O Papa do fim do mundo

Ao ser empossado bispo de Roma em 19 de março de 2013, há doze anos, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio adotou o nome de Francisco para carimbar seu pontificado como favorável aos excluídos e à saúde do Planeta, e declarou: “Como vocês sabem, o dever do Conclave era dar um bispo a Roma. Parece que os meus irmãos cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo.”

Como ressalta o professor Fernando Altemeyer Junior, a preocupação de Francisco é “o cuidado pastoral dos empobrecidos e o rompimento claro do clericalismo que fez da Igreja uma instituição autocentrada e distante do evangelho de Jesus.”

Francisco puniu com severidade bispos e padres pedófilos, acolheu as vítimas, enfrentou a ultradireita católica dos EUA e da África e, em 2019, excluiu do cardinalato e do sacerdócio o estadunidense Teodore McCarrick, ex-arcebispo de Washington, por prática de pedofilia e, em 2023, o Tribunal Penal do Vaticano condenou a cinco anos de prisão o cardeal italiano Giovanni Angelo Becciu, de 75 anos, por peculato e fraude financeira.

Francisco não esconde seu descontentamento com Trump e sua simpatia por Lula, apoia a causa palestina e, em janeiro deste ano, nomeou a religiosa Simona Brambilla prefeita do Vaticano. Democrata, já convocou seis sínodos no intuito de renovar a Igreja, inclusive pôr fim ao celibato obrigatório para o clero do Ocidente. No entanto, muitos bispos e cardeais são oriundos da safra conservadora dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, que levantam o freio de mão enquanto o papa acelera.

Francisco é o cabeça de uma comunidade que congrega 1 bilhão 390 milhões de fiéis (pouco mais de 17% da população mundial). Fez 47 viagens internacionais e visitou 60 países, mas não retornou à Argentina.

Quando o papa Francisco falecer, será convocado um novo Conclave (como mostra o filme de mesmo nome dirigido por Edward Berger). Os atuais cardeais eleitores são 138, de 71 países. Os cardeais não eleitores, por terem ultrapassado 80 anos, são 114. Os cardeais nomeados por Francisco somam 79,7% do atual colégio eleitoral. São 18 eleitores na África, 18 na América do Sul (entre os quais 7 brasileiros), 20 na América do Norte e América Central, 24 na Ásia, 54 na Europa, e 4 na Oceania.

Neste mês de fevereiro, a editora Fontanar/Companhia das Letras lançou a autobiografia de Francisco, “Esperança”, a primeira de um papa, redigida em parceria com Carlo Musso.

Tive dois encontros pessoais com Francisco, no Vaticano, em abril de 2014, e em agosto de 2023. No primeiro, falei-lhe da importância das Comunidades Eclesiais de Base (escanteadas pelos dois papas que o precederam), e pedi-lhe manter o diálogo com a Teologia da Libertação, sempre defender os povos indígenas e reabilitar meus confrades Mestre Eckhart, que teve vários de seus escritos condenados pela Cúria Romana, e Giordano Bruno, queimado vivo como herege em uma praça de Roma, em 1600.

Francisco reagiu às minhas solicitações: “Ore por isso.” Ao final, me dirigi a ele, primeiro, em latim, e logo traduzi para o espanhol: “Extra pauperes nulla salus – Fora dos pobres não há salvação.” O papa sorriu: “Estou de acordo”, disse ao se afastar.

No segundo encontro, Francisco me abraçou, beijou e permitiu que fosse filmado por Roberto Mader, que prepara documentários sobre minha trajetória. Dei-lhe de presente meu livro “Jesus militante – o Evangelho e o projeto político do Reino de Deus” (Vozes) e, em espanhol, a cartilha popular, redigida por mim, e traduzida para o espanhol, do Plano de Soberania e Educação Nutricional de Cuba, que assessoro desde 2019.

Expliquei-lhe que o “Jesus militante” defende a tese de que o Nazareno veio nos trazer um novo projeto político, civilizatório, que denominava Reino de Deus, em oposição ao reino de César, no qual viveu e pelo qual foi assassinado na cruz devido à ousadia de anunciar um outro reino possível que não era o de César…

Insisti para que participe da COP 30, a conferência mundial do clima, a ser realizada em Belém, em novembro próximo. Ele disse que pensava nessa possibilidade. Pedi que interviesse junto a Joe Biden, que se considera católico, para suspender ou, ao menos, flexibilizar o criminoso bloqueio dos EUA a Cuba. Obama, que não é católico, havia minorado as duras medidas do bloqueio imposto desde 1962 à ilha revolucionária do Caribe. E repeti o pedido feito em nosso primeiro encontro: a reabilitação de meu confrade Giordano Bruno, cujas “heresias” estão hoje integradas à teologia e às ciências ou foram descartadas como anacrônicas.

Deus conceda a ele longa vida, pois ainda há muito a reformar na Igreja e Francisco é, hoje, uma das raras lideranças a criticar a hegemonia capitalista (globocolonização), apontar as causas da degradação socioambiental e defender os refugiados vítimas da secular exploração da Europa aos países africanos, asiáticos e latino-americanos.

Frei Betto é escritor, autor de “Quando fui pai do meu irmão” (Altabooks/70), entre outros livros.

Por um novo humanismo

O que se entende por “humanismo”? Trata-se de uma corrente intelectual dos séculos XIV a XVI, que enfatizava a dignidade do ser humano, inspirada no sucesso do livro “A dignidade do homem” (1496), de Giovanni Pico della Mirandola. Essa corrente suscitou melhor compreensão a respeito das diferenças entre os seres humanos, o valor da existência individual, e despertou para a necessidade de se impor limites aos poderes político e religioso.

Toda a história da humanidade é marcada pela coexistência entre joio e trigo, humanismo e barbárie, razão e pulsão. A cultura e a consciência de que o outro é também um ser de direitos e exige cuidados são as condições essenciais de subsistência que impedem que os seres humanos disputem entre si, como feras.

Isso surge de nossa intrínseca espiritualidade, esse movimento de se voltar a si mesmo para descentralizar-se no Outro, como transcendente, e nos outros, como alteridade. Daí a perenidade da Bíblia, dos Evangelhos, do Alcorão, do Tao, do Bhagavad Gita e de tantos livros sagrados ainda tão atuais e que provocam tanto interesse.

Malgrado o otimismo suscitado pelo advento da modernidade, não podemos admitir que o humanismo prevaleceu. Nos últimos 500 anos tivemos o massacre de milhões de indígenas na América Latina e o fluxo escravocrata da África para o nosso Continente, sendo que, no Brasil, o regime escravista durou 350 anos!

Ao lado dos avanços da ciência, como o estudo aprofundado da gênese da espécie humana e a abertura desta Caixa de Pandora chamada mente humana pelas pesquisas de Freud, construímos artefatos bélicos, como bombas nucleares, capazes de destruir inúmeras vezes toda a vida em nosso planeta.

