60 anos do Golpe Militar

Este é um ano emblemático: o golpe militar de 1964, que suprimiu a democracia brasileira até 1985, faz 60 anos. A trágica morte de frei Tito de Alencar Lima, em consequência das torturas aplicadas por militares, completa 50 anos. E, pela primeira vez, militares golpistas são denunciados e investigados pela Justiça civil por atentarem contra nossas instituições democráticas.

A história nos revela um triste retrato das Forças Armadas brasileiras. Cometeram atrocidades na Guerra do Paraguai e jamais admitiram o genocídio promovido. Excluíram, por muito tempo, negros e judeus das fileiras do oficialato. Atentaram diversas vezes contra a democracia e forjaram, em 1937, o Plano Cohen para implantar a ditadura do Estado Novo. Em 1964, deram o golpe e instauraram o terror com o golpe no golpe – o Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968.

Ao longo de 21 anos, o terror de Estado prendeu, torturou, assassinou, exilou, “desapareceu” e baniu brasileiros e brasileiras que lutavam em defesa da democracia. Nenhum assassino, torturador e estuprador foi punido. A esdrúxula Lei da Anistia isentou os militares dos crimes cometidos. É lamentável ver, ainda hoje, professores de história, em salas de aula, tergiversarem sobre este trágico passado.

Grave erro que fez chocar o ovo da serpente: o governo Bolsonaro com sua sanha golpista. As investigações da Polícia Federal trazem à tona, com provas robustas e clareza de detalhes, as armações arquitetadas, dentro do Palácio do Planalto, pelo ex-presidente, seus ministros e auxiliares, para suprimir o processo eleitoral, anular as instituições democráticas e voltar a fazer do Brasil uma ditadura. Ali se semeou o atentado terrorista de 8 de janeiro de 2023 que destroçou, em Brasília, a Praça dos Três Poderes.

Deviam estar todos presos. Um presidente, seus ministros e assessores, que planejam executar um golpe de Estado, destruir as instituições democráticas, rasgar a Constituição e jogar a nação no caos, não podem ficar impunes, como no passado. A certeza de impunidade os induziu a ignorar, sem escrúpulos, os limites constitucionais.

As Forças Armadas brasileiras se julgam acima da lei. Atuam como um partido político que prescinde de eleições, jamais deixam de usufruir de poder e participar do governo. Consomem somas exorbitantes do orçamento da nação e seus oficiais recebem sinecuras.

60 anos do golpe, 50 anos da morte de frei Tito, ano de implosão do presumido golpe bolsonarista – há muito a comemorar, no sentido etimológico de fazer memória, para que tais atrocidades não se repitam no futuro; sejam severamente punidos os crimes do passado e do presente; ponha-se fim ao caráter de casta do oficialato; e os integrantes das Forças Armadas envolvidos fiquem sujeitos ao Ministério da Justiça. Em defesa da pátria, da democracia e da justiça social.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras); “Batismo de sangue” (Rocco); e “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.

Revolução das Consciências

A Unesco aprovou, em 1976, o Informe MacBride, elaborado por Sean MacBride, Prêmio Nobel da Paz e Prêmio Lenin da Paz, sobre o direito de todos os povos participarem equitativamente dos meios de informação e comunicação. Marshall McLuhan e Gabriel García Márquez o aplaudiram; Ronald Reagan vaiou…

O Informe adverte sobre os perigos da monopolização midiática, o poder de alguns veículos de impor um modo de pensar, agir, consumir e divertir-se. Como alerta Fernando Buen Abad, tais veículos são verdadeiras usinas de políticos e governos.

“O velho mundo morre. O novo demora a nascer” (Gramsci). Hoje, as plataformas digitais são verdadeiras Hidra, o monstro de sete cabeças. E ainda não apareceu um Hércules que possa matá-la. Em minha opinião, as plataformas só deixarão de disseminar seu veneno no dia em que houver uma regulação internacional sob controle do poder público. Enquanto elas detiverem o monopólio privado de manipular informações, a democracia estará severamente ameaçada pelo surgimento de figuras histriônicas e perversas como Bolsonaro, Milei e Bukele, para ficar apenas em exemplos latino-americanos.

Os governos progressistas raciocinam, em geral, pela lógica do sistema. Centram suas pautas no desenvolvimentismo, como investimentos em infraestrutura, o que amplia os postos de trabalho e melhora as condições de vida da população. Priorizam também o combate à inflação, o aumento dos salários, e o acesso à alimentação, saúde e educação.

