Deus feito pão

Quem ainda brinca no domingo de Páscoa e esconde ovos de chocolate? Resta em nós a perene idade da inocência. A ternura denuncia a veracidade do amor, sublinha Milan Kundera. Recôndito no qual evocamos, nostálgicos, missas de domingo, procissões sob andores cercados de velas, o toque salvífico da água benta, o silêncio acolhedor de igrejas que o gótico não teve vergonha de desenhar como vulvas estilizadas.

Jesus ressuscitou! – celebra esta festa de aleluias. Ainda que a razão não alcance a dimensão do fato pascal, a intuição capta a crise da modernidade a nos induzir a um mundo de enigmas. Mundo sombrio, onde os mortos se sobrepõem aos vivos.

Até o advento do Iluminismo, a inteligência recendia a incenso. Copérnico e Galileu decifraram a harmonia da natureza como reflexo do Criador, e Newton acertou seus cálculos pelos ponteiros dos relógios das catedrais. Logo, o dilúvio inundou os claustros. A razão irrompeu soberana e relegou à superstição tudo que não fosse mensurável. Então, o mistério aflorou.

De que valem perguntas quando se julga possuir todas as respostas? Voltaire e os enciclopedistas ousaram secularizar a inteligência e, mais tarde, Baudelaire e Rimbaud tatearam ávidos em busca de um Deus capaz de lhes aplacar a sede de Absoluto. Dostoiévski revestiu-se da figura emblemática de Jesus, despiu seus monges das vestes eclesiásticas, escancarou-lhes a alma atormentada pelos demônios da dúvida.

Nietzsche roubou o fogo dos deuses e incendiou de liberdade o espírito humano. Sartre proclamou que o inferno são os outros e erigiu o absurdo da morte em ato final que destitui a vida de qualquer sentido.

Entre angústias e utopias, o último século foi também marcado pelo enigma Jesus. Corações e mentes o acolheram como paradigma: Claudel, Simone Weil, Mauriac, Chesterton, Péguy, Graham Greene, Schweitzer etc. No Brasil, Murilo Mendes, Sobral Pinto, Gustavo Corção, Tristão de Athayde, Clarice Lispector, Hélio Pellegrino etc.

Hoje, pavores transcendentais já não atribulariam a alma poética de William Blake. Entre tanta miséria, esvai-se o encanto. Jesus é Deus que se fez homem e, de homem, virou pão. Pai Nosso/pão nosso. Esta concretude assusta. A fé cristã não proclama a ressurreição da alma, mas “da carne”.

Jesus não é a figura do Olimpo grego enaltecida pela força irrepresável da literatura. É o judeu crucificado, por razões político-religiosas, na Palestina do século I, cujas aparições, como ressuscitado, contradizem as regras da ficção literária.

Antes de cair em mãos da repressão que o assassinou, Jesus fez-se comida e bebida. Poeta e profeta, dominava a linguagem dos símbolos. Eis aqui o desafio atual à inquietude da inteligência. O pão repartido passa a ser corpo divino; o vinho partilhado, aliança feita com sangue e prenúncio da festa sem fim.

O Deus de Jesus não é um velho Narciso à cata de adoradores nem um algoz irado com os pecadores. É Abba, o pai amoroso (“mais Mãe do que Pai”, diria João Paulo I), cujo dom maior é a vida.

O que vemos, de Gaza a Porto Príncipe, é escabroso comparado à engenharia marcial dos exércitos em conflito: a estrada rumo ao futuro palmilhada de corpos degradados e famintos. Hoje, tropeça-se na rua em seres esquartejados em sua dignidade. Todos os discursos oficiais e ajustes fiscais ofendem a condição humana por exaltarem a concentração da riqueza e ignorarem a partilha da vida. Em sua hipocrisia, o sistema salva sua aura cristã e exclui o pão. A metafísica monetarista estabiliza moedas e desestabiliza famílias; socorre bancos e multiplica o desemprego; abraça o mercado e despreza o direito à vida – e vida em abundância, para todos.

Agora, a globocolonização despolitiza, o esoterismo desculpabiliza e o consumismo individualiza. Livres de ideologias messiânicas, de culpas aterrorizadoras e de altruísmo coletivo, estamos à deriva neste novo século, cujas pitonisas proclamam que “a história acabou”.

Páscoa é travessia – também para uma ética política, que torne o pão acessível a cada boca e o vinho alegria em cada alma. Somos nós que, em vida, precisamos ressuscitar as potencialidades do espírito, premissas e promessas de verdadeira dignidade humana.

Num misto de Marcel Proust e Caçador da Arca Perdida, necessitamos urgentemente empreender a busca da consciência perdida, onde a solidária indignação contra as injustiças tenha cheiro de madeleines apetitosas. Caso contrário, seremos engolidos por esses simulacros de pirâmides – os shopping centers – que sequer têm estrutura para contar à posteridade quão grande foi a pobreza de espírito de uma geração que tinha, como suprema ambição, meia dúzia de engenhocas eletrônicas.

FELIZ PÁSCOA!

Frei Betto é escritor, autor do recém lançado “Jesus rebelde – Mateus, o evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros.

Michels e partidos de esquerda

As instituições (partidos, sindicatos, igrejas etc.) que nascem com ímpeto inovador, profético, revolucionário, tendem a se tornar burocráticas, oligárquicas, contrárias à proposta de origem. Esta a tese defendida por Robert Michels (1876-1936) em seu clássico “Sociologia dos partidos políticos”, publicado em 1911.

Segundo Max Weber, Michels se desiludiu com a ala esquerda do SPD (Partido Social-Democrata) da Alemanha. Acusou-o de “eleitorarismo”, voltado quase que exclusivamente para ganhar eleições; de “parlamentarista”, no sentido de restringir a atuação política ao jogo parlamentar; e de “oportunismo” dos líderes, preocupados prioritariamente em se manter na crista da onda política.

Falecido na Itália em 1936, Michels teve sua tese comprovada pela burocratização stalinista do Partido Comunista da União Soviética e por tantos outros partidos que, brotados das lutas populares, se transformaram em aparelhos eleitorais de uma oligarquia política.

É possível manter o frescor originário de um partido gestado nas lutas populares, em especial sua democracia interna? Esta a indagação do sociólogo alemão que, desiludido, acabou próximo ao fascismo italiano.

Muitas questões levantadas por ele continuam sem respostas. Como articular, dentro de um mesmo partido, diferentes tendências ideológicas? Como assegurar o controle democrático da direção partidária pelas bases? Como evitar que a direção inverta o rumo e passe a tornar a base submissa às suas determinações? Como as bases podem dispor de canais pelos quais interfiram efetivamente nas decisões da cúpula partidária?

Gramsci se debruçou sobre essas questões. O desafio de encontrar respostas o inquietava. Embora defendesse a democracia partidária, admitia que, para conquistar um Estado verdadeiramente democrático, seria necessário “um partido fortemente centralizado” (“Maquiavel, a política e o Estado moderno”).

Democracia é como roupa – todos usam, mas cada um adota um figurino diferente. Como testemunha a atual conjuntura global, em nome da democracia se praticam as mais execráveis atrocidades.

Há políticos que se suicidam, como Hitler e Vargas. Mas não há políticas suicidas, aquelas que, implementadas, ameaçam a liderança partidária. A “consulta às bases” é feita com a devida precaução, sem que haja o risco de os atuais líderes serem defenestrados do poder pelos filiados ou correligionários.

Michels acreditava que um partido de esquerda só pode sobreviver legalmente na democracia burguesa ao abdicar de seu programa socialista e compactuar com o establishment. Isso, no entanto, só é possível verificar quando o partido ocupa postos de governo. Enquanto permanece fora das esferas de governo, destituído de poder institucional, todo seu discurso de esquerda ecoa como latidos de cão raivoso aos ouvidos da elite que efetivamente governa. O perigo é quando o cão logra abocanhar considerável parcela de poder. Então a elite hegemônica trata de acionar suas artimanhas para neutralizar a força política da esquerda.

A mais determinante é o dinheiro. Manter-se na esfera do poder exige dinheiro, e quem tem não são as bases que votam no partido de esquerda. É a elite que, ainda que não ocupe o governo, jamais deixa de ter poder. E dinheiro em eleição significa investimento. Ninguém investe para perder dinheiro.

Neste ano de 2024, cada um dos 513 deputados federais receberá R$ 19.428.112,42 em emendas parlamentares. Os de direita costumam usar essa fortuna para multiplicar seus votos e recursos, como o deputado que indaga do prefeito de sua base eleitoral o que deseja. Cinco escolas, responde o prefeito. Sem problemas, desde que o deputado indique a empreiteira e tenha o controle da licitação fajuta para assegurar recursos à sua próxima campanha eleitoral.

Os partidos de esquerda não podem ignorar a mídia. Não se ganha eleição com panfletos xerocados. Nem com discursos na praça da cidade. Exigem-se marqueteiros que dominem os segredos de sedução do eleitor. E marqueteiros custam caro.

Portanto, não há como negar o profetismo político de Robert Michels ao defender a tese, até agora confirmada pela história, de que todo partido de esquerda que insiste em disputar espaço na institucionalidade burguesa termina por ser cooptado por ela, em vez de transformá-la.

Quem diz organização, diz tendência para a oligarquia, observa Robert Michels. A mecânica interna da organização tende a ser considerada mais importante do que a atuação da base militante. Esta passa a trabalhar para sustentar aquela, inclusive financeiramente. Aos poucos, o corpo dirigente de profissionalizados se deixa absorver pelas tarefas de administração e abandona o trabalho de emulação, que consiste em aprimorar a educação política e priorizar os valores éticos. E a disputa de poder dentro da organização secciona-a, horizontalmente, em tendências e facções. Do ponto de vista vertical, o partido se reduz a uma minoria dirigente que se impõe à maioria dirigida.

“Teoricamente o chefe não é mais do que um empregado, submisso às instruções que recebe da base”, observa Michels. “Sua função consistiria em receber e executar as ordens desta última, da qual é apenas um órgão executivo. Mas, na realidade, à medida que a organização se desenvolve, o direito de controle reconhecido às bases torna-se cada vez mais ilusório. Os filiados têm de renunciar à pretensão de dirigir ou mesmo supervisionar todos os assuntos administrativos.”

É essa distorção, da qual em geral os partidos de esquerda não escapam, que possibilita reduzir ou até mesmo extinguir o controle democrático das bases. E a direção trata de ampliar o número de filiados que lhe reforce o poder, sem critérios de formação política, identificação ideológica e análise da vida pregressa.

Segundo Proudhon, os representantes do povo, mal alcançam o poder, já se põem a consolidar sua força. Envolvem incessantemente suas posições com novas trincheiras defensivas até conseguirem libertar-se completamente do controle popular. É um ciclo natural percorrido por quase todo poder: emanado do povo, acaba por se colocar acima do povo.

A cabeça pensa onde os pés pisam. Um antídoto aos riscos apontados por Michels é a profunda ligação com os segmentos populares, o trabalho de base, a capacidade de ouvir críticas e se submeter à soberania da militância. E, sobretudo, não trocar o atacado pelo varejo – um programa de democracia verdadeiramente popular, tanto em nível político quanto econômico.

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.

Democracia real e possível

Há um crescimento do neofascismo no mundo. A diferença entre fascismo e neofascismo é que o primeiro era estatizante; e o segundo é privatizante, como expressão política do neoliberalismo. Diante dessa realidade conturbada, em que o fundamentalismo político se reveste de antipolítica, vale refletir sobre a natureza e o caráter da democracia, considerada valor universal.

Ao desabar o Muro de Berlim, em 1989, pensou-se que o fim da União Soviética significaria o auge da democracia no mundo. Até mesmo os países periféricos se abririam ao comércio internacional e adotariam formas de governo respeitosas aos direitos humanos e à vontade popular. Enfim, a modernidade alcançaria a sua maturidade.

Esse sonho desabou com a queda das Torres Gêmeas de Nova York, em 2001. As agressões do governo dos EUA a países como Iraque, Afeganistão, Síria e Líbia; o apoio da Casa Branca às petroditaduras, como a da Arábia Saudita; a ascensão da China; e a crise financeira de 2008 escancararam as desigualdades sociais agravadas pelo capitalismo e, agora, aprofundadas pela pandemia. Na atualidade, a guerra na Ucrânia que, na verdade, é um conflito geopolítico entre EUA e Rússia, e a reação “insana”, como disse Lula, do Estado sionista de Israel aos ataques do Hamas, agudizam a crise global.

O triunfo da modernidade, imaginado por Fukuyama (“a história acabou”), fracassou frente à postura dos EUA de polícia do mundo, reforçada pela eleição de Donald Trump, a vitória do Brexit no Reino Unido e, agora, pelo mandato bélico de Biden e a manipulação expansionista da Otan.