O neoliberalismo, centrado na acumulação privada da riqueza, disseminou uma ideologia anti-humanista que procura naturalizar as desigualdades sociais, as diferenças étnicas, enfim, a luta de classes. Isso, além de pobreza e miséria, gera uma patologia social, a depressão que resulta do desenraizamento comunitário, da perda de senso coletivo.

Todas as críticas que o papa Francisco faz ao capitalismo não derivam, propriamente, de uma perspectiva ideológica, e sim de sua visão predominantemente eco-humanista. O projeto civilizatório iniciado na Europa nos séculos XV e XVI já ultrapassou os limites toleráveis. As duas filhas diletas da modernidade, a ciência e a tecnologia, deixaram de centrar seus objetivos no bem-estar do ser humano para almejar mais e mais lucros, mais e mais domínio de uns sobre os outros.

O mito da imaculada concepção da neutralidade cientifica ruiu quando os EUA jogaram, em 1945, duas bombas atômicas sobre as populações inocentes de Hiroshima e Nagasaki. A ciência e a tecnologia se puseram a serviço da morte. Isso agravado pela devastação da natureza.

A falência do atual modelo civilizatório, hegemonizado pelo capitalismo, tem sua maior evidência em dois fatores: a destruição dos ecossistemas e a exclusão de mais de 1 bilhão de seres humanos de condições dignas de vida, condenados à pobreza e à miséria.

Nesse sentido, buscar um novo projeto civilizatório e se opor ao capitalismo é uma questão ética. A progressiva desumanização do ser humano se dá por uma visão reducionista que reforça o individualismo alheio à transcendência e indiferente à preservação ambiental, segundo parâmetros dos pilares da racionalidade moderna. Daí a importância de um novo humanismo dotado de espiritualidade pós-religiosa, laica, profundamente centrada na alteridade diante do próximo e da natureza.

Dois bons exemplos dessa nova visão humanista são o bem viver dos indígenas andinos e a ecologia integral.

O Renascimento – com Erasmo e os iluministas Diderot, Voltaire e Rousseau; a irreverência do Marques de Sade e a psicologia de Freud – exaltou a liberdade de homens e mulheres se rebelarem contra dogmas e opressões; colocar em discussão toda certeza, mandamento ou valor; e proclamarem a liberdade de emancipar espíritos e corpos. Mas será que os princípios éticos que regiam a convivência social quando ainda o “nós” não dera lugar ao “eu” foram preservados ou subvertidos?

Penso que no bojo da emancipação humana, liberta de deuses, papas e reis, a afirmação do indivíduo resultou no mais exacerbado individualismo. O desejo suplantou a razão e, hoje, a humanidade corre o risco de ficar refém de outro poder que se apresenta de uma forma mais sutil e corrosiva de nossos valores: a automação. As novas tecnologias digitais são as coleiras virtuais que nos sequestram do coletivo e nos mantêm confinados em nichos nos quais a diversidade é encarada com ódio e a unanimidade dos parceiros celebrada como pós-verdade.

Há que resgatar o humanismo de Francisco de Assis, que buscava não “tanto ser compreendido, mas compreender”, “não tanto ser amado, mas amar”.

Dante Alighieri, em sua “Divina Comédia”, fundou uma teologia ao demonstrar que o humanismo existe enquanto transcendemos a linguagem através da invenção de novas linguagens: como ele mesmo fez ao escrever em um novo estilo a língua italiana corrente e inventar neologismos. “Ultrapassar o humano no humano”, diz Dante, será o caminho da verdade. Amarrar – no sentido de “unir” – o divino com o humano. Algo semelhante ao que fez o nosso Guimarães Rosa em “Grande sertão, veredas”.

Depois do Holocausto e do Gulag, e dos 350 anos de escravidão e o massacre de 70 milhões de indígenas (Bartolomeu de las Casas), o humanismo tem o dever de lembrar os homens e as mulheres que padeceram como meras vítimas.

Reproduzo aqui o texto que escrevi em homenagem a Walter Benjamin em “A arte de semear estrelas” (Rocco). Ele nos alertou sobre a importância de jamais esquecer as vítimas:

“Teu anjo insiste em olhar para trás. E vê o que não vemos, a não ser pelos olhos dele: o vasto campo dos corpos anônimos, dos carpinteiros dos navios de Alexandre Magno, dos ceramistas das catedrais medievais, dos servos de todos os reinos, majestades e potestades. É ali que a história encontra seu berço, seu texto, seu preço. É naqueles corpos esquecidos, oprimidos, esquartejados, vencidos e varridos, que tua memória, como o milagre descrito por Ezequiel, rejunta os fragmentos e refaz o corpo, o corpo da história, o corpus denso e irremovível da verdade.”

“Bem sabes que é preciso a força da embriaguez para levar a cabo uma revolução, pois teu anjo é lúcido e impotente. Impossível retornar ao passado, mas trata de resgatá-lo no presente, ainda que as vítimas prossigam sem redenção, exceto a da memória reverenciadora. Muitos dirão que são conjunturas, sacrifícios inevitáveis, pequenos assassinatos que justificam grandes causas. Mas tu, sentinela da porta do Éden, não permitas que nos deixemos seduzir pelas maçãs rubras que nos são estendidas, perfumadas, por aqueles que, em nome do progresso, preferem cultuar cemitérios.

“És tu a luz de nossa razão neste tempo de tanta estultice e irracionalidade. Nele tua obra nos faz querubins, serafins, benjamins.”

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros..

A natureza de Trump

Quem planta limoeiro espera colher limão. No entanto, nossa sociedade, movida pela ótica analítica, e não pela dialética, se acostumou a examinar os fatos por seus efeitos e não por suas causas.

O próprio sistema ideológico no qual vivemos cuida de encobrir as verdadeiras causas. Assim, há países pobres porque seu povo não é empreendedor; muçulmanos são potenciais terroristas; presos comuns irrecuperáveis; homossexuais, pervertidos; negros, inaptos às carreiras científicas etc.

Trump surpreende muitos. Sobretudo seus aliados. Ninguém esperava que o seu primeiro soco fosse no Canal do Panamá, visando atingir a China – o que já conseguiu, com o rompimento do acordo da Nova Rota da Seda -, o México e o Canadá. Se fosse na cara do governo da Venezuela, não teria surpreendido.

Trump deu uma rasteira em seus mais fiéis aliados, como agora faz com os governos europeus, ao abandonar sua retórica agressiva frente à Coreia do Norte e estender a mão a Kim Jung-un.

Trump é louco? Porá fogo no mundo, como Hitler fez na Europa e Nero em Roma? De modo algum. Louco rasga dinheiro, e Trump sabe como multiplicá-lo. Ele é fruto genuíno do sistema cujo valor primordial é a competitividade e não a solidariedade. E aparelha sua administração para consolidar os mais caros “valores” de quem pratica a idolatria do dinheiro: supremacia dos brancos; fortalecimento dos privilégios dos ricos; anulação de direitos sociais, como saúde; liberação da CIA para sequestrar suspeitos em qualquer ponto do planeta, torturar e manter cárceres clandestinos etc. Agora, deporta imigrantes para a base naval de Guantánamo, em Cuba. Faz uma limpeza étnica nos EUA assim como propôs em Gaza.

Se quem planta limoeiro colhe limões, quem planta essa perversa noção de que é direito natural ser rico em um mundo majoritariamente pobre (a renda de 1% da população mundial supera a de 99%), legitima a desigualdade e a violência.

A propaganda é avassaladora. Tirânica, como analisou Hannah Arendt. Incute-nos a ideia de que só os ricos são felizes, pois têm acesso ao luxuoso e requintado mercado de bens supérfluos. Ou vemos com frequência a TV exaltar quem partilha seus bens ou defende os direitos dos negros e homossexuais?

O sistema não tem o menor interesse nas pessoas, exceto se potencialmente consumidoras. O que importa é o lucro e a acumulação de riquezas. Se um país é pobre, isso resulta de sua falta de cultura e criatividade. Assim, jogam-se para debaixo do tapete as verdadeiras causas: séculos de colonialismo, de tirania a serviço dos países metropolitanos, de extorsão de recursos naturais e exploração da mão de obra.

Exemplo disso é o Brasil, no qual os portugueses tudo fizeram para evitar uma nação de letrados. A primeira impressora desembarcou aqui em 1808, com Dom João VI, mais de três séculos após o início da colonização. E a primeira universidade foi inaugurada em 1913.

Trump é um imperador que se acredita revestido de cabelos de ouro. Seu país viola impunemente a soberania de inúmeros outros através de suas empresas e bases militares. Quantas bases militares estrangeiras existem nos EUA? O dólar é a moeda padrão internacional. Se os EUA tossem, a economia global se gripa.

O bom de Trump é que, agora, ele exibe as garras afiadas de Tio Sam. Este já não faz questão de esconder sua verdadeira natureza sob a fachada de bom velhinho. Clark Kent se despe, afinal, de sua cara de boa gente. Quem acreditou na humanização do capitalismo talvez se convença de que serrar os dentes e as garras do tigre não anula sua natural ferocidade.

Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.

Pós-verdade e fundamentalismo

Nesse mundo de pós-verdade, toda mentira é palatável. Sem o menor constrangimento, chefes de Estado defendem que a Terra é plana e vacinas contêm chips chineses capazes de violar a intimidade dos vacinados…

Essa necropolítica dinamita toda a coerência lógica, desqualifica a consistência dos argumentos, ignora provas científicas e introduz a irracionalidade ao deslocar o conhecimento da cabeça. O que se sente passa a ter mais importância do que aquilo que se pensa. A intuição se sobrepõe à inteligência. O afeto, ao pensamento.

Tal postura produz antinomias: diante da atitude violenta de um adversário tenho vontade de matá-lo; frente a quem ridiculariza minha fé religiosa, sinto ganas de queimá-lo vivo; aceito a diversidade desde que as bandeiras que defendo tenham hegemonia…

Sou ágil em criticar e denunciar as incongruências do outro, mas incapaz de autocrítica quando me equivoco. Não me dou conta de quanto o egocentrismo impregna minha subjetividade. Frente aos erros dos adversários reajo com intolerância. Mas diante dos erros de meus correligionários busco amenizar os fatos, botar panos quentes, suavizar as críticas. Porque também em mim o coração fala mais alto que a cabeça.

Assim, a era da pós-verdade é como casa em que não há pão, todos brigam e ninguém tem razão.

O exemplo mais flagrante dessa irracionalidade é o discurso político de que política não merece credibilidade, os políticos são todos corruptos, as funções políticas devem ser ocupadas por militares e empresários “que não são políticos”… Eis a subversão da semântica.

Essa prevalência do afeto sobre a razão induz ao fanatismo. Veja o show de um astro da música, como é retratado no filme sobre a carreira de Elvis Presley, dirigido por Baz Luhrmann. As pessoas, inebriadas pelo artista, entram em transe; impregnadas pelo magnetismo que ele provoca, perdem a compostura, se levantam, aplaudem em delírio, tentam tocá-lo, soltam gritos onomatopaicos, e algumas até desfalecem.

Quando se trata de um líder político, transformado em mito por seus admiradores, estes ficam totalmente desprovidos de senso crítico. Não agem pela razão, e sim pela emoção. Por isso, nenhum argumento os faz mudar de postura. Ficam todos reféns daquela figura que acolhem como um avatar caído dos céus. É o salvador, o messias, o grande guia.

Essa relação de total submissão só encontra paralelo na experiência religiosa. As pessoas não querem saber se o mito é ou não competente ou corrupto. Acreditam nele. E fé não se explica, transcende a razão, ultrapassa todo raciocínio lógico. E assegura ao mito, da parte dos adeptos, coesão e fidelidade, ainda que profira disparates e diga coisas absurdas e inconvenientes. Ainda que mate. Pode-se não saber a razão, mas ele, sim, terá suas razões para agir como age…

Aliás, uma das características do fanatismo ou fundamentalismo é exatamente a supressão simbólica ou real do adversário. Não basta criticá-lo. É preciso eliminá-lo, extirpá-lo, exorcizá-lo da vida social, pois é considerado demoníaco.

No exercício do voto, é a emotividade que conduz a decisão de quem venera o mito. Inútil querer demover o eleitor com argumentos racionais. Ele está mobilizado por uma espécie de hipnose coletiva e nada é capaz de despertá-lo desse transe, exceto se houver contradição entre seus valores e os valores do mito.

É a naturalização do ódio em todas as suas manifestações – racismo, misoginia, homofobia etc. Naturalização que legitima, aos olhos dos que se submetem à “servidão voluntária”, todas afrontas, injúrias e mentiras proferidas pelo líder como mera “liberdade de expressão”, como defendem as Big Techs.

Mas além da naturalização de preconceitos e discriminações, da “banalização do mal”, o que consolida o mito é a sua sacralização. Vide os faraós do Egito. Não contavam com exército suficiente para conter uma possível revolta da multidão de escravos. Mas haviam interiorizado no povo que o faraó era a encarnação do deus Rá. Essa divinização do poderoso, cuja palavra era voz de deus, revestia o Estado de caráter teocrático. Qualquer sublevação tinha duplo peso: de subversão e grave pecado.

Vide as manifestações de massa do Terceiro Reich. Eram todas litúrgicas! Quanto mais a política se acoberta sob o manto da religião, tanto mais ela impregna a subjetividade daqueles que, de adeptos, se transformam em fiéis dispostos a qualquer sacrifício para que o líder reine. É o que explica a autoimolação de Francisco Wanderley Luiz, bolsonarista convicto, diante do STF a 13 de novembro de 2014.

Mas, de que vale adorar o Pai para quem padece da falta de pão? Eis aqui o calcanhar de Aquiles do mito. Seus partidários não se alimentam de palavras e promessas. E o flanco vulnerável dos fanáticos consiste exatamente em levá-los – já que abdicaram da razão – a dar um passo abaixo do coração e, assim, se deslocar da emoção e chegar aonde o instinto de sobrevivência fala mais alto: o estômago, as condições materiais de existência. Ao abrir os olhos diante da mesa vazia, a voz da razão soa altissonante.

Daí a importância de o trabalho político ser preferencialmente na base, centrado nas classes populares, cujas precárias condições de vida favorecem a consciência crítica. Discursos do mito não enchem panelas. Resta-nos tirar Paulo Freire das estantes e levá-lo de novo à prática.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

Forças produtivas ou destrutivas?

Em 1974, Hans Magnus Enzensberger publicou o artigo “Crítica à ecologia política”, no qual questionava o paradigma marxista de que o desenvolvimento das forças produtivas erradicaria a miséria. Aliado a Marcuse, o intelectual alemão enfatizou que “as forças produtivas se revelam como forças destrutivas e ameaçam toda a base natural da vida humana.”

A crescente industrialização, a expansão do consumismo, a “sociedade da superabundância”, arruínam o equilíbrio ambiental, sacrificam os mais pobres e comprometem o futuro das próximas gerações. Eis o paradoxo: a riqueza gera pobreza, como adverte o papa Francisco na encíclica “Laudato Sí” (“Louvado sejas – sobre o cuidado da casa comum”).

O filósofo André Gorz, em “Ecologia, uma ética da libertação”, frisa que a ecologia só atinge o seu caráter político e ético quando se compreende que a devastação da Terra resulta de um modo de produção centrado na maximização do lucro e no uso de tecnologias e recursos, como os combustíveis fósseis, que violentam o equilíbrio biológico. 

Walter Benjamin, em “Teses sobre a filosofia da história”, contestou o conceito tecnocrático e positivista de história derivado do desenvolvimento das forças produtivas. Sonhou com um tipo de trabalho que, “longe de explorar a natureza, é capaz de trazer à luz suas criações adormecidas em seu ventre como promessa”.

Já em 1964, há 60 anos, Murray Bookchin escreveu: “Desde a Revolução Industrial a massa atmosférica total de dióxido de carbono aumentou 13% acima dos níveis anteriores, que eram mais estáveis. A partir de bases teóricas sólidas, esse crescente cobertor de dióxido de carbono, ao interceptar o calor irradiado da Terra para o espaço sideral, levará ao aumento das temperaturas atmosféricas, à circulação de ar mais violenta, a padrões mais destrutivos de tempestades e, por fim, ao derretimento das calotas polares (…), ao aumento do nível do mar e à inundação de vastos territórios.” Os gaúchos que o digam.

Marcuse, em 1972, descobriu a natureza como aliada dos que lutam contra as sociedades predatórias, como a capitalista. Em “Contrarrevolução e revolta”, ele afirma: “A descoberta de forças libertadoras da natureza e de seu papel vital na construção de uma sociedade livre se torna uma nova força de mudança social.”
Esse debate sobre ecologia política deu ensejo ao ecossocialismo, no qual se destaca a obra de Michael Lowy. Quanto mais as forças produtivas avançam sem parâmetros ecológicos, mais a sua única fonte de recursos – a natureza – é degradada. Destroem-se as condições de sustentabilidade da espécie humana. A ambição tecnoeconômica predomina sobre as condições de vida na Terra.

A racionalidade moderna comete ainda grave erro ao excluir do pensamento ecológico práticas tradicionais de indígenas e camponeses. A fim de dominar territórios dos países emergentes e subdesenvolvidos, impôs o pensamento tecnocrata e promoveu a colonização do conhecimento. Por isso, as lutas dos povos originários são políticas e epistemológicas, pois visam a descolonização do conhecimento para que se alcance a emancipação cultural e política e o surgimento de territórios sustentáveis de vida. É preciso descolonizar o saber. Isso significa promover o reconhecimento e a revalorização dos saberes tradicionais e outros denominados “sabedoria popular” ou “saber local”. 

Como acentuou Milton Santos, a visão eurocêntrica da cultura, imposta como valor universal, qualificou de retrógrada a cultura de povos originários, silenciou culturas ou saberes em sua razão instrumental. 

Na encíclica “Laudato Sí”, o papa Francisco ressalta que “os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres. Hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da Terra, como o clamor dos pobres.”

 “Todo o Universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus.” 
“É evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta.”

“Toda a abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos.”
Como dizia Chico Mendes, separar a questão ambiental da política não é ecologia, é jardinagem…

Frei Betto é escritor, autor de “Uala, o amor” (FTD), entre outros livros.

Anestesia das consciências

Uma observação de Voltaire (1694-1778) nos ajuda a entender por que tantas pessoas emitem ofensas nas redes digitais e, assim, revelam mais a respeito do próprio caráter do que do perfil de quem é desrespeitado. “Ninguém se envergonha do que faz em conjunto”, escreveu em “Deus e os homens”.

Isso explica a insanidade dos linchamentos virtuais e a violência gerada pelo preconceito, como bem demonstra o filme “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2019.

Muitos de nós jamais ofenderíamos pessoalmente um interlocutor com injúrias e palavrões. No entanto, há quem seja capaz de replicar nas redes digitais ofensas a inúmeras pessoas, sem sequer se dar o trabalho de apurar se a informação procede.

Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento, atributo que lhe permite o exercício da liberdade. Há, contudo, quem prefira abdicar desse direito de optar livremente. Prefere deixar que as decisões sejam tomadas pelo líder, guru ou mentor do grupo social com o qual a pessoa se identifica. Opta pela “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie (1530-1563). É o que antropólogos chamam de “macho alfa”, tendência inata no ser humano de ser comandado por alguém que julga ter mais poder que ele. E todos que não comungam o credo do líder são considerados inimigos, hereges ou traidores, e devem ser varridos da face da Terra.

Essa submissão de si à vontade do outro ocorre em partidos políticos, empresas, associações e, sobretudo, em segmentos religiosos. No caso de Igrejas, a dominação ideológica é legitimada pela suposta vontade de Deus ecoada pela voz do pastor ou do padre. Assim, difunde-se uma perigosa teodiceia pela qual tudo se explica pela lógica divina, ainda que a humana não consiga digeri-la.

Se há uma catástrofe como a de Brumadinho, se estou desempregado, se perco um filho atingido por bala “perdida”, não devo protestar ou lamentar. Deus tinha algo em mente para permitir que tais desgraças acontecessem. Assim a teodiceia se transforma em panaceia.

É o recurso da apatia como anestesia da consciência. O exemplo paradigmático é o extermínio das vítimas do nazismo. A ordem genocida não saía da cabeça de um tresloucado, e sim de quem tinha plena (e tranquila) consciência do que fazia, como demonstrou Hannah Arendt. 

A ordem inicial se desdobrava em sequência. Um dirigia o caminhão até o alojamento dos presos; outro os encaminhava ao veículo; outro ordenava se despirem e distribuía toalhas e sabão; outro apertava o botão vermelho; e, por fim, um grupo retirava os corpos da câmara de gás sem se preocupar por que foram mortos. Processo confirmado pela descoberta, em 1980, dos relatos escritos pelo grego Marcel Nadjari e guardados no interior de uma garrafa térmica enterrada no solo de Auschwitz, onde ele, prisioneiro, fazia parte do Sonderkommando, a equipe que retirava os cadáveres das câmaras de gás (cf: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42193700).

Isso se repete hoje em instituições que controlam o mercado financeiro mundial, como o FMI e o Banco Mundial. Ao propor ajustes fiscais, austeridade, teto de gastos a países periféricos, seus oráculos não são movidos por um sentimento de maldade com povos que verão agravada a situação de pobreza. Seguem a lógica do sistema: esses países tomaram dinheiro emprestado de credores nacionais e internacionais e, agora, precisam honrar suas dívidas. Ainda que isso signifique aumento da mortalidade infantil e do desemprego. 

Eis a lógica do poder, que nem sempre leva em conta os direitos dos subalternos. Isso vale para os casos de feminicídio, nos quais o homem agride a mulher; dos neonazistas que odeiam negros e homossexuais; dos internautas que vociferaram porque a Justiça permitiu que Lula, prisioneiro, comparecesse ao sepultamento do neto. 

Agora as bolhas nas redes digitais funcionam como aldeias virtuais nas quais o usuário se abriga e se identifica com o líder. Ao abdicar de pensar, adquire uma identificação epistêmica que lhe imprime segurança emocional, como a criança de mãos dadas com o pai ao atravessar a rua. 

Passar da consciência ingênua à consciência crítica, como assinala Paulo Freire, é um desafio pedagógico de todos nós que ainda nos pautamos por utopias libertárias.

Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.

Desafios às Forças Progressistas em 2025

Meu primeiro impulso foi intitular este texto de “desafios à esquerda”. Logo me dei conta de que, hoje em dia, resta pouco do que considero esquerda – que se empenha na superação do sistema capitalista.

Adoto “forças progressistas” porque a expressão inclui antibolsonaristas, apoiadores do atual governo Lula, os que se empenham para manter e ampliar a democracia formal, malgrado seu paradoxo de socializar a esfera política (sufrágio universal) e privatizar a econômica, excluindo a maioria da população brasileira de condições dignas de existência (moradia, saúde, educação, cultura, oportunidades de trabalho, que resulta em redução significativa do desemprego etc.).

Abordo em seguida desafios que considero prioritários.

A comunicação do governo

Embora haja grandes feitos em apenas dois anos de governo Lula, após quatro de desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro, poucos sabem que, em 2023, a economia brasileira cresceu 2,9% (alcançou R$ 10,9 trilhões), e em 2024, 3,5%; a renda dos trabalhadores aumentou 12% e consequentemente também o consumo das famílias; o programa Bolsa Família passou a atender 21,1 milhões de famílias (1 milhão a mais que em 2022); recuperação do salário mínimo acima da inflação (embora o ajuste fiscal tenha limitado o crescimento real a 2,5%. Em 2025 deveria ser de R$ 1.528 e passa a R$ 1.518); reestruturação do IBAMA e da FUNAI; o novo programa Pé de Meia (que beneficia 3,9 milhões de estudantes do ensino médio); a instalação de mais de 100 unidades dos Institutos Federais; o programa Mais Médicos, que atende populações mais vulneráveis, conta, atualmente, com quase 25 mil médicos contratados pelo governo federal; e o protagonismo do Brasil no cenário internacional (Brics, G20, COP30 etc.). Haveria muito mais a destacar.

Apesar de tantos avanços, o governo falha na comunicação. Até agora não soube montar uma trincheira digital capaz de superar a influência da extrema-direita nas redes. Pesquisas indicam que 76% dos brasileiros se informam por redes digitais e sites de notícias.

A guerra digital exige um número expressivo de profissionais dedicados à comunicação digital, com a possibilidade de formar grandes influenciadores. O fenômeno eleitoral Pablo Marçal, que não dispunha sequer de um minuto de propaganda na TV, deveria servir para alertar sobre a importância dessa ofensiva.

A batalha ideológica

Outro fator que julgo importante para que as forças progressistas não venham a ser derrotadas pelos neofascistas na eleição presidencial de 2026 é a batalha ideológica.

Convém lembrar que o fim da ditadura militar, em 1985, não resultou de suas inerentes contradições. Pesaram sobretudo o desgaste ideológico com as frequentes denúncias de violações de direitos humanos, o testemunho de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos, a pressão internacional pela redemocratização do Brasil, e as grandes mobilizações populares como a Passeata dos Cem Mil, as greves operárias do ABC paulista e as concentrações pelas Diretas Já!

Hoje, a esquerda se encontra órfã de referências ideológicas. Elas se multiplicavam antes da queda do Muro de Berlim (1989). Países socialistas serviam de parâmetros às utopias libertárias. O estudo do marxismo e a sua aplicação nas análises da realidade vigoravam. Havia uma militância aguerrida que atuava voluntariamente nas campanhas eleitorais. A extrema-direita se sentia acuada e a polarização da esquerda se dava com a social-democracia.

Isso acabou. Os tempos são outros. E sombrios. A direita se encontra em ascensão eleitoral no mundo. Sua máxima expressão, Donald Trump, ocupa o cargo mais poderoso do planeta. A direita passou a fazer intensa (des)educação política do povo, enquanto as forças progressistas deixaram Paulo Freire dormitar nas prateleiras.

As forças progressistas perderam a capacidade de promover grandes mobilizações populares diante da falta de educação política do povo, da excessiva burocratização dos partidos progressistas, da perda de referências históricas e do esgarçamento do movimento sindical.

Empreendedorismo

O fenômeno do empreendedorismo não é novo. A novidade é ter se tornado um modismo para as classes populares. Vários fatores concorrem para isso: retrocessos e perda dos direitos trabalhistas, precarização das relações de trabalho, desarticulação das estruturas sindicais, supremacia da financeirização sobre a produção, esgarçamento das relações sociais provocado pelas redes digitais etc.

O neoliberalismo, em sua era digital, mina as relações corporativas. A uberização das condições de trabalho e a síndrome dos influenciadores internáuticos, bem como a monetização das redes, criam a ilusão de que todos podem ascender socialmente sem muito esforço. Basta ousar ser patrão de si mesmo. É a nova versão do self-made man.

Outrora a elite era constituída pela nobreza. Na medida em que os títulos nobiliárquicos foram sendo substituídos pelos títulos da Bolsa de Valores, o sangue azul cedeu lugar aos milionários que alcançaram o topo da pirâmide social graças ao empreendedorismo.

Há que acrescer a isso a despolitização da sociedade, agravada desde a queda do Muro de Berlim. Como falar de sociedade pós-capitalista se o socialismo real fracassou? Como incutir nas novas gerações a consciência crítica se o marxismo já não está em voga? Como ampliar o espectro social e eleitoral das forças progressistas se elas abandonaram o trabalho de base?

São desafios que ainda não encontram respostas. E a falta de respostas acelera a ascensão da direita. Faz com que se repitam fatos surpreendentes, como a vitória de Lula sobre Bolsonaro, nas eleições de 2022, por apenas pouco mais de 2 milhões votos, em um universo de 156 milhões de eleitores. Ou a reeleição de Trump em 2024, vitorioso no colégio eleitoral e no voto popular.

