Dia Mundial da alimentação (16/10) e os desafios à humanidade afetada pela COVID-19

Relatório da ONU, divulgado em 13 de julho de 2020, frisa que em 2019 mais 10 milhões de pessoas no mundo ingressaram no inferno da fome, que hoje abriga 820 milhões. A este número podem ser acrescidos mais 270 milhões até o final do ano. Em cinco anos, o aumento é de quase 60 milhões.

A desnutrição aumentou pelo quarto ano seguido em todo o mundo. Quase um em cada 10 habitantes do planeta sobrevive em insegurança alimentar. Segundo a Oxfam, 12 mil pessoas podem morrer de fome a cada dia até o final de 2020.

Dois bilhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar, ou seja, não têm acesso regular a alimentos nutritivos em qualidade e quantidade suficientes. Cerca de 3 bilhões não têm meios para manter uma dieta considerada equilibrada, como ingestão suficiente de frutas e legumes. Em média, uma dieta saudável custa cinco vezes mais do que uma dieta que só atende às necessidades de energia com alimentos ricos em amido. Assim, a obesidade aumenta, tanto em adultos quanto em crianças.

Importante destaque do relatório deste ano é sobre a qualidade de comida ingerida. Atualmente uma dieta saudável, variada e com os nutrientes necessários, é inalcançável para 38% da população mundial, aproximadamente 3 bilhões de habitantes. Cerca de 104,2 milhões dessas pessoas vivem na América Latina e Caribe.

As crianças são as mais afetadas pela ausência de alimentação e oferta de má qualidade. Em 2019, 144 milhões de crianças abaixo de cinco anos foram atingidas pelo crescimento atrofiado, enquanto outras 38,3 milhões estavam com excesso de peso.

O aumento da fome e da insegurança alimentar neste ano se deve à desaceleração da economia global, em razão da pandemia, agravada pelas restrições impostas à circulação de mercadorias e pessoas, o que ampliou o índice de desemprego. Políticas de proteção social deveriam ter sido adotadas com mais eficácia pelos governos. As principais vítimas dessa conjuntura são mulheres e crianças.

Uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável é erradicar a fome no mundo até 2030. De olho nas tendências atuais, a perspectiva para alcançar a fome zero é negativa. Se as tendências se mantiverem, o número de pessoas afetadas pela fome ultrapassará 1 bilhão até 2030.

O único dado positivo é não haver tanto atraso no crescimento físico de crianças (altura) de cinco anos. Houve queda de 1/3 entre 2000 e 2019. Mais de 90% delas vivem na Ásia ou na África.

Na América Latina e Caribe, mais de 47 milhões de pessoas foram atingidas pela fome em 2019. É nessa região que a insegurança alimentar mais aumenta. Cresceu de 22,9%, em 2014, para 31,7% em 2019.

Data emblemática

O Dia Mundial da Alimentação, comemorado a 16 de outubro desde 1981, é atualmente celebrado em mais de 150 países. Trata-se de uma importante data para consciencializar a opinião pública sobre questões relativas à nutrição e à alimentação.

Neste ano de 2020 dois eventos, um positivo e outro negativo, marcam a data em Cuba: como positivo, a aprovação, pelo Conselho de Ministros, do PLAN SAN, o Plano de Soberania Alimentar e Educação Nutricional, que já começa a ser implementado em todo o país. O negativo é a pandemia de Covid-19, que Cuba tem enfrentado com sua ampla rede de proteção sanitária, o que evita que o número de vítimas fatais ultrapasse uma centena, e o país avança na busca de uma vacina eficaz, a Soberana1.

Pandemia e subalimentação

“A gente está comendo pior. Cada vez tem que tirar mais uma coisa dos gastos familiares para poder comer. Desde o começo do ano de 2020, nossa vida piorou muito. A gente só vai ao mercado quando alguma coisa acaba, não tem mais aquela compra ‘de mês’. Carne quase não tem mais. Tenho medo que volte o dia de ‘fazer a xepa’, porque não vou ter dinheiro para fazer feira.” Xepa é a expressão usada pelos brasileiros para designar as sobras de produtos na feira livre ou no mercado.

Esse depoimento da trabalhadora doméstica Denise Gonçalves ao jornalista Rodrigo Gomes, moradora em um bairro da periferia de São Paulo, expressa o que milhões de pessoas sofrem, no Brasil, com o aumento dos preços dos alimentos em meio à pandemia de Covid-19 e o desemprego que atinge 13,7 milhões de trabalhadores. Para as famílias, o aumento de preços dos alimentos traz de volta a ameaça da fome.

Segundo pesquisa da Associação de Consumidores Proteste, já em maio o aumento de preços dos alimentos chegou a até 106% em supermercados de São Paulo, na comparação com 2019. O arroz subiu 25,7% de janeiro e agosto, e os estoques estatais acabaram.

A reação do governo Bolsonaro tem sido “pedir patriotismo” aos supermercados e dizer que eles deveriam reduzir seus lucros sobre os preços dos alimentos. Mas o presidente tem se recusado a tomar qualquer medida que possa influenciar na redução dos preços.

Efeitos na América Latina

A América Latina e o Caribe (ALC) abrigam 8,5% da população mundial. Entre 2000 e 2020 a fome foi reduzida quase à metade nos 33 países da região. De 73 milhões de famintos passou a 38 milhões, segundo a FAO. Isso ocorreu graças aos governos progressistas que implementaram políticas sociais, redes de proteção social, programas de alimentação escolar e apoio à agricultura familiar.

Porém, iniciou-se o retrocesso a partir de 2015 – mesmo ano de lançamento da Agenda 2030 da ONU, cujo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável é “fome zero”. O número de pessoas vivendo em insegurança alimentar na América Latina e Caribe chegou a 43 milhões em 2018. Para 2020, a Cepal prevê aumento de 16 milhões de pessoas na extrema pobreza. Realidade que é retratada pelo código das Bandeiras Brancas adotado agora em vários países, entre os quais Peru, Honduras, Guatemala e El Salvador: a família desprovida de qualquer alimento coloca à frente da casa um pano branco em sinal de que necessita urgente de socorro alimentar.

Não faltam alimentos no Continente. Falta justiça. Hoje, 84 milhões de crianças na América Latina e Caribe dependem da escola para ter acesso à boa alimentação, das quais 10 milhões só ingerem uma refeição minimamente nutricional ao receber a merenda escolar. Agora o vírus as exclui da escola e as aproxima da fome.

A Cepal e a OIT calculam que a Covid-19 resultará em mais 300 milhões de pobres na ALC, dos quais 83 milhões em extrema pobreza. O PIB do Continente deve decrescer 5%. Isso devido à paralisação dos mercados internos, diminuição do fluxo de cadeias globais, queda nos preços das matérias-primas e interrupção do trabalho informal de migrantes. A crise elevará a taxa de desemprego a 11,5%, o que significa 12 milhões de novos desocupados. Atualmente são 25 milhões. No fim deste ano serão 37 milhões na região.

Hoje, dos 292 milhões de trabalhadores na América Latina e Caribe, 158 milhões operam na informalidade. Entre jovens de 15 a 24 anos, o índice chega a 62,4%. A pandemia provocou a perda de 80% da renda dos trabalhadores informais. No mundo, de 60%.

Os governos latino-americanos e caribenhos destinam apenas 0,7% do PIB às populações mais vulneráveis. Deveria ser, no mínimo, 3,4%, para assegurar a sobrevivência de 214 milhões de pessoas que ingressarão na pobreza até o final deste ano. Os países mais afetados serão Brasil, Argentina, México, Equador e Nicarágua.

Outro grande paradoxo do nosso mundo atual é que não aumenta somente a fome. A obesidade se tornou uma praga que não diferencia países ricos ou pobres, do Norte ou do Sul, desenvolvidos ou não, nem barreiras de gênero ou idades. É uma ameaça globalizada. Sobrepeso e obesidade aumentaram em todas as regiões, sem exceção. Cerca de 2 bilhões de adultos – mais que o dobro do número de pessoas com fome – têm sobrepