 mil metros abaixo da superfície do mar, no fundo da Fossa das Marianas, no Oceano Pacífico, próximo a Filipinas. E lixo já foi encontrado nos cumes mais remotos do Monte Evereste.

A ciência declarou que nossos recursos naturais estão no limite. De tal maneira extorquimos a natureza – pois em tudo dependemos dela – que agora sofremos os efeitos dos desequilíbrios socioambientais: aquecimento solar, secas prolongadas, enchentes, alagamentos, ciclones e furacões mais frequentes etc. Nossa Casa Comum, como diz o papa Francisco, começa a desabar. Por isso, bilionários como Jeff Bezos investem fortunas para colonizar o espaço, prevendo que 1 trilhão de humanos poderão habitar os planetas do Sistema Solar…

Em 1994, pesquisadores da Universidade de Stanford, nos EUA, calcularam que, consideradas as condições da Terra, a população ideal deveria ficar entre 1,5 e 2 bilhões de pessoas. Ou seja, menos 6 bilhões.

Desde que o mundo é mundo o superpovoamento do nosso planeta traz preocupação. As plaquetas de argila encontradas no Iraque em fins da década de 1980, nas ruínas de Sippar, conhecidas como “Atra-Hasis”, e que datam do século XVIII a.C., já se referem à superpopulação. Por isso, os deuses, periodicamente, provocam fome, secas e inundações, para regular a densidade demográfica. O relato mítico do Dilúvio Universal, contido no texto bíblico do “Gênesis”, nada mais é do que uma nova versão de mitos mais antigos.

No poema épico “Atra-Hasis”, Enki previne o herói Atra-Hasis de que Enlil pretende erradicar a humanidade pela inundação. Aconselha-o a transformar o material utilizado para erguer a sua casa em um barco. Atra-Hasis constrói o barco no qual aloja a família e seus animais. A borrasca desaba com tanta força que até os deuses ficam com medo. Após sete dias, o dilúvio cessa e o herói agradece aos deuses. Na época em que o poema foi escrito, a população global não ultrapassava 50 milhões.

Platão, quatro séculos antes de nossa era, também se preocupava com o tema. A prosperidade fez a população de Atenas duplicar, o que provocou seu lamento: “O que resta agora é como o esqueleto de um corpo devastado pela doença; o solo rico foi levado; resta apenas a estrutura nua do local.” O filósofo advogou o estrito controle da natalidade pelo Estado e sugeriu que a cidade ideal não deveria ultrapassar 5 mil habitantes.

Em “A República”, Platão descreve duas cidades imaginárias, uma saudável e outra, “luxuosa e febril”, devido ao consumismo exagerado de cidadãos que “ultrapassam o limite de suas necessidades”. E isso por volta de 375 a.C.! Sem condições de saciar tanta voracidade e por necessitar de recursos extras, a população decide se apropriar das terras vizinhas, o que resulta na guerra. Situação que hoje – 24 séculos depois – se reprisa sobejamente.

Platão levantou uma questão pertinente ainda na atualidade: o problema reside no excesso de pessoas ou de consumo?

O teólogo Tertuliano, que viveu em Cartago na virada dos séculos II e III, acreditava que no ano 200 – quando a população mundial estaria, presumivelmente, em torno de 200 milhões (pouco menos que a do Brasil atual) – pois ignoravam os milhões de indígenas na Ameríndia -, o mundo inteiro já havia sido explorado e o planeta não suportaria mais gente. “A natureza não pode mais nos sustentar”, escreveu o teólogo, que mereceria, como Leonardo Boff, o título de ecoteólogo.

Em 1798, Thomas Malthus, pastor anglicano que dominava conhecimentos científicos, publicou “Um ensaio sobre o princípio da população”. Na época, o mundo contava com 800 milhões de pessoas, 10% da população atual. Frisou que todos gostam de comer e fazer sexo. E previu que com o aumento da população, que cresceria em proporção geométrica, faltariam alimentos, que cresceriam em proporção aritmética, para tanta gente.

Hoje, sabemos que ele se equivocou. O planeta produz alimentos para 11 bilhões de bocas. Portanto, 3 bilhões a mais do que o necessário. Não faltam alimentos e sim justiça. “Partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”, como reza a liturgia católica.

A partir do século XIX, a eugenia, disfarçada de controle populacional, foi progressivamente introduzida em vários países. Nos EUA, na década de 1970, grupos étnicos minoritários sofreram esterilizações forçadas. Em 1980, a China adotou a lei do filho único para cada casal. Quando lá estive, em 1988, um dirigente do Partido Comunista confessou que havia milhões de chineses inominados, ou seja, sem registro oficial, sobretudo na zona rural, cujas famílias necessitavam de braços para a lavoura.

Se conter o aumento da população foi uma preocupação nos séculos anteriores, no século XXI alguns países adotam medidas para incentivar a natalidade. No Reino Unido, já se pensou em instituir um imposto para as famílias sem filhos. Em 2019, a média era de 1,65 crianças nascidas por cada mulher. Índice abaixo do esperado. O número de nascimentos necessários para manter o mesmo tamanho populacional é de 2,07, embora a população ainda cresça devido aos imigrantes que chegam.

Há uma explosão demográfica? Prevê-se que entre 2070 e 2080 a população mundial será de 9 a 10 bilhões de pessoas.

O naturalista britânico Sir David Attenborough acredita que “todos os nossos problemas ambientais se tornam mais fáceis de resolver com menos pessoas, e mais difíceis — em última análise, impossíveis — de solucionar com cada vez mais pessoas”, disse em entrevista, em 2013.

O movimento antinatalista, que advoga o BirthStrike (greve de gestação) até que a emergência climática e a crise da extinção de espécies sejam resolvidas, foi motivado por uma pesquisa de 2017. A conclusão foi que botar um filho a menos no mundo desenvolvido poderia reduzir as emissões anuais de carbono de uma pessoa em 58,6 toneladas — valor 24 vezes superior à economia de não ter um carro. Ora, essa é uma visão elitista. O problema não é o excesso de pessoas, e sim de injustiça, com a concentração crescente de riquezas em mãos de um número sempre menor de superbilionários.

Relatório da Oxfam revelou que 2.153 bilionários do mundo possuem riqueza maior do que aproximadamente 60% da população global. Quer dizer, 4,6 bilhões de pessoas. Durante a pandemia, entre 2020 e 2021, a fortuna de 2.400 bilionários do mundo disparou de 8 trilhões de dólares para 12,4 trilhões, aumento de 54%, segundo Aimee Picchi (“Billionaires Got 54% Richer during Pandemie, Sparking Calls for ‘Wealth Tax’, CBS News, 31/03/2021). Na opinião de Gabriela Bucher, diretora da Oxfam Internacional, se os 10 homens mais ricos do mundo perdessem, amanhã, 99,999% de sua riqueza, ainda assim continuariam mais ricos do que 99% dos habitantes da Terra.

Apesar dos alarmes dos ambientalistas e das sucessivas Conferências do Clima, há uma demanda crescente por recursos naturais, especialmente entre os países mais ricos. Não é a superpopulação que provoca o desequilíbrio socioambiental, e sim o crescente nível de consumo de produtos supérfluos e a mentirosa demagogia de grandes empresas que, malgrado suas publicidades, agridem a natureza e impedem a sustentabilidade. Alegar que o problema reside no número de pessoas é querer transferir, injustamente, aos países mais pobres a culpa pelos desequilíbrios socioambientais.

Alguns países ricos, como a Alemanha, começam a se preocupar com o decréscimo de sua população nativa, progressivamente superada pelo crescente número de imigrantes. Em 2012, o governo de Singapura criou um recurso incomum para incentivar seus cidadãos a procriarem. Através de um rap, estimulou os jovens casais a terem mais filhos: “Vamos fazer um pequeno humano que se pareça com você e eu. Explorando seu corpo como um safári noturno, eu sou um marido patriota, você é uma esposa patriota. Deixe-me entrar em seu acampamento e fabricar uma vida…”, diz um trecho da letra. A música foi lançada em meio a temores sobre a taxa de fertilidade superbaixa de Singapura, que era de apenas 1,1 nascimento por mulher. Trata-se de um exemplo extremo do que tem se tornado realidade em países ricos, onde as pessoas se casam mais tarde e optam por ter menos filhos.

Muitos economistas defendem que quanto maior a população, mais bens ou serviços serão produzidos e consumidos. O crescimento populacional seria o melhor aliado do crescimento econômico. No entanto, a xenofobia e o racismo criam barreiras à entrada de novos imigrantes em países desenvolvidos, cuja população nativa apresenta baixa natalidade. Embora tanto se fale em “mundo globalizado” – na verdade globocolonizado – e haja cada vez mais interconexões entre os povos (vide a polarização provocada em todo o mundo pelas guerras na Ucrânia e em Israel), o “outro”, o estrangeiro, continua a ser encarado com suspeita, desconfiança e temor, como quem vem usufruir de um banquete para o qual não colaborou. Enquanto não houver mudanças culturais profundas, nossos discursos “humanitários” soarão como meras retóricas demagógicas para tentar encobrir o quão distante estamos de uma verdadeira ética da globalização.

