Encontro em Veneza

No ano que vem, o melhor projeto literário do Brasil, o Sempre um Papo, capitaneado por Afonso Borges, comemora 40 anos. Fui o primeiro a lançar um livro pela iniciativa – o romance “O dia de Ângelo” -, no restaurante La Taberna, em Belo Horizonte. Afonso ainda não sabia como denominar o projeto e aceitou minha sugestão: Sempre um Papo.

No último 29 de maio, fiz novo lançamento em Belo Horizonte, organizado pela equipe do Afonso: o autobiográfico “Quando fui pai do meu irmão” (Alta Books). Foi então que soube que ele e Iara, cujo casamento abençoei em 2021, estariam de partida para a Itália no dia seguinte, rumo à lua de mel que ainda não haviam curtido.

O que o casal não sabia é que, três dias depois, eu também viajaria à Itália para proferir uma série de palestras em Faletto, Turim, Pinerolo, Veneza, Bolzano e Milão. Afonso e Iara preferiram ficar todo o período da viagem em Veneza.

Decidi fazer uma surpresa ao casal. Via WhatsApp, monitorei a viagem deles, sugerindo pontos turísticos na célebre cidade dos canais. A dupla estava convencida de que eu continuava no Brasil.

Na quarta, 4 de junho, desembarquei do trem em Veneza e me hospedei no convento dos frades dominicanos construído em 1221, ao lado da monumental igreja de São João e São Paulo (ou San Zanipolo). Em estilo gótico, o templo abriga a tumba de 25 doges e pinturas de famosos artistas venezianos, como Bellini e Lotto.

Frei Antonio Vizentin, meu anfitrião – que já morou no Brasil e na Turquia -, me indicou um bom restaurante próximo ao convento. Não contei, mas guardo a impressão de que nas apertadas ruas vizinhas há mais de 50 opções de boa comida italiana, entre osterias, trattorias, pizzarias e tavole calde. Antonio sugeriu a Trattoria Bandierette (Barbaria delle Tole Castello 6671), local sem afetação, preço módico, com mesas ao ar livre e excelente culinária. Fiz reserva para o jantar.

Pelo celular, Afonso continuava interessado em minhas dicas turísticas. À tarde, comuniquei ter feito uma reserva para o casal naquela trattoria, marcada para 20h30. Ao chegarem, o chef Carlo os estaria esperando. Eles ainda acreditavam que eu me encontrava em São Paulo.

Por coincidência, o casal se hospedara em uma pousada ao lado da igreja dominicana, a menos de cinco minutos do restaurante. Inventei estar escrevendo um conto ambientado em Veneza e, por isso, precisava da ajuda dele quanto a detalhes. Portanto, não deixasse de ir à procura do chef Carlo. Afonso respondeu: “Chego lá uma hora antes!”

De fato, o casal chegou antes de mim, tirou foto diante da trattoria e me enviou. É quase indescritível as caras de espanto de Iara e Afonso ao me avistarem na “calle”, como são chamadas as vielas estreitas, calçadas de pedras, de Veneza. Ele me viu primeiro. Mirou sério, olhos arregalados, como se visse um dos personagens de Barbara Hambly, do romance “O fantasma de Veneza”.   

Logo, o rosto pálido e assustado, acentuado pela barba alva, ganhou expressão risonha, acolhedora. Iara levou um pouco mais de tempo para me identificar. Era como seu eu tivesse descido ali de um drone.

“Não encontrei aqui nenhum chef Carlo”, comentou Afonso. “Bem, respondi, também sou Carlo e, de alguma forma, não deixo de ser chef. Tenho até livro de culinária.”

Viciado em “spaghetti alle vongole”, Afonso admitiu que naquela noite saboreara o melhor de todos os que havia experimentado. Pouco depois, frei Antonio se juntou a nós. Fomos a um restaurante na praça da igreja beber um Pinot Noir e fumar charutos.

Rememoramos Sebastião Salgado. O casal contou que na última viagem ao Brasil, em maio último, Lélia e Tião comeram em sua casa canjiquinha com costelinha de porco – o prato mais típico da culinária mineira, segundo minha mãe. O fotógrafo costumava acordar Afonso em plena madrugada, ligando de algum país da África ou do Oriente, para cantarolar ao telefone.

Naquela noite, entre luzes suaves refletidas nos canais e o aroma salgado do mar misturado ao vinho, aprendi que Veneza não é feita apenas de pedra e água, é feita também de encontros improváveis, silêncios plenos de sentido e surpresas que o coração arquiteta em segredo.

Sob o céu de junho, brindamos à amizade que atravessa oceanos, à literatura que nos liga como ponte invisível e à beleza das coincidências que só o tempo sabe tramar. Enquanto o sino da igreja marcava as horas da madrugada, senti que há momentos que não se repetem, apenas se guardam como uma pequena joia no bolso da alma.

Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.

Cultura do ódio e regulação das redes

Cresce o número de suicídios de jovens vítimas de linchamento virtual. O ódio permeia as redes digitais, a cultura do cancelamento se alastra, e a defesa da honra torna-se impossível. As fake news provocam transtorno de estresse pós-traumático e depressão profunda. E os assassinos virtuais se escondem sob o anonimato.

Daí a importância de a escola, desde o ingresso de crianças, promover educação para o uso das redes digitais e da internet em geral. Caso contrário, crianças e jovens correm o risco de ficar vulneráveis à maior usina de ódio global já inventada pelo ser humano, e que assegura bilhões de dólares a cada mês na conta bancária dos proprietários das plataformas digitais, das big techs, e que têm por objetivo uma única conquista: money, money, money! Eles detêm o segredo para manter mais de 5 bilhões de pessoas, horas a fio, ligadas a seus celulares, conectadas às redes digitais, a ponto de sofrerem da doença da moda, a nomofobia – dependência da internet.