Tudo isso é positivo, mas não suficiente. É preciso algo mais: a revolução das consciências. Sem isso não se forma uma cultura democrática, de respeito aos direitos humanos, à diversidade, e de cuidado do meio ambiente.

A democracia precisa ser libertada de seus vícios conservadores e emancipada da apropriação burguesa. Não pode perdurar como mero jogo de aparências, refém, de fato, do capital financeiro, ou seja, da minoria rica e poderosa da sociedade. Faz-se imprescindível um trabalho educativo que forme consciência crítica e desperte a sensibilidade indignada frente à opressão, à discriminação e à violência.

A comunicação é, hoje, uma questão de saúde pública. Não se pode admitir que os interesses do mercado estejam acima dos direitos da coletividade. E não é com fraseologia de esquerda que vamos politizar o povo. É com método pedagógico e educação crítica. Eis a única forma eficiente de combater as armas de guerra ideológica do neoliberalismo.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

Sistema de Sentido e Trabalho de Base

O que mobiliza multidões? A resposta está no sionismo do governo de Israel. Está também nos fundamentalismos cristão e muçulmano. O que mobiliza multidões são narrativas religiosas que imprimem sentido à vida e, inclusive, à pós-vida.

Os judeus sionistas estão convencidos de que são o povo eleito por Deus, preferidos a todos os outros povos, e que a Palestina é territorialmente a área reservada a eles pela promessa de Javé de que haveriam de habitar a Terra Prometida onde “corre o leite e o mel” (embora ali corra mais vinho e azeite). Do mesmo modo, os católicos pré-Vaticano II estavam convencidos de que “fora da Igreja não há salvação”.

Nas páginas revestidas de sacralidade da Torá, da Bíblia e do Alcorão, sucessivas gerações encontraram um sentido pelo qual vale a pena viver… e até mesmo morrer. Vide o panteão de mártires cristãos e de santos e santas que teriam seguido à risca a vontade divina e, por isso, merecem ser elevados aos altares, aglomerar devotos, suscitar efemérides e erguer santuários alvos de incessantes peregrinações.

Por mais que o sistema capitalista tente nos incutir a mercadoria como valor supremo, as narrativas religiosas, com suas abordagens mistéricas, transcendentes, miraculosas e enigmáticas, conseguem suscitar devotos que trocam o conforto de suas famílias ricas pela vida sacrificada de padres e pastores inseridos no meio dos pobres. Induziram o multimilionário Bin Laden a abandonar o luxo de sua família saudita por uma existência arriscada nas sendas do terrorismo. Convencem um governo teocrático, como o de Israel (que não possui Constituição), de que os palestinos devem ser expulsos a ferro e fogo das terras de seus ancestrais cananeus.

É esta apropriação do sentido que empodera, hoje, as Igrejas pentecostais e neopentecostais, e tornam muitas delas surdas à teologia de amplitude social da Teologia da Libertação. Enquanto as Comunidades Eclesiais de Base leem a Bíblia como proposta de transformação da sociedade, as Igrejas evangélicas, com raras exceções, o fazem como uma proposta de mudança pessoal (metanoia). Não há que combater o opressor, e sim o diabo. Se alguém acumula fortuna é porque Deus o abençoou por ter sabido evitar vícios como fumo, bebida e prostituição e, assim, galgar os degraus da meritocracia.

Se a esquerda e os setores progressistas pretendem, hoje, conquistar adeptos e neutralizar os avanços da direita, não vejo outro caminho senão ganhar a guerra das narrativas, como ocorreu em décadas passadas. Desenvolver o pensamento crítico através da arte, da academia, dos veículos de comunicação, como as redes digitais e, sobretudo, do trabalho de base no meio popular, me parece ser a tarefa prioritária na atual conjuntura. Promover educação política segundo a pedagogia e a metodologia de Paulo Freire se impõe como desafio urgente.

Políticas sociais angariam votos dos beneficiários, mas não mudam necessariamente consciências e atitudes. Isso só se consegue quando se abraça um novo sistema de sentido, como as narrativas historicamente produzidas pelo marxismo e pela Teologia da Libertação. Investir em educação popular deveria ser, inclusive, prioridade de governo.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.