Os parâmetros de progresso dos países metropolitanos são internacionalmente insustentáveis. No entanto, sua força hegemônica colonizadora impõe ao planeta um modelo de desenvolvimento altamente excludente e predador. Que família não gostaria de ter um veículo automotor e telefones celulares? Como convencer as pessoas a adotarem o modelo indígena andino do Bem Viver (oposto ao viver bem), em sintonia com a preservação do meio ambiente e reduzido nível de consumo supérfluo?

Um dos fatores da desaceleração do crescimento demográfico é a educação das mulheres. Quanto mais elas têm acesso à escolaridade e ao mercado de trabalho, a tendência é a redução do número de filhos.

Um estudo de 2014 constatou que, mesmo no caso de uma grande tragédia global, como uma pandemia mortal, uma guerra mundial catastrófica ou uma política draconiana de filho único implementada em todos os países do planeta — nenhuma delas desejável, claro — nossa população deverá chegar a 10 bilhões de pessoas em 2100.

Ainda que em um período de cinco anos, no meio do século, ocorresse um desastre de graves proporções que matasse 2 bilhões de pessoas, a população mundial chegaria a 8,5 bilhões nas próximas oito décadas. Segundo os autores desse estudo, aconteça o que acontecer é provável que o mundo registre um expressivo crescimento populacional até o próximo século.

Encontrar uma forma de viver em sociedade e proteger o meio ambiente pode ser o maior desafio que enfrentamos até agora.

O fato é que a espécie humana é a única em crescimento geométrico. E não temos como aumentar os recursos do planeta. A natureza nos é imprescindível, nos mínimos detalhes, da matéria-prima de nossas roupas aos sofisticados artefatos de viagens interplanetárias. E a recíproca não é verdadeira. A natureza, como ocorreu em mais de 13,6 bilhões de anos, percorreu sua trajetória evolutiva sem a nossa incômoda presença. E erradicou várias espécies da face da Terra, como os dinossauros.

Amanhã ela poderá eliminar também a humanidade, recuperar seu equilíbrio e, feliz e pujante, prosseguir seu caminho rumo às estrelas…

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.

Raízes Bíblicas do Sionismo do Estado de Israel

Sionistas são aqueles que advogam a supremacia do Estado de Israel e impedem que os palestinos tenham um Estado independente, inclusive com direito a terem, como todo Estado constituído, Forças Armadas.

O atual conflito entre israelenses e palestinos deita raízes na Bíblia, em especial no Livro de Josué, que teria sido escrito no século XII a.C. Nem tudo nele possui base histórica. Segundo o relato, Deus teria assumido postura de colonizador e dito a Josué, herdeiro de Moisés, quando o povo hebreu terminava a travessia do deserto após se libertar do Egito: “Atravessa o rio Jordão e entra na terra que dou aos filhos de Israel. Todo lugar que pisar a planta dos pés de vocês, darei a vocês conforme prometi a Moisés” (1,2-3).

Josué então enviou dois espiões a Jericó, onde foram acolhidos pela prostituta Raab, que figura na genealogia de Jesus descrita por Mateus (1,5). O rei de Jericó mandou expulsá-los, mas Raab os escondeu e, mais tarde, orientou-os na fuga.

A “terra prometida”, genericamente conhecida por Canaã, não era um espaço vazio. Compreendia todos os territórios nos quais se encontram, hoje, Líbano, Síria, Israel e Jordânia. Ali habitavam os povos cananeus: hiteus, heveus, ferezeus, girgazeus, amorreus e gebuseus, hoje conhecidos como palestinos. Na época do domínio grego, muitos passaram a ser conhecidos como fenícios, sobretudo os que viviam no litoral.

O assalto a Jericó resultou em um massacre, “passaram a fio de espada tudo o que nela se encontrava: homens, mulheres, crianças, velhos, e até mesmo bois, ovelhas e jumentos” (6,21). Só a traidora Raab (vista pela ótica palestina) ou a heroína Raab (vista pela ótica israelita) e sua família foram salvos. “Queimaram a cidade com tudo o que ela continha, exceto ouro, prata e todos os objetos de bronze e ferro” (6,24).