Hoje, o eleitor, desprovido de consciência de classe, de relações corporativas (como as sindicais) e imunizado pelos impactos da grande mídia graças às suas bolhas digitais, busca eleger quem lhe possa garantir um lugar ao sol na praia das oportunidades. Na falta de referências revolucionárias (Vietnã, Sierra Maestra, figuras como Mao Tsé-Tung e Fidel) ele vota pensando, primeiro, na prosperidade individual, e não coletiva.

Os eleitores pobres manifestam seu inconformismo ao dar apoio aos que ostentam a bandeira da “antipolítica”. Decepcionados com os políticos tradicionais, preferem os arrivistas, os messiânicos, os que ousam contrariar o perfil da institucionalidade política e se glamourizam pelo histrionismo.

Convém ressaltar que aqueles que se encontram sociologicamente na pobreza não mais se consideram pobres. Para eles, pobres são aqueles que vivem em situação de rua. Um episódio demonstra bem o que assinalo: durante a campanha eleitoral à prefeitura de São Paulo, em 2024, um líder do MTST visitou uma invasão urbana. Não se tratava de ocupação. Um terreno privado havia sido invadido por inúmeras pessoas induzidas por um espertalhão que cobrou por cada espaço em que barracos precários foram erguidos.

Na conversa com um dos invasores, o líder do movimento social indagou como ele se sentia naquela situação de pobreza. O cidadão, vendedor ambulante, reagiu: “Não sou pobre. Tenho um terreno, uma casa e paguei por esse espaço.” Espaço que, com certeza, passado o período eleitoral, o dono da área pedirá reintegração de posse e todos serão expulsos dali pela Polícia Militar.

O fator religioso

Outro importante fator que explica como a esquerda perdeu a mística e a direita “saiu do armário” é a inversão da motivação religiosa. Entre as décadas de 1970 e 1990, a principal rede de organização e mobilização popular no Brasil eram as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e as pastorais populares, inspiradas pela Teologia da Libertação. Isso foi desmantelado com os 34 anos (1978-2013) de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. Coincidiu com o espantoso crescimento das Igrejas evangélicas, cuja maioria de fiéis faz uma leitura salvacionista da Bíblia (pauta de costumes) e não libertária como faziam as CEBs.

A Igreja Católica, que havia feito “opção pelos pobres”, viu os pobres optarem pelas Igrejas evangélicas, nas quais encontram acolhimento e suporte social, inexistentes na maioria das paróquias católicas. Acresce-se a isso o erro de os legisladores brasileiros isentarem as Igrejas de pagar impostos como IPTU, ISS e imposto de renda sobre dízimos e doações. Assim, muitas novas Igrejas surgem para facilitar a lavagem de dinheiro…

As forças progressistas, acuadas pelo fundamentalismo religioso dotado de inegável poder eleitoral, ainda não sabem como enfrentar esse fator que constitui o substrato cultural de nosso povo. E o governo não encontrou ainda uma estratégia que se contraponha ao fenômeno do conservadorismo religioso, cujo impacto cultural e político é significativo.

Em resumo, a direita pode, sim, vencer as eleições presidenciais de 2026 caso o governo Lula e as forças progressistas não recalibrem suas estratégias na comunicação, nas trincheiras digitais, na educação política da população, na questão religiosa, no trabalho de base dos partidos políticos progressistas.

Políticas sociais, por mais necessárias e eficientes que sejam, não mudam a cabeça do povo. Só uma ofensiva cultural, ideológica, será capaz de disseminar na população brasileira um novo consenso progressista como o que elegeu Dilma Rousseff duas vezes e Lula, três.

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

Só come quem paga

Nas sociedades pré-industriais os alimentos tinham mais valor de uso que de troca. Mesmo os servos dos feudos medievais dispunham de um pedaço de terra para cultivar ao menos o necessário às suas famílias. Hoje,  alimento com valor de uso só existe nas etnias indígenas tribalizadas na selva. Fora disso,  têm apenas valor de troca: quem pode comprar, se alimenta; quem não pode, fica condenado à fome. É a lógica do capitalismo, no qual os privilégios do capital estão acima dos direitos humano.

Em raros países, como Cuba, a alimentação é um direito do cidadão e um dever do Estado. A toda família cubana é garantida, mensalmente, uma cesta básica. Outros países, como o Brasil, adotam políticas sociais para assegurar que ninguém passe fome. O Bolsa Família assegura uma renda básica para mais de 21 milhões de famílias em todos os 5.570 municípios do país. O programa beneficia 54,37 milhões de pessoas, das quais 25 milhões são crianças e adolescentes de zero a 18 anos incompletos.

O mundo produz comida suficiente para alimentar 12 bilhões de bocas. E somos, atualmente, 8,2 bilhões de habitantes. Portanto, não há falta de alimentos. Há falta de justiça, de partilha. 

Hoje, 733 milhões de pessoas ao redor do globo não têm acesso a calorias e nutrientes suficientes, e 2,8 bilhões, que não podem pagar por uma dieta saudável, sobrevivem em insegurança alimentar.

Na reunião do G20 no Rio, em novembro último, Lula lançou o Pacto Global contra a Fome e a Pobreza. O tema sempre lhe foi sensível, pois Lula não veio da pobreza, veio da miséria. Dos 12 filhos de sua mãe, dona Lindu, 4 morreram de fome.

O Pacto visa a acionar mecanismos de cooperação entre países, projetos, instituições financeiras e fundos econômicos para desenvolver ações que minorem essa grave violação ao direito humano fundamental – o acesso à alimentação.

Além de transformar o alimento em uma mercadoria com valor de troca, o capitalismo criou mecanismos para controlar toda a cadeia produtiva alimentar como fator de lucros acumulados em mãos privadas. As três maiores gestoras de investimentos do mundo são BlackRock, Vanguard e State Street. Três empresas estadunidenses. Em 2022, as três possuíam US$ 19,7 trilhões em ativos – equivalente a 10,5 PIBs do Brasil. Elas controlam as ações de 21 das 31 corporações que comandam o comércio de alimentos no mundo, entre as quais Coca-Cola, Pepsico, Tyson Foods (carnes) e Bunge (grãos).

A BlackRock detém mais de 5% das ações da Nestlé. As fatias podem parecer pequenas, mas suficientes para exercer pressão. As ações dão direito a voto, o que abre espaço para incidir sobre as diretrizes de uma corporação.

Essas corporações controlam todo o sistema alimentar globalizado: agrotóxicos, sementes, fertilizantes, máquinas agrícolas, farmacêutica animal, processadoras de grãos (tradings), indústria da carne, fabricantes de ultraprocessados e supermercados.

Como enfatiza o cientista político italiano Ricardo Petrella, líder do movimento Slow Food, a BlackRock quer o mundo a seus pés: “Reconfigurar [o mundo] à luz do gigantismo significa principalmente fortalecer a concentração de poder que os últimos 50 anos confirmaram ser perversa. A concentração, especialmente a financeira, ocorre de acordo com os princípios, objetivos e interesses dos sujeitos financeiros e tecnocráticos mais ricos. Os direitos fundamentais à vida e ao bem-estar dos povos da África, América Latina e Ásia são cada vez mais ignorados.”

Segundo dados do relatório financeiro da empresa em 2022, o mercado total de ações e títulos no mundo é estimado em US$ 130 trilhões. Para efeito de comparação, as dez maiores economias do planeta somavam US$ 67,2 trilhões em 2023, ou seja, a metade disso.

Hoje, o capital financeiro em circulação no mundo é muito maior que o chamado “capital produtivo”, dedicado a atividades de comércio, serviços e indústria. Dessa maneira, é fundamental entender a influência das maiores gestoras de investimentos sobre as empresas integradas aos processos produtivos.

Para manter-se poderosa no mercado financeiro, uma corporação precisa sempre entregar melhores resultados. Isso leva a uma pressão por redução de custos, o que significa violações laborais, redução de salários e demissões. E também fraudar o pagamento de impostos, seja legal (elisão) ou ilegalmente (evasão). Bem como pressão sobre governos e parlamentos para que reduzam impostos, cortem direitos dos trabalhadores e promovam ajustes fiscais que afetam prioritariamente as políticas sociais.

O sistema alimentar controlado por corporações é, hoje, responsável por muitos problemas de escala global. Uma das principais preocupações é a ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, câncer e hipertensão, provocadas pelos ultraprocessados.

A pressão pela redução de custos de produção leva à substituição de ingredientes integrais, como farinhas, gorduras, leite e ovos, por fragmentos e derivados, como soro de leite, isolados proteicos e gorduras hidrogenadas. Somados a aditivos, esses fragmentos resultam em produtos que têm composição nutricional pior e cujos efeitos à saúde física e mental no longo prazo ainda não são totalmente conhecidos. Porém, o que se sabe é suficiente para afirmar que os ultraprocessados são um fator associado a doenças e morte precoce.

Investimentos das maiores gestoras do mundo podem dar ainda mais impulso a que essas corporações tenham posições oligopólicas, excluindo concorrentes menores, e provocando milhares de falências ao longo das últimas décadas. Quem passou dos 50 anos de idade deve se perguntar: onde estão as quitandas, os mercadinhos e os armazéns de nossa infância?

Além disso, as corporações reduzem cada vez mais os preços dos ultraprocessados. No  Brasil, 2022 marcou o momento histórico no qual eles se tornaram, na média, mais baratos que alimentos in natura e minimamente processados.

Muitas empresas do sistema alimentar globalizado estão associadas direta ou indiretamente ao colapso climático que afeta o futuro da humanidade e de milhares de espécies animais e vegetais. As emissões  de gases de efeito estufa e a pecuária estão entre as maiores causas de aquecimento global. Monoculturas de grãos (soja, milho etc.) e criação de gado são duas das principais explicações para o desmatamento e a grilagem de terras. No Brasil, em 2022, a quase totalidade da derrubada de matas e florestas esteve relacionada a essas duas atividades.

Diante disso, o que fazer? Valorizar a agroecologia e a agricultura familiar; comprar nos Armazéns do Campo, caso o seu município tenha um; promover compras comunitárias; organizar hortas coletivas; pressionar políticos e empresas que favorecem o comércio de ultraprocessados. É o mínimo.

Frei Betto é escritor e assessor da FAO para a Soberania Alimentar e Educação Nutricional, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.

Feliz Ano-Novo

Por que desejar Feliz Ano-Novo se há tanta infelicidade à nossa volta? Será feliz o próximo ano para os palestinos e os soldados usamericanos sob ordens de um presidente que qualifica de “justas” guerras de ocupações genocidas? Serão felizes as crianças africanas reduzidas a esqueletos de olhos perplexos pela tortura da fome? Seremos todos felizes conscientes dos fracassos de tantos tratados de proteção ambiental para salvar a lucratividade e comprometer a sustentabilidade?

O que é felicidade? Aristóteles assinalou: é o bem maior a que todos almejamos. E alertou meu confrade Tomás de Aquino: mesmo ao praticarmos o mal. De Hitler a madre Teresa de Calcutá, todos buscam, em tudo que fazem, a própria felicidade.

A diferença reside na equação egoísmo/altruísmo. Hitler pensava em suas hediondas ambições de poder. Madre Teresa, na felicidade daqueles que Frantz Fanon denominou “condenados da Terra”. 

A felicidade, o bem mais ambicionado, não figura nas ofertas do mercado. Não se pode comprá-la, há que conquistá-la. A publicidade empenha-se em nos convencer de que ela resulta da soma dos prazeres. Para Roland Barthes, o prazer é “a grande aventura do desejo”. 

Estimulado pela propaganda, nosso desejo corre o risco de exilar-se nos objetos de consumo. Vestir esta grife, possuir aquele carro, morar neste condomínio de luxo – reza a publicidade – nos fará felizes.

Desejar Feliz Ano-Novo é esperar que o outro seja feliz. E desejar que também faça os outros felizes? O pecuarista que não banca assistência médico-hospitalar para seus peões e gasta fortunas com veterinários de seu rebanho, espera que o próximo tenha também um Feliz Ano-Novo? 

Na contramão do consumismo, Jung dava razão a São João da Cruz: o desejo busca sim a felicidade, “a vida em plenitude” manifestada por Jesus, mas ela não se encontra nos bens finitos ofertados pelo mercado. Como enfatizava o professor Milton Santos, acha-se nos bens infinitos.

A arte da verdadeira felicidade consiste em canalizar o desejo para dentro de si e, a partir da subjetividade impregnada de valores, imprimir sentido à existência. Assim, consegue-se ser feliz mesmo quando há sofrimento. Trata-se de umaexperiência   espiritual. Ser capaz de garimpar as várias camadas que encobrem o nosso ego.

Porém, ao mergulhar nas obscuras sendas da vida interior, guiados pela fé e/ou pela meditação, tropeçamos nas próprias emoções, em especial naquelas que traem a nossa razão: somos agressivos com quem amamos; rudes com quem nos trata com delicadeza; egoístas com quem nos é generoso; prepotentes com quem nos acolhe em solícita gratuidade. 

Se logramos mergulhar mais fundo, além da razão egótica e dos sentimentos possessivos, então nos aproximamos da fonte da felicidade, escondida atrás do ego. Ao percorrer as veredas abissais que nos conduzem a ela, os momentos de alegria se consubstanciam em estado de espírito. Como no amor.

Feliz Ano-Novo é, portanto, um voto de emulação espiritual. Claro, muitas outras conquistas podem nos dar prazer e alegre sensação de vitória. Mas não são o suficiente para nos fazer felizes. Melhor seria um mundo sem miséria, desigualdade, degradação ambiental, políticos corruptos!

Essa infeliz realidade que nos circunda, e da qual somos responsáveis por opção ou omissão, constitui um gritante apelo para nos engajarmos na busca de “um outro mundo possível”. Contudo, ainda não será o Feliz Ano-Novo.

O ano será novo se, em nós e à nossa volta, superarmos o velho. E velho é tudo aquilo que já não contribui para tornar a felicidade um direito de todos. À luz de um novo marco civilizatório há que superar o modelo produtivista-consumista e introduzir, no lugar do PIB, a FIB (Felicidade Interna Bruta), fundada na economia solidária.

Se o novo se faz advento em nossa vida espiritual, então com certeza teremos, sem milagres ou mágicas, um Feliz Ano-Novo, ainda que o mundo prossiga conflitivo; a crueldade, travestida de doces princípios; o ódio, disfarçado de discurso amoroso.

A diferença é que estaremos conscientes de que para ter um Feliz Ano-Novo é preciso abraçar um processo ressurrecional: engravidar-nos de nós mesmos, nos virarmos pelo avesso e deixarmos o pessimismo para dias melhores.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

Missa do Galo

O ano, se bem me lembro, era 1955. Nas férias de verão, Nando, treze anos, e eu, onze, fomos enviados por meus pais à casa de Isá Guinle Paula Machado Libanio e Nelson Libanio, no Rio. Nelson era primo em primeiro grau de minha mãe. Assemelhava-se a Omar Sharif pelo porte alto, os cabelos pretos cheios, o rosto encorpado. Trazia um bigode bem cuidado e falava manso, com entonações abertas.

Filho de meu tio avô, Samuel Libanio que, em Minas, ensinou medicina a Guimarães Rosa e Juscelino Kubitschek, Nelson seguiu a carreira do pai e jamais abandonou o consultório. Terminado o curso, a formatura estendeu-se em viagem à Europa. No correio de Paris, esbarrou em Isá, moça franzina cuja aparência não denunciava sua origem aristocrática. Da língua comum nasceu o encanto e o amor os fez marido e mulher.

Isá, entre irmãos, era a única filha de Celina Guinle e Lineu Paula Machado. Sua fé cristã, apurada pela ótica francesa, livrou-a dos salões e das futilidades. Nutria-se de Maritain, De Lubac, Mounier, a ponto de convencer a família a investir numa editora que divulgasse no Brasil o que havia de mais avançado na teologia europeia: a Agir.

Quem visse Isá e Nelson juntos juraria que ele era o nobre e ela, a plebeia. Garboso, gestos comedidos, ele fumava com o charme de Humphrey Bogart em Casablanca. Trajava ternos brancos de linho ou casimira, e acalentava a mineirice que o distanciava de ambições e enlevos sociais.

Os óculos de Isá adelgavam ainda mais seu rosto fino e acentuavam sua vocação intelectual. Trazia o sorriso sóbrio, porém radiante, de uma luz que refletia sua consistência de espírito. Seus valores morais sobrepujavam, e muito, os pecuniários. Era módico o conforto da casa em que habitavam em Botafogo. Mormente se comparada aos requintes do palacete neoclássico da rua São Clemente, dotado de elevador e capela, hoje transformado em Casa Firjan. Ali crescera Isá.

O Vera Cruz, trem que ligava Belo Horizonte ao Rio, todo fim de ano trazia Nando e eu à acolhida do casal, na rua Guilhermina Guinle. A casa em que vivia, em estilo moderno, tinha dois pavimentos. No térreo, áreas sociais e, acima, suítes e quartos. Entre a sala de jantar e o jardim, retalhado pela piscina, um alpendre forrado de plantas. Era o melhor lugar da casa. Ali, refestelado em cadeiras de vime, dei minhas primeiras tragadas. Não resisti à tentação das cigarreiras de prata abarrotadas de cigarros Kent.

Nando e eu, na noite de Natal, íamos à missa do galo na matriz de São João Batista, na rua Voluntários da Pátria. Não era como hoje, que mais parece missa da galinha ou do pinto, celebrada muito antes da meia-noite. Culpa da falta de fé, dos bandidos ou da nossa ansiedade de abrir os presentes e devorar a ceia? O espírito litúrgico, mais enraizado, dava importância às festas do calendário cristão.

Missa do galo sem comunhão era aniversário sem bolo. Confessávamos ao padre os escrúpulos, o despertar do sexo, pequenas mentiras, birras que ficavam na conta de brigas. Três pai-nossos, três ave-marias e pronto!, estávamos reconciliados com Deus, malgrado o débito com o purgatório.

Mandava a Igreja que se fizesse jejum pelo menos três horas antes de se aproximar da mesa eucarística. Exceto água. Jejum na adolescência era um suplício, sobretudo naquela casa equipada com três geladeiras repletas de fiambres, queijos, compotas, sorvetes, doces e geleias. Quem sabe o sacrifício não valesse mil anos de indulgência!

Para bons quitutes, Nando tinha faro pantagruélico. Enamorou-se de uma torta coberta de chocolate que desfrutava lugar de destaque na geladeira da copa. Fomos à missa com a torta a aguçar-nos imaginação e apetite. O rito era em latim e o padre celebrava de costas à assembleia. Fora a beleza dos cânticos, nada distraia-nos da expectativa do maná que nos aguardava em casa. Se a comunhão trazia o céu à Terra, a torta com certeza nos remeteria da Terra ao céu. Pronunciado o Ite missa est, saímos céleres pela noite quente de Botafogo, onde o que havia de mais alto, abaixo das estrelas, eram as copas frondosas das árvores.

Passava de uma da madrugada quando fomos abrir os presentes. Isá, já recolhida, gritou do quarto: “Não deitem sem lanchar”. Nando retirou da geladeira nossa maçã do Paraíso e, solene, pousou-a sobre a mesa da copa. O Menino Jesus já havia nascido, o galo cantado, os sinos repicados e as ceias devoradas. Restava apenas saciar o nosso abissal apetite juvenil.

Cortou-se a primeira fatia: um creme. Várias camadas multicores, um bolo assorvetado entremeado de frutas cristalizadas e encharcado em licores. Veio a segunda: agora sim, o paladar, apaziguado, apreciava melhor. Não era uma simples torta. Era o manjar que os reis magos deviam ter ofertado no presépio. A cobertura crocante de chocolate derretia na boca e o olfato impregnava-se desse perfume de baunilha que nos remete à calda espessa e quente. Chocolate cheira a aconchego; agasalha-nos por dentro. A massa leve evolava-se na língua que, atenta, atinava com o licor, as nozes, os pistaches, as tâmaras e as cerejas. 
Não falávamos. No silêncio da madrugada, a curva do doce encolhia-se, fatia a fatia. Há que ser educado! Éramos hóspedes e convinha deixar um pedaço, o bastante para o casal anfitrião provar à sobremesa. Fomos dormir o sono dos eleitos.

Acordou-nos um grito. O sol ia alto, mas tínhamos ainda os olhos pesados. Clamor de perplexidade e desolação. Era Isá. Foi a única vez que a ouvimos estarrecida. Não vimos; enfiamos a cabeça nos lençóis.

A torta era a sobremesa que o casal levaria ao almoço de família no palacete da São Clemente. Viera de Paris, encomendada do Maxim’s, aos cuidados da Air France. O glutão do Papai Noel passara e não resistira… 

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mario Sérgio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papyrus), entre outros livros.