Os EUA podem derrotar o Irã?

Uma eventual guerra entre EUA e Irã resultaria em um conflito prolongado e extremamente custoso, tanto do ponto de vista humano quanto estratégico. Apesar da evidente superioridade militar usamericana em tecnologia e capacidade logística, uma vitória rápida da Casa Branca é altamente improvável.

O Irã não é um alvo fácil. Com um território extenso — cerca de 1.648.000 km², pouco maior que o estado do Amazonas —, formado por montanhas acidentadas, desertos inóspitos e regiões de difícil acesso, uma invasão terrestre se tornaria uma missão quase suicida. O exemplo do Afeganistão ainda está fresco na memória do Pentágono: mesmo com poderio militar superior, os EUA enfrentaram imensas dificuldades em um território montanhoso e fragmentado politicamente.

Diante disso, Washington provavelmente evitaria colocar soldados em solo iraniano, preferindo ataques aéreos com mísseis e drones de longo alcance. No entanto, essa estratégia teria limites claros diante da capacidade iraniana de resistência e resposta assimétrica.

Um dos maiores trunfos geopolíticos do Irã é o potencial controle sobre o Estreito de Ormuz, uma passagem marítima vital que conecta o Golfo Pérsico ao Golfo de Omã e, por consequência, ao Oceano Índico. Esse estreito, com cerca de 39 km de largura em seu ponto mais estreito, separa o Irã de Omã e dos Emirados Árabes Unidos. Por ele transitam cerca de 20% de todo o petróleo consumido no mundo.

Caso Teerã bloqueie essa rota estratégica, o impacto seria devastador para a economia global. As exportações de petróleo da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Iraque, Catar e do próprio Irã seriam severamente afetadas, provocando uma escalada nos preços do barril de petróleo. O Irã também exporta gás natural, cobre, trigo, pistache, açafrão e tâmaras.

Historicamente, o Estreito de Ormuz já foi controlado por vários impérios e potências, incluindo persas, árabes, portugueses (século XVI), britânicos (séculos XIX e XX) e, recentemente, os EUA. O controle dessa região é, portanto, um ponto de disputa geopolítica que transcende o conflito atual.

Embora o Irã não tenha o mesmo nível de sofisticação bélica dos EUA, domina táticas de guerra assimétrica e conta com uma rede de milícias aliadas no Iraque, Líbano, Síria e Iêmen. Esses grupos, como o Hezbollah, podem realizar ataques a interesses estadunidenses e aliados na região. Além disso, Teerã possui mísseis balísticos capazes de atingir bases dos EUA no Oriente Médio, bem como cidades e instalações estratégicas em Israel e na Arábia Saudita.

Em guerras recentes, o Irã demonstrou capacidade de preservar sua infraestrutura básica e realizar ataques inesperados, como o bombardeio de bases usamericanas no Iraque após o assassinato do general Qassem Soleimani, em 2020.

Outro dado crucial é o avançado programa iraniano de enriquecimento de urânio, que serve como um fator de dissuasão. Embora Teerã afirme que o programa é pacífico, muitos analistas acreditam que  funciona como um “seguro” contra eventuais ataques externos.

No plano político, uma guerra contra o Irã representaria um enorme risco para Washington. O custo diplomático e a ausência de apoio internacional significativo tornariam qualquer intervenção altamente impopular. Internamente, seria um desgaste considerável para Trump e o orgulho ianque, especialmente após os fracassos no Vietnã, Iraque e Afeganistão. Resta saber se os EUA estariam dispostos a enfrentar mais uma ocupação prolongada sem garantia de sucesso.

Além disso, Rússia e China, embora não sejam aliadas formais do Irã, tenderiam a apoiá-lo diplomática e economicamente, especialmente no Conselho de Segurança da ONU. Qualquer sanção adicional ao Irã poderia desestabilizar ainda mais os mercados internacionais e comprometer o fornecimento global de energia.

Ao contrário do Iraque em 2003, o Irã possui um governo consolidado, com instituições de Estado relativamente estáveis e um nacionalismo fortalecido em momentos de ameaça externa. Mesmo os opositores internos ao regime provavelmente se uniriam contra uma invasão estrangeira, dificultando tanto uma vitória militar quanto uma imposição política.

Embora os EUA tenham capacidade de causar danos substanciais ao Irã por meio de bombardeios aéreos e navais, uma rendição completa de Teerã é altamente improvável. A história mostra que as potências ocidentais frequentemente subestimam a resiliência das nações do Oriente Médio. E o Irã, por sua posição estratégica e experiência histórica, talvez tenha menos a perder do que qualquer país que decida atacá-lo.

Frei Betto é escritor, autor do romance sobre indígenas do Amazonas, “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Sobre a felicidade

A razão principal de minha felicidade reside em dois fatores: amizades conquistadas ao longo da vida e o sentido que imprimo à existência. As amizades me suscitam amor e me fazem sentir amado. É um privilégio saber que posso bater, sem aviso prévio, à porta de amigos e amigas às três da madrugada, em cidades do Brasil e do exterior, com a certeza de que serei bem acolhido.

A vida espiritual é fator preponderante em meu bem-estar. Tenho em Jesus meu paradigma vital, que me revela quem é Deus; aprendi a orar com Teresa de Ávila e João da Cruz; habituei-me a meditar quase diariamente. Isso me permite conservar os pés no chão e não pretender voar além da capacidade de minhas curtas asas. E sinto satisfação em partilhar o pouco que possuo.

É evidente que experimento, como todo mundo, momentos de tristeza e decepção, angústia e dor de alma. Felizmente não me deixo afogar nessas marés negativas. Oração e amizades são as minhas boias nas águas turbulentas da vida.

Considero uma bênção de Deus chegar aos 80 anos sem acalentar nenhuma ambição, exceto prosseguir no que já faço: aprofundar minha espiritualidade; conviver harmoniosamente com familiares, confrades e amigos(as); proferir palestras e prestar eventuais assessorias para sobreviver financeiramente; e escrever, escrever e escrever.

Traz-me felicidade o sentido que imprimi à vida. Sou movido a utopia, e sonho com o mundo preconizado pelo profeta Isaías, no qual a criança brincará na cova do leão e as armas serão transformadas em enxadas… E, no seguimento de Jesus, tenho por princípio posicionar-me ao lado dos oprimidos, ainda que aparentemente não tenham razão.

Tenho plena consciência de que a minha vida chegou ao ocaso: os cabelos embranqueceram, os músculos se tornam flácidos, os movimentos do corpo perdem agilidade, as idas à farmácia e aos médicos são mais frequentes. Isso não me assusta. Ao contrário de outrora, admito que não verei o mundo de justiça e paz – a “globalização da solidariedade” –, pelo qual empenho a minha existência.

Consola-me a certeza de que não participarei da colheita, mas faço questão de morrer semente.

Meu confrade, Santo Tomás de Aquino, ressaltou que toda pessoa, em tudo o que faz, busca a própria felicidade. Mesmo ao praticar o mal. Ninguém age contra o próprio bem. Tanto busca a felicidade aquele que promove a guerra quanto quem se recusa a combatê-la. Possuímos, portanto, a libido felicitatis ou a pulsão de ser felizes.

Tomás se baseou em Aristóteles, que no livro “Ética a Nicômaco” escreve que todos os bens são meios para se atingir o bem maior: um estado de “satisfação de todas as nossas inclinações” (Kant), de plenitude. Difere do prazer, que é efêmero, e da alegria, “o prazer que a alma sente quando considera garantida a posse de um bem presente ou futuro” (Leibniz). Ou “uma conduta mágica que tende a realizar, por encantamento, a posse do objeto desejado como totalidade instantânea” (Sartre).

Portanto, a felicidade é o “perfeito contentamento de espírito e profunda satisfação interior: viver na beatitude nada mais é do que ter o espírito perfeitamente contente e satisfeito” (Descartes).

No entanto, basta olhar em volta e constatar quanta infelicidade existe: depressão, dependência química, criminalidade precoce, fome, guerras, migrações forçadas, trabalho escravo, feminicídio etc.

Há que distinguir felicidade, alegria e prazer. Prazer é agradar os cinco sentidos: degustar um bom vinho, contemplar uma pintura, ouvir a música que nos suscita boas emoções etc. Os prazeres são momentâneos, epidérmicos. Não duram. E quem os confunde com felicidade fica sempre em busca de novas sensações, no intuito de se sentir feliz.

A alegria também é momentânea. Sentimos alegria ao rever a pessoa amada, ao receber uma homenagem, ao assistir a um bom filme, ao comemorar a vitória do time de nossa preferência, ao celebrar uma data importante com a família e os amigos; ou ao vencer um desafio profissional.

No entanto, ninguém sente prazer ou alegria acometido por uma doença, diante de uma catástrofe natural ou ao sofrer perseguição. Ainda assim pode se sentir feliz. Eis a diferença. Mesmo sob a dor e o sofrimento uma pessoa pode ser feliz, desde que saiba integrar as adversidades no sentido que imprimiu à sua existência.

Hoje, a felicidade parece ter se tornado obrigatória! Ainda que à custa de muitos sacrifícios, como dietas anoréxicas ou gastos exorbitantes com a estética corporal. Onde encontrar a felicidade? Muitos afirmam que não existe. Usufruímos de momentos de felicidade: a companhia da pessoa amada; o almoço em família; a roda de amigos; uma viagem interessante; o sucesso conquistado; a sensação ao contemplar o horizonte do alto de uma montanha…

Escreve Cecília Meireles, em “Epigrama nº 2”: “És precária e veloz, Felicidade. / Custas a vir e, quando vens, não te demoras. / Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo / e, para te medir, se inventaram as horas.”

Conta a parábola que o homem mais infeliz do mundo, um multibilionário, saiu pelos quatro pontos cardeais disposto a comprar a felicidade por qualquer preço. No deserto das Arábias, deparou-se com uma tenda encimada pelo cartaz: “Felicidade”. Indagou da moça atrás do balcão: “É aqui que vendem felicidade?” Por baixo do véu que lhe cobria o nariz e a boca a moça retrucou: “Senhor, não vendemos felicidade.” Irritado, o homem elevou a voz: “Como não vendem? Posso pagar qualquer preço!” “Senhor, disse a moça, nós ofertamos, é de graça”.

A moça colocou sobre o balcão uma caixinha que cabia na palma da mão. O bilionário fitou-a intrigado. De dentro, ela retirou várias sementes, e explicou: “Esta é a da amizade; esta, da solidariedade; esta aqui, da compaixão; esta, do amor. Se o senhor souber cultivá-las, com certeza encontrará a felicidade.”

Frei Betto é escritor, autor de “Quando fui pai do meu irmão” (Alta Books), entre outros livros.

Felicidade na Era Digital

Vivemos hoje a crise de paradigmas políticos, éticos, econômicos e religiosos. Se o paradigma medieval era a religião e o moderno, a razão – acompanhada de suas duas filhas diletas, ciência e tecnologia –, qual seria o da pós-modernidade, na qual ingressamos neste início do século XXI?

Gostaria que fosse a solidariedade. Mas o mercado, regido pela era digital, se impõe: a mercantilização de todos os aspectos da vida e da natureza. “Fora do mercado não há salvação”, proclama o capitalismo neoliberal, indiferente ao drama de sobrevivência de quase metade da humanidade  (44%; 3,2 bilhões de pessoas), segundo o Banco Mundial, com menos de US$ 7 por dia!

Em muitos países, o capitalismo mercantiliza a educação, a saúde e os demais direitos sociais, hoje apresentados como serviços privados ao alcance de quem dispõe de renda para adquiri-los. Mercantiliza também a natureza, exaurindo seus recursos ou utilizando-os predatoriamente, como denunciou o papa Francisco em sua encíclica “Louvado sejas – Sobre o cuidado de nossa casa comum”. Os resultados são os desequilíbrios ambientais e o aquecimento global. A Terra já perdeu sua capacidade de autorregeneração. Para se recuperar, depende, agora, de intervenção humana.

Porém, o capitalismo ainda não conseguiu mercantilizar o bem maior que todos buscamos: a felicidade. É verdade que estamos cercados de simulacros. A Coca-Cola oferece esse bem maior ao alcance da mão e da boca: “Abra a felicidade!” Ora, só os bêbados e os magos acreditam que a felicidade jorra do gargalo de uma garrafa.

Para o capitalismo neoliberal, a felicidade reside no hiperconsumo desenfreado. O produto lançado hoje é considerado démodé amanhã. E quem espera ser visto como in, e não out, tem a obrigação de portar o que há de mais novo e avançado no mercado.

Paradoxalmente, essa ideia mercantilista de felicidade produz enorme infelicidade, na medida em que suscita em pessoas consumistas o medo da pobreza ou da perda de seus bens, o agudo senso competitivo, a ansiedade diante do futuro, gerando patologias físicas e mentais, como úlcera, depressão, síndrome do pânico etc.