A maioria dos povos cananeus foi exterminada, exceto os gabaonitas, submetidos à escravidão, e os jebuseus, aos quais se concedeu o direito de continuarem a habitar Jerusalém. Já quase centenário, Josué instruiu o seu povo: “Reparti entre vós, por sorteio, todos esses povos que restam a combater; é a herança de vossas tribos, assim como aqueles que exterminei desde o Jordão até o mar Grande, do Ocidente (Mediterrâneo)” (23,4). E admitiu no fim da vida: “Dei-vos uma terra que não lavrastes; cidades que não construístes, onde agora habitais; vinhas e oliveiras que não plantastes, das quais comeis agora os frutos” (24,13).

O Livro de Josué, além de legitimar o sionismo, serviu de referência às Cruzadas e à colonização das Américas. A arqueologia comprova, hoje, que o relato não merece credibilidade histórica. Jericó, embora seja a cidade mais antiga do mundo, nem sequer existia naquela época.

Pesquisas arqueológicas indicam que muitas cidades cananeias, consideradas conquistas de Josué, não existiam no final do Bronze Tardio, dentre elas Jeboson, capital do amorreus, Sijon, Arad, Jericó e Hai, cujas quedas são descritas com detalhes.

Outras cidades, tidas por arruinadas pela conquista feita de uma só vez foram, na verdade, destruídas em um período de tempo de várias gerações. (Kochavi, M. “The Israelite Settlement in Canaan in the Light of Archeological Evidence”. Biblical Archaeology Today, Jerusalém, v. 40, n. 3, 1985).

Já que Moisés morreu antes de ingressar na “terra prometida”, o relato atribuído a Josué é uma forma de os israelitas compensarem a frustração mosaica.

É um erro tomar a Bíblia ao pé da letra ou como livro histórico ou científico. Trata-se de um documento religioso, repleto de mitos e enxertos de tradições mais antigas. É a hermenêutica rasteira, literal, que nutre o fundamentalismo. Como se Deus tivesse de fato reservado aquele território do Oriente Médio para um determinado “povo escolhido”. No entanto, esses textos antigos continuam a alimentar o imaginário e o comportamento dos sionistas, a ponto de o atual Estado de Israel, que se gaba de ser democrático, não possuir até hoje uma Constituição. É um Estado teocrático.

Enquanto o povo palestino não for reconhecido em seus direitos, como exige a ONU, a guerra não terá fim. Pode ter pausas, mas a tensão persistirá.

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

A mulher segundo Aristóteles e Tomás de Aquino

“O erro de Aristóteles. Mulheres poderosas, mulheres possíveis, dos gregos até nós”, é o título do livro de Giulia Sissa, professora de Ciências Políticas e Literatura Clássica e Comparada na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Ela analisa em profundidade os fundamentos que, ainda hoje, sustentam o machismo, a misoginia, o patriarcalismo e levam ao feminicídio.

Ao contrário de seu mestre Platão, que na “República” defende a igualdade entre sexos e a mesma educação para homens e mulheres, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), que tinha por hábito dissecar animais, se baseou em supostas bases biológicas para rechaçar qualquer possibilidade de igualdade. Defendeu inclusive a tese de que o cérebro das mulheres é menor que o dos homens.

Para Aristóteles, os homens são “quentes” e as mulheres, “frias”. Os primeiros são dotados de “thumos”, de ardor, e do “thumos” deriva a “andreia”, isto é, a coragem, virtude indispensável para combater, governar, manter-se firme na decisão tomada.

Já as mulheres são o oposto. Desprovidas de “thumos” e, portanto, de “andreia”, são incapazes de tomar decisões. E ao tomarem uma, não conseguem se manter firmes na decisão tomada.

O filósofo admite que as mulheres são até mais inteligentes e racionais do que os homens, devido à sua frieza, mas na falta de coragem não são confiáveis.

Essa lógica aristotélica conduz a um silogismo absurdo: como as mulheres são incapazes de governar, então devem se recolher ao lar, ficar afastadas da vida urbana e, silentes, obedecer a seus pais e maridos. “A relação de macho para fêmea é por natureza uma relação de superior a inferior e de governante a governado”, escreveu Aristóteles em “Política”.

Santo Tomás de Aquino (1225-1274), que popularizou o aristotelismo no Ocidente, abraça a tese de seu mentor intelectual e ainda adiciona um ingrediente no mínimo escabroso: além de inconstante e indigna de confiança, a mulher é um homem fracassado, um ser com defeito de fabricação – “femina est aliquid deficiens et ocasionatum”. Este preconceito fundamenta, ainda hoje, a noção de que a mulher é inepta ao sacerdócio por não ser um ser humano completo…

Segundo o Doutor Angélico, “naturalmente a mulher está sujeita ao homem, porque a discrição da razão naturalmente abunda mais no homem” (“naturaliter femina subiecta est viro, quia naturaliter in homine magis abundat discretio rationis”).

Assim, os homens seriam mais inteligentes e capazes que as mulheres. E estas, para bem desempenharem suas tarefas, devem ser guiadas pelos homens. Tomás cria um silogismo teológico: como Deus dotou os homens de superioridade cognitiva, só eles devem comandar e governar.

Como todos nós, Aristóteles e Tomás de Aquino eram pessoas ambíguas, contraditórias. Por isso, não podemos reduzi-los à sua postura misógina, pois os dois são alicerces sólidos da filosofia e da teologia. De Aristóteles recebemos a lógica, a metafísica, a ontológica natureza política do ser humano e princípios éticos fundamentais.

De Tomás, o maior filósofo e teólogo do período medieval, aprendemos a valorizar o mundo material; a autonomia da razão diante da fé; a liberdade de consciência, inclusive com direito a não professar nenhuma fé religiosa; a superação do dualismo platônico entre corpo e espírito; a pedagogia que valoriza a ação do educando no processo educativo.

Sobre este último tópico, recomendo o livro de meu confrade frei Carlos Josaphat, “Tomás de Aquino e Paulo Freire”, Paulus, 2016. Santo Tomás compara o educador ao médico e ao agricultor. Assim como o médico não produz a saúde, mas favorece o empenho do paciente em recuperá-la; e o agricultor não desenvolve a planta, mas cria as condições para ela crescer e frutificar, o educador deve valorizar os talentos e os conhecimentos do educando e torná-lo sujeito de seu processo educativo.

Se é anacronismo chamar Tomás de Aquino de paulofreiriano, não é exagero qualificar Paulo Freire de pedagogicamente tomista.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

Padres casados, mulheres sacerdotes e relações homoafetivas

O papa Francisco propõe debater temas considerados tabus na Igreja Católica, como o sacerdócio de homens casados, a bênção matrimonial a casais homoafetivos e o direito de as mulheres terem acesso ao sacerdócio. Para isso, convocou o Sínodo dos Bispos, cuja primeira sessão ocorre, em Roma, nesse mês de outubro (4 a 29).

Pela primeira vez estarão presentes 54 mulheres com direito a voto. Contudo, embora haja 70 leigos no Sínodo, 75% são bispos e cardeais. Ao todo, 464 participantes.

Francisco é o único monarca absoluto do Ocidente. Monarca absoluto, como o rei da Arábia Saudita, é aquele que nenhuma instância pode questioná-lo ou julgá-lo. Quisesse decidir sozinho sobre questões polêmicas, Francisco poderia fazê-lo. Mas como procura imprimir à Igreja um caráter mais democrático, prefere consultar as bases e atuar em regime de colegialidade.

Pelo menos cinco cardeais nomeados por João Paulo II e Bento XVI, pontífices conservadores, já se manifestaram contra a ordenação de mulheres e a bênção à união de pessoas do mesmo sexo. Confundem doutrina, um legado histórico, com revelação divina, também sujeita à interpretação, como o comprova a própria história da Igreja.

A misoginia é uma forte característica da Igreja Católica e destoa inteiramente dos evangelhos. Lucas (8,1) cita os nomes das mulheres integrantes da comunidade de Jesus; João (4,5-42) ressalta que a samaritana foi a primeira apóstola ao anunciar Jesus como Messias; e Marcos (16,6) registra que Maria Madalena, proclamada “Apóstola dos apóstolos” pelo papa Francisco, foi a primeira testemunha da ressurreição de Jesus.

Excluir as mulheres do sacerdócio e do episcopado, inclusive com direito a serem cardeais e eleitas papas, é um preconceito machista que não se justifica em pleno século XXI. O mesmo vale para o celibato obrigatório. Das 24 Igrejas vinculadas à comunhão católica, apenas a sediada em Roma exige que seus sacerdotes sejam homens solteiros, embora todos saibam que Jesus escolheu um homem casado, Pedro, para ser o cabeça da primeira comunidade cristã (Marcos 1,30).