Ao indagar “que futuro tem a democracia?”, Norberto Bobbio respondeu, antes da queda do Muro de Berlim, que é preciso conhecer o histórico da democracia para avaliar suas perspectivas. Nasceu em Atenas, no século VI a.C., já marcada por agudas contradições: a cidade tinha 400 mil escravos e apenas 20 mil cidadãos livres com direito a voto, excluídas as mulheres.

Uma das ambiguidades da democracia é adotar, ao longo da história, diferentes formas de governo (presidencialismo, parlamentarismo etc). A mais acentuada ambiguidade é não coadunar a democracia política com a democracia econômica. Ao contrário, nas mais exaltadas democracias atuais, como a dos EUA, reina a mais descarada antidemocracia econômica, com uma elite biliardária e a população empobrecida excluída de acesso a direitos fundamentais, como a saúde.

Os EUA têm cerca de 327 milhões de habitantes. Embora 10,5% da população estadunidense se encontrem na pobreza, a fortuna dos 400 cidadãos mais ricos chegou a US$ 4,5 trilhões em 2021 (Revista Forbes). Para se ter uma ideia de quanto isso significa, basta lembrar que o PIB do Brasil, em 2022, foi R$ 9,9 trilhões, o equivalente a mais ou menos US$ 2 trilhões!

A democracia nasceu na Grécia como uma espécie de colchão entre grandes e pequenos proprietários rurais, entre a aristocracia e os pequenos comerciantes, artesãos e navegantes. Ao atribuir ao povo, reunido em assembleia, o governo da comunidade política, conseguiu-se manter a desigualdade como resultado do pacto entre proprietários e a exclusão de servos e escravos.

Esse modelo primitivo de democracia, de soberania direta do povo, só foi possível em cidades com reduzido índice populacional. Por isso, ao ressurgir no século XVIII, adotou-se o sistema representativo. Hoje representativo dos segmentos da elite. Para os demais, permanece como meramente delegativo (vota-se periodicamente) e muito distante do ideal participativo.

Como “governo do povo pelo povo” a democracia é inviável em uma sociedade marcada pela desigualdade, onde a minoria detém a maioria das riquezas. Por isso, historicamente a elite sempre adotou um discurso supostamente universal (como “eleições livres e democráticas”) para restringir, na prática, o acesso da maioria ao controle da economia e do poder político. E quando surge um governo empenhado em favorecer a maioria, o resultado é bem conhecido: a elite mostra sua verdadeira face tirânica e o derruba com golpes, quarteladas ou artimanhas jurídicas.

Não devemos, entretanto, abdicar da soberania popular, como se fosse inalcançável. O caminho para atingi-la é aprofundar a conscientização, a organização e a mobilização das forças populares progressistas, agudizando as contradições sociais. Se é para defender a propriedade privada, que todos tenham direito e acesso a ela. E que se criem mecanismos mais eficientes para impedir a acumulação da riqueza – que é uma produção social – em mãos de poucos. Os privilégios do capital são incompatíveis com a primazia dos direitos humanos em uma verdadeira democracia.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

Sobrevivo há oito décadas

Completo 80 anos no segundo semestre. Surpreendo-me. Porque a morte, várias vezes, andou por perto como um alçapão que se abre, inesperadamente, sob meus pés. Aos 11 anos, caí entre as rodas dianteira e traseira de um caminhão, em cuja carroceria eu me dependurara como carona para subir a rodovia BR-3, em Belo Horizonte. Por muito pouco não fui esmagado.

Aos 13, fui prensado entre o bonde e a carroceria de um caminhão que descarregava bebidas num bar, na rua Siqueira Campos, no Rio. Eu estava no estribo e retornava da praia. Ficaram-me algumas cicatrizes. Aos 15, em Belo Horizonte, capotei no carro dirigido por Toninho da Mata que, mais tarde, viria a ser tornar astro do automobilismo.

Aos 20, no Rio, fui violentamente espancado pelos agentes do famigerado Cenimar, Centro de Informações da Marinha, hoje Centro de Inteligência da Marinha. Eu havia sido confundido com Betinho que, mais tarde, fundaria a Ação da Cidadania contra a Fome. Entreguei-me a Deus, até por falta de alternativa.

Aos 25, em Porto Alegre, caí de novo em mãos dos algozes da ditadura militar. Esperei o pior. Sobrevivi à fase inicial, mas psicologicamente me preparei para um destino trágico. Meses depois, os sentinelas do Presídio Tiradentes, em São Paulo, apontavam seus fuzis para os presos políticos em períodos de sequestros de diplomatas. Todos os nossos contatos com o exterior eram cancelados, inclusive visitas de advogados. A palavra fuzilamento ressoava recorrente.

Transferido para o meio de presos comuns na metade dos quatro anos em que fiquei engradeado, admiti que facas e estiletes poderiam me ameaçar de abuso ou extorsão. Fui salvo pela fama de “terrorista”. O vocábulo subiu à cabeça dos companheiros e passei a ser respeitado como um capo da máfia. Tinham mais medo de mim do que eu deles.

Aos 40, uma cartomante (sim, sou religiosamente sincrético, até porque Deus não tem religião) previu que eu morreria aos 57. E já se vão 23 anos de sobrevivência…

Agora, prestes a completar 80, prossigo em plenas atividades. Sim, no plural, porque elas se multiplicam: assessorias, que implicam frequentes viagens; conferências; literatura; trabalho pastoral; e os imprevistos, que não são poucos.

Se a cabeça segue relativamente bem (o advérbio se deve à afirmação de Fernando Sabino, “mineiro nasce louco; depois, piora”) o corpo dá os seus enguiços. A vida se divide em duas fases, a da sorveteria e a da farmácia. Sou freguês da segunda, cadastrado em todas elas. Mas observo alguns requisitos da boa saúde: meditação; ginástica; moderação na comida e na bebida; boas amizades; bom humor; e, sobretudo, não dar importância ao que não tem importância. O segredo da felicidade está no desapego. Do dinheiro, do poder e, o mais difícil, de si mesmo.

Filho da geração analógica, sou semianalfabeto digital. As redes me asfixiam. Dão-me sensação de enorme perda de tempo. Prefiro não trocar o atacado pelo varejo. Ando grávido de uma biblioteca e preciso de tempo para enfileirar todos esses potenciais livros como obras reais nas prateleiras de minha coleção.

A vida é curta, já diziam os latinos, mas convém não encurtá-la ainda mais afogado no pântano dos lamentos ou sugado pelo vazio da ociosidade.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

Meu lado mulher

Meu lado mulher incomoda-se de receber homenagens em um único dia do ano – 8 de março -, enquanto meu lado homem se farta com 364 dias. Talvez se faça necessária esta efeméride, dor recente de cicatriz antiga. Porque vive-se em uma sociedade machista: matrimônio –  o cuidado do lar; patrimônio – o domínio dos bens.

O marido possui casa, carro, mulher, que incorpora ao nome o da família dele. A casa, ele exige que se limpe todo dia. O carro, envia à oficina ao menor defeito. Mas à mulher, ser polivalente, cabe o dever de cuidar da casa, dos filhos, das compras e do bom-humor do marido, que nem sempre se lembra de cuidar dela.

Meu lado mulher nunca viu o marido gritar com o carro, ameaçá-lo ou agredi-lo. Nem sempre, entretanto, ela é tratada com o mesmo respeito. Ele esquece que marido e mulher não são parentes, são amantes. Ou deveriam ser.

Na Igreja Católica, os homens têm acesso aos sete sacramentos. Podem até ser ordenados padres e, mais tarde, obter dispensa do ministério e contrair matrimônio. Toda a hierarquia da mais antiga instituição do mundo é de homens. Mas o que seria dela e deles se não fossem as mulheres?

As mulheres, consideradas pela teologia vaticana um ser naturalmente inferior, só têm acesso a seis sacramentos. Não podem receber a ordenação sacerdotal, embora tenham merecido de Jesus o útero que o gerou; o seguimento de Joana, de Susana e da mãe dos filhos de Zebedeu; a defesa da mulher adúltera; o perdão à samaritana; a amizade de Madalena, primeira testemunha de sua ressurreição.

Meu lado mulher tem pavor da violência doméstica; do imbecil que diz bobagens quando a garota passa; do pai que assedia a filha, jogando-a nas garras da prostituição; do patrão que exige préstimos sexuais da funcionária; do marido que ergue a mão para profanar o ser que deu à luz seus filhos.

Diante da TV, das imagens na internet ou de uma banca de revistas, meu lado mulher estremece: ela é a burra, a idiota que rebola no fundo do palco, mergulha na banheira exposta no palco, expõe-se na casa dos brothers, associa-se à publicidade de cervejas e carros, como um adereço a mais de consumo. Diante do poder despótico, meu lado mulher estremece: o político desbocado e debochado humilha, ofende, agride e pratica o estupro virtual.

Meu lado mulher tenta resistir ao implacável jogo da desconstrução do feminino: tortura do corpo em academias de ginástica; anorexia para manter-se esbelta; vergonha das gorduras, das rugas e da velhice; entrega ao bisturi que amolda a carne segundo o gosto da clientela do açougue virtual; silicone e botox a estufar protuberâncias. E manter a boca fechada, até que haja no mercado um chip transmissor automático de cultura e inteligência, a ser enxertado no cérebro. E engolir antidepressivos para tentar encobrir o buraco no espírito, vazio de sentido, ideais e utopia.

Meu lado mulher se esforça por livrar-se do modelo emancipatório que adota, como paradigma, meu lado homem. Serei ela se ousar não querer ser como ele. Sereia em mares nunca dantes navegados, rumo ao continente feminino, onde as relações de gênero serão de alteridade, porque o diferente não se fará divergente. Aquilo que é só alcançará plenitude em interação com o seu contrário. Como ocorre em todo verdadeiro amor.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

Jamais esquecer!

O que faz o governo sionista de Israel em Gaza é, no mínimo, um “holocáustico”. Após o extermínio de 6 milhões de judeus pelo regime nazista, na Segunda Grande Guerra, a cultura judaica se apropriou do vocábulo holocausto, que deriva do grego “holos” (todo) e “kaustos” (queimado), relativo aos antigos rituais nos quais vítimas humanas eram sacrificadas no fogo.

É questionável se o termo se aplica apenas às vítimas do nazismo. E como denominar o que os colonizadores ibéricos fizeram com os indígenas da América Latina e do Caribe? Segundo pesquisas da UCL (University College London), os espanhóis exterminaram, em um século, 56 milhões de indígenas, 90% da população dessa etnia. Já Marcelo Grondin e Moema Viezzer (“O maior genocídio da história da humanidade”, Toledo (PR), Princeps, 2018) calculam 70 milhões de mortos entre os povos originários.

Não apenas os judeus foram exterminados em campos de concentração. Também comunistas, homossexuais e ciganos. Contudo, o epistemicídio (quando se anula ou segrega um conhecimento) coloca no olvido os outros segmentos sociais levados às câmeras de gás. Em Berlim, que revisitei em fevereiro último, há um Museu do Holocausto. Não se logrou que houvesse um único museu em homenagem às vítimas do nazismo. Foi preciso que comunistas, homossexuais e ciganos instalassem cada um o seu.

O que agora Israel faz em Gaza é inominável. Como é inominável a cumplicidade dos países árabes e ocidentais com o genocídio ali praticado. Se o século XX teve como marco o antes e depois de Auschwitz, este início do século XXI terá o antes e depois de Gaza. Ninguém, desde Hitler, propagou tanto o antissemitismo como Netanyahu. Enquanto isso, a “democrisia” (democracia + hipocrisia) dos EUA lança, por ar, provisões aos sobreviventes de Gaza e, por mar, entrega a Israel as armas que os exterminam.

O povo judeu nos ensinou a jamais esquecer. No presente, manter vivo o passado, para que não se repita no futuro. Por isso, nenhuma atrocidade merece ser varrida para debaixo do tapete da história.

Se Lula não admite, acertadamente, impunidade para os golpistas de 8 de janeiro de 2023, e nem que se fale em anistia para eles, maior razão para exigir a punição dos criminosos que, ao longo de 21 anos de ditadura (1964-1985), prenderam, torturaram, sequestraram, estupraram, baniram e “desapareceram” inúmeros brasileiros e brasileiras que lutavam por democracia.

O próprio Lula foi preso político, encarcerado no Dops de São Paulo por liderar greves consideradas “subversivas”. Isso o levou a responder processos na Auditoria Militar da capital paulista e, mais tarde, em Brasília, no Superior Tribunal Militar.

Esquecer, nunca mais! Daí a urgência de restabelecer a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e investigar e punir militares e civis que praticaram crimes hediondos e, injustamente, foram beneficiados pela esdrúxula Lei da Anistia de 1979. Como anistiar quem jamais chegou a ser investigado, julgado e condenado?

Quanto mais integrantes de nossas Forças Armadas continuarem impunes, mais nossa frágil democracia estará ameaçada pelo golpismo.

Frei Betto é escritor, autor do romance sobre a Amazônia, “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.