Faça uma pesquisa em seu entorno e verá que as pessoas guardam na memória mais ofensas que sofreram do que elogios recebidos. Portanto, quanto mais as redes destilam ódio,  mais pessoas conectadas. Eis a receita do sucesso das plataformas.

A mais simples noção de psicologia nos ensina que nossa identidade decorre de nossas relações sociais, não apenas presenciais, como família e amizades, mas também das conexões virtuais. A diferença é que estas têm imensurável poder de ampliar uma acusação injusta, enquanto o acusado muitas vezes  sequer tem a chance de se defender, pois é imediatamente cancelado, ou seja, apagado dos canais digitais.

Como se defender de um comentário maldoso que em menos de uma hora é multiplicado por mil? Frente a essa sinistra conjuntura vejo apenas dois antídotos: educar crianças e jovens no uso das redes digitais e do mundo virtual e o governo estabelecer uma rígida regulação para barrar a “fakeocracia” e impedir que a cultura do ódio prevaleça sobre a cultura do respeito e da solidariedade.

No Brasil, pesquisas apontam que crianças e jovens viciados em internet apresentam considerável perda de capacidade de memorização, de redigir e interpretar textos, de expressão oral e cada vez menos interesse por literatura. Sabem digitar, mas nem sempre sabem refletir.

Após carregarem pesadas pedras para erguer as pirâmides, arrastadas à tração animal, os escravos egípcios devem ter ficado agradecidos e, ao mesmo tempo, perplexos, quando um deles, na Mesopotâmia (atual Iraque) inventou a roda. Do mesmo modo, nossa geração se surpreende com a agilidade “mágica” da robótica para desempenhar tarefas com maior velocidade e precisão que a habilidade humana. 

O algoritmo veio inaugurar uma era civilizatória ao nos oferecer uma nova “roda”: a inteligência artificial que, diga-se de passagem, nem é propriamente inteligência nem é artificial, pois é toda programada por seres humanos, embora tenha desempenho automático. Mas sem ela não poderíamos pesquisar os buracos negros nos longínquos espaços siderais, nem penetrar os diminutos recônditos da matéria graças à nanotecnologia.

A roda veio facilitar todo tipo de transporte, da mala de viagem, que já não temos que carregar, ao caminhão que leva pesados blocos de pedra. Mas se não existisse, não haveria tantos acidentes de trânsito. A culpa, com certeza, não é da tecnologia. É do uso que dela fazemos, e isso vale para a inteligência artificial.

É programada pela inteligência humana, embora a supere em agilidade, mas não em criatividade. Pode fazer complexos cálculos matemáticos em milésimos de segundos, mas é incapaz de produzir um romance à altura de “Dom Quixote”, de Cervantes ou “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa.

Toda tecnologia encerra uma ambivalência. Como a política ou a religião. Servem para oprimir ou libertar. É o que pensadores como Lévinas e Bauman acentuam ao chamar a atenção para o modo como o ser humano trata a tecnologia, como se fosse neutra e, assim, se desinteressa sempre mais pelos valores éticos no seu modo de pensar e agir. Como o mercado, a tecnologia se tornaria uma esfera autônoma, “autorregulável”, com o poder de determinar a condição humana.

Na pauta de defesa da democracia há que entrar a regulação do uso dos algoritmos, de modo a amenizar o impacto do que a socióloga estadunidense Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de vigilância”. Todos os dados que geramos ao utilizar o Google, por exemplo, são coletados em grandes bancos de dados e analisados por especialistas para detectar quais são as tendências em voga e as futuras potencialidades do mercado. O Google sabe, por meio do algoritmo, que o usuário A aprecia vinhos e, assim, entope o e-mail dele  com publicidade desta bebida. O mesmo acontece quando o usuário B procura um novo par de sapatos. Quando capta informações sobre trânsito, de interesse público, cria um software e oferece aos governos. Software são os aplicativos que utilizamos no acesso à internet, como Word, calculadora, Spotify, Tik Tok etc.

O problema é que não sabemos o que é feito com esses dados. O que sabemos através do Facebook é porque alguém vazou um documento interno. As empresas não falam sobre seus modelos de negócio. Não existem dados consolidados, os termos de uso e as políticas de privacidades são muito confusas.

Qualquer governo que pretenda reduzir as desigualdades e promover a democracia e a justiça social deve se preocupar com a regulação do uso dos algoritmos. Como se sabe, são programas concebidos para fazer buscas em imensos bancos de dados, classificar essas informações segundo um critério previamente definido por seu autor e orientar sua destinação. Em tese,  eliminariam distorções subjetivas, mas o que acontece de fato na internet é que os critérios não são conhecidos nem passíveis de sê-lo.

Além de tratar de capturar e manter o internauta conectado pelo maior tempo possível e motivá-lo a compartilhar, os conteúdos selecionados pelo algoritmo em função de uma infinidade de fatores, como acontece nas redes digitais,podem induzir à discriminação e desigualdade. É o que ocorre quando o algoritmo de uma empresa de seleção de candidatos a emprego exclui sistematicamente pessoas de determinado gênero ou etnia.

Esse “buraco negro” do ciberespaço precisa, urgentemente, ser mapeado, para não sugar a nossa cidadania e nos reduzir a meros consumistas.

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.