Muitos na Igreja confundem heranças culturais com revelação divina. E por ignorar noções elementares de antropologia, julgam que o atual modelo predominante de família heterossexual é universal e perene. Ora, para a Bíblia o fundamento da relação entre pessoas é o amor. Onde há amor, aí está Deus.

Hoje, nenhuma paróquia católica pode negar o batismo a filhos de casais homoafetivos. Não é essa uma maneira de admitir a sacramentalidade da união dos pais ou mães dessas crianças?

Desconfio de que certos clérigos têm uma visão pornográfica da mulher e dos gays. O mais preocupante, porém, é ainda a Igreja considerar a procriação como objetivo superior à comunhão de amor no casamento. As pessoas não se unem para ter filhos, mas por amor. Fosse o contrário, deveria ser considerado nulo o matrimônio de um casal estéril.

O que se pode esperar de filhos cujos pais não se amam? Não devemos nos aproximar de Deus para evitar as penas do Inferno ou obter a salvação. Mas por amor, sobretudo aos nossos semelhantes – imagens vivas de Deus. Não há experiência humana tão feliz e plena quanto a do místico que vive em estado de paixão pela Trindade.

Não há um só caso nos evangelhos em que Jesus tenha repudiado uma mulher, como fez com o governador Herodes Antipas (Lucas 13,32). Ou proferido maldições sobre elas, como fez com os escribas e fariseus (Mateus 23). Com mulheres, Jesus se mostrou misericordioso, acolhedor, afetuoso e exaltou-lhes a fé e o amor.

É chegada a hora de a Igreja assumir o seu lado feminino e abrir todos os seus ministérios às mulheres. Afinal, metade da humanidade é mulher. E, a outra metade, filha de mulher.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

Poder & competência

Platão, na República, sonhou com uma cidade-modelo governada por filósofos, homens competentes por dominarem o mais refinado saber. Assim, reforçou a ideia de que a competência política e administrativa estaria associada à formação intelectual. Filhos da plebe não seriam pessoas indicadas para o poder.

O próprio Platão aceitou o convite de Díon para ser o conselheiro de seu sobrinho, o jovem Dionísio, que por volta de 367 a.C. herdou o reino de Siracusa, na Sicília. O apreço pelos livros não livrou o governante da suspeita de que Díon e Platão conspiravam contra ele. Envaidecido de seu saber, baniu Díon da corte e manteve Platão sob vigilância até que retornasse a Atenas.

Em 361 a.C., Dionísio convidou o filósofo a voltar a Siracusa. Platão resistiu, mas Díon alegou que o rei demonstrava um gosto verdadeiro pela filosofia. Platão rumou para a Sicília, onde esforçou-se para que Dionísio anistiasse o tio, permitindo que retornasse do exílio. Inabalável, o rei confiscou os bens de Díon e reteve o filósofo em Siracusa.

Após um ano, Platão, decepcionado com a obtusidade de seu discípulo, conseguiu deixar o reino e, em Olímpia, por ocasião dos famosos jogos, reencontrou Díon, a quem narrou suas desventuras. Díon decidiu vingar-se de seu sobrinho e, após entrar clandestinamente em Siracusa, apoderou-se do palácio de Dionísio. Uma vez no poder, aquele a quem Platão depositava a esperança de afirmar-se como político-filósofo, revelou-se um governante autoritário. Sua prepotência superava a inteligência. Morreu assassinado por seu amigo Calipo, que o ajudara a ocupar o trono.

Decepcionado, aos 75 anos Platão convenceu-se de que a política é capaz de corromper os homens mais cultos, pois a ética não é necessariamente filha do saber, nem a competência administrativa resulta da bibliografia consumida. Dedicou-se, então, a escrever sua última obra, as Leis, onde trata da institucionalidade política e das normas que devem reger a convivência dos cidadãos. Preferiu confiar nas estruturas democráticas que na retórica dos governantes.

O Brasil, desde Cabral, sempre foi governado por nobres e doutores, generais e diplomados, sem que houvesse competência para impedir a crescente miséria e evitar a perda de nossa soberania. Hoje, impressiona quando se diz que um homem público é Ph.D. A abreviação significa “doutor em filosofia”, ainda que ele seja formado em economia ou direito. É um tributo a Platão essa suposição de que o título de doutor torna a pessoa mais sábia. Ledo engano, infelizmente. A sabedoria reside no coração, onde são cultivadas as virtudes e os valores. E, felizmente, Lula veio quebrar o paradigma.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.