Enquanto esperamos a felicidade ainda não somos felizes. A felicidade está dentro ou fora de nós? Depende. Para quem canaliza o desejo para fora de si mesmo, reside em algo a ser possuído: riqueza, beleza, fama, poder… Quem se deixa agarrar por essa “isca” não se sente feliz enquanto não alcança o que almeja. E depois experimenta a infelicidade ao perder o que conquistou.

O dependente químico sabe que a felicidade está dentro de si, mas recorre ao caminho do absurdo e não ao caminho do absoluto. Se alguém der a um drogado uma fortuna para abandonar o vício, provavelmente ele irá gastá-la na compra de drogas. Contudo, embora possa não se dar conta, de alguma forma descobriu que a felicidade é uma experiência subjetiva, uma mudança do estado de consciência.

Para a cultura neoliberal, a pessoa não tem valor em si. Quem se importa com o pedinte estirado em um canto da calçada? É o produto que ela possui que lhe imprime valor. Bill Gates é tão pessoa quanto o pedinte da esquina. Porém, graças à fabulosa riqueza que o reveste, aos olhos alheios ele possui um valor tão alto que suscita inveja e veneração, enquanto o mendigo provoca repúdio e nojo.

O capitalismo não quer formar cidadãos, e sim gerar consumistas. Por isso, renega os valores que norteiam nossas vidas, como ética e solidariedade, e desloca-nos da subjetividade para centrar-nos na objetividade, naquilo que se consome. Se chego à sua casa a pé, tenho um valor Z. Se chego a bordo do último modelo Mercedes-Benz, tenho valor A. Sou a mesma pessoa, mas a mercadoria me imprime valor. Sem ela, talvez eu nem seja reconhecido.

Assim, muita infelicidade resulta do fato de as pessoas colocarem fora de si o talismã capaz de proporcionar-lhes felicidade. Incapaz de ser tão rica, bela, famosa ou poderosa quanto gostaria, a pessoa se sente diminuída, entristece, cai em depressão, deixa o coração corroer de inveja, amargura, ira. Em suma, a luta ansiosa por felicidade costuma trazer infelicidade quando centrada em alvos ilusórios e equivocados.

Meu confrade Tomás de Aquino definiu a inveja como “a tristeza de não possuir o bem alheio”. E Shakespeare teria dito que o ódio é “um veneno que se toma esperando que o outro morra”. Gente sábia, rara hoje em dia.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

Encontro em Veneza

No ano que vem, o melhor projeto literário do Brasil, o Sempre um Papo, capitaneado por Afonso Borges, comemora 40 anos. Fui o primeiro a lançar um livro pela iniciativa – o romance “O dia de Ângelo” -, no restaurante La Taberna, em Belo Horizonte. Afonso ainda não sabia como denominar o projeto e aceitou minha sugestão: Sempre um Papo.

No último 29 de maio, fiz novo lançamento em Belo Horizonte, organizado pela equipe do Afonso: o autobiográfico “Quando fui pai do meu irmão” (Alta Books). Foi então que soube que ele e Iara, cujo casamento abençoei em 2021, estariam de partida para a Itália no dia seguinte, rumo à lua de mel que ainda não haviam curtido.

O que o casal não sabia é que, três dias depois, eu também viajaria à Itália para proferir uma série de palestras em Faletto, Turim, Pinerolo, Veneza, Bolzano e Milão. Afonso e Iara preferiram ficar todo o período da viagem em Veneza.

Decidi fazer uma surpresa ao casal. Via WhatsApp, monitorei a viagem deles, sugerindo pontos turísticos na célebre cidade dos canais. A dupla estava convencida de que eu continuava no Brasil.

Na quarta, 4 de junho, desembarquei do trem em Veneza e me hospedei no convento dos frades dominicanos construído em 1221, ao lado da monumental igreja de São João e São Paulo (ou San Zanipolo). Em estilo gótico, o templo abriga a tumba de 25 doges e pinturas de famosos artistas venezianos, como Bellini e Lotto.

Frei Antonio Vizentin, meu anfitrião – que já morou no Brasil e na Turquia -, me indicou um bom restaurante próximo ao convento. Não contei, mas guardo a impressão de que nas apertadas ruas vizinhas há mais de 50 opções de boa comida italiana, entre osterias, trattorias, pizzarias e tavole calde. Antonio sugeriu a Trattoria Bandierette (Barbaria delle Tole Castello 6671), local sem afetação, preço módico, com mesas ao ar livre e excelente culinária. Fiz reserva para o jantar.

Pelo celular, Afonso continuava interessado em minhas dicas turísticas. À tarde, comuniquei ter feito uma reserva para o casal naquela trattoria, marcada para 20h30. Ao chegarem, o chef Carlo os estaria esperando. Eles ainda acreditavam que eu me encontrava em São Paulo.

Por coincidência, o casal se hospedara em uma pousada ao lado da igreja dominicana, a menos de cinco minutos do restaurante. Inventei estar escrevendo um conto ambientado em Veneza e, por isso, precisava da ajuda dele quanto a detalhes. Portanto, não deixasse de ir à procura do chef Carlo. Afonso respondeu: “Chego lá uma hora antes!”

De fato, o casal chegou antes de mim, tirou foto diante da trattoria e me enviou. É quase indescritível as caras de espanto de Iara e Afonso ao me avistarem na “calle”, como são chamadas as vielas estreitas, calçadas de pedras, de Veneza. Ele me viu primeiro. Mirou sério, olhos arregalados, como se visse um dos personagens de Barbara Hambly, do romance “O fantasma de Veneza”.   

Logo, o rosto pálido e assustado, acentuado pela barba alva, ganhou expressão risonha, acolhedora. Iara levou um pouco mais de tempo para me identificar. Era como seu eu tivesse descido ali de um drone.

“Não encontrei aqui nenhum chef Carlo”, comentou Afonso. “Bem, respondi, também sou Carlo e, de alguma forma, não deixo de ser chef. Tenho até livro de culinária.”

Viciado em “spaghetti alle vongole”, Afonso admitiu que naquela noite saboreara o melhor de todos os que havia experimentado. Pouco depois, frei Antonio se juntou a nós. Fomos a um restaurante na praça da igreja beber um Pinot Noir e fumar charutos.

Rememoramos Sebastião Salgado. O casal contou que na última viagem ao Brasil, em maio último, Lélia e Tião comeram em sua casa canjiquinha com costelinha de porco – o prato mais típico da culinária mineira, segundo minha mãe. O fotógrafo costumava acordar Afonso em plena madrugada, ligando de algum país da África ou do Oriente, para cantarolar ao telefone.

Naquela noite, entre luzes suaves refletidas nos canais e o aroma salgado do mar misturado ao vinho, aprendi que Veneza não é feita apenas de pedra e água, é feita também de encontros improváveis, silêncios plenos de sentido e surpresas que o coração arquiteta em segredo.

Sob o céu de junho, brindamos à amizade que atravessa oceanos, à literatura que nos liga como ponte invisível e à beleza das coincidências que só o tempo sabe tramar. Enquanto o sino da igreja marcava as horas da madrugada, senti que há momentos que não se repetem, apenas se guardam como uma pequena joia no bolso da alma.

Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.

Cultura do ódio e regulação das redes

Cresce o número de suicídios de jovens vítimas de linchamento virtual. O ódio permeia as redes digitais, a cultura do cancelamento se alastra, e a defesa da honra torna-se impossível. As fake news provocam transtorno de estresse pós-traumático e depressão profunda. E os assassinos virtuais se escondem sob o anonimato.

Daí a importância de a escola, desde o ingresso de crianças, promover educação para o uso das redes digitais e da internet em geral. Caso contrário, crianças e jovens correm o risco de ficar vulneráveis à maior usina de ódio global já inventada pelo ser humano, e que assegura bilhões de dólares a cada mês na conta bancária dos proprietários das plataformas digitais, das big techs, e que têm por objetivo uma única conquista: money, money, money! Eles detêm o segredo para manter mais de 5 bilhões de pessoas, horas a fio, ligadas a seus celulares, conectadas às redes digitais, a ponto de sofrerem da doença da moda, a nomofobia – dependência da internet.

Faça uma pesquisa em seu entorno e verá que as pessoas guardam na memória mais ofensas que sofreram do que elogios recebidos. Portanto, quanto mais as redes destilam ódio,  mais pessoas conectadas. Eis a receita do sucesso das plataformas.

A mais simples noção de psicologia nos ensina que nossa identidade decorre de nossas relações sociais, não apenas presenciais, como família e amizades, mas também das conexões virtuais. A diferença é que estas têm imensurável poder de ampliar uma acusação injusta, enquanto o acusado muitas vezes  sequer tem a chance de se defender, pois é imediatamente cancelado, ou seja, apagado dos canais digitais.

Como se defender de um comentário maldoso que em menos de uma hora é multiplicado por mil? Frente a essa sinistra conjuntura vejo apenas dois antídotos: educar crianças e jovens no uso das redes digitais e do mundo virtual e o governo estabelecer uma rígida regulação para barrar a “fakeocracia” e impedir que a cultura do ódio prevaleça sobre a cultura do respeito e da solidariedade.

No Brasil, pesquisas apontam que crianças e jovens viciados em internet apresentam considerável perda de capacidade de memorização, de redigir e interpretar textos, de expressão oral e cada vez menos interesse por literatura. Sabem digitar, mas nem sempre sabem refletir.

Após carregarem pesadas pedras para erguer as pirâmides, arrastadas à tração animal, os escravos egípcios devem ter ficado agradecidos e, ao mesmo tempo, perplexos, quando um deles, na Mesopotâmia (atual Iraque) inventou a roda. Do mesmo modo, nossa geração se surpreende com a agilidade “mágica” da robótica para desempenhar tarefas com maior velocidade e precisão que a habilidade humana. 

O algoritmo veio inaugurar uma era civilizatória ao nos oferecer uma nova “roda”: a inteligência artificial que, diga-se de passagem, nem é propriamente inteligência nem é artificial, pois é toda programada por seres humanos, embora tenha desempenho automático. Mas sem ela não poderíamos pesquisar os buracos negros nos longínquos espaços siderais, nem penetrar os diminutos recônditos da matéria graças à nanotecnologia.

A roda veio facilitar todo tipo de transporte, da mala de viagem, que já não temos que carregar, ao caminhão que leva pesados blocos de pedra. Mas se não existisse, não haveria tantos acidentes de trânsito. A culpa, com certeza, não é da tecnologia. É do uso que dela fazemos, e isso vale para a inteligência artificial.

É programada pela inteligência humana, embora a supere em agilidade, mas não em criatividade. Pode fazer complexos cálculos matemáticos em milésimos de segundos, mas é incapaz de produzir um romance à altura de “Dom Quixote”, de Cervantes ou “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa.

Toda tecnologia encerra uma ambivalência. Como a política ou a religião. Servem para oprimir ou libertar. É o que pensadores como Lévinas e Bauman acentuam ao chamar a atenção para o modo como o ser humano trata a tecnologia, como se fosse neutra e, assim, se desinteressa sempre mais pelos valores éticos no seu modo de pensar e agir. Como o mercado, a tecnologia se tornaria uma esfera autônoma, “autorregulável”, com o poder de determinar a condição humana.

Na pauta de defesa da democracia há que entrar a regulação do uso dos algoritmos, de modo a amenizar o impacto do que a socióloga estadunidense Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de vigilância”. Todos os dados que geramos ao utilizar o Google, por exemplo, são coletados em grandes bancos de dados e analisados por especialistas para detectar quais são as tendências em voga e as futuras potencialidades do mercado. O Google sabe, por meio do algoritmo, que o usuário A aprecia vinhos e, assim, entope o e-mail dele  com publicidade desta bebida. O mesmo acontece quando o usuário B procura um novo par de sapatos. Quando capta informações sobre trânsito, de interesse público, cria um software e oferece aos governos. Software são os aplicativos que utilizamos no acesso à internet, como Word, calculadora, Spotify, Tik Tok etc.

O problema é que não sabemos o que é feito com esses dados. O que sabemos através do Facebook é porque alguém vazou um documento interno. As empresas não falam sobre seus modelos de negócio. Não existem dados consolidados, os termos de uso e as políticas de privacidades são muito confusas.

Qualquer governo que pretenda reduzir as desigualdades e promover a democracia e a justiça social deve se preocupar com a regulação do uso dos algoritmos. Como se sabe, são programas concebidos para fazer buscas em imensos bancos de dados, classificar essas informações segundo um critério previamente definido por seu autor e orientar sua destinação. Em tese,  eliminariam distorções subjetivas, mas o que acontece de fato na internet é que os critérios não são conhecidos nem passíveis de sê-lo.

Além de tratar de capturar e manter o internauta conectado pelo maior tempo possível e motivá-lo a compartilhar, os conteúdos selecionados pelo algoritmo em função de uma infinidade de fatores, como acontece nas redes digitais,podem induzir à discriminação e desigualdade. É o que ocorre quando o algoritmo de uma empresa de seleção de candidatos a emprego exclui sistematicamente pessoas de determinado gênero ou etnia.

Esse “buraco negro” do ciberespaço precisa, urgentemente, ser mapeado, para não sugar a nossa cidadania e nos reduzir a meros consumistas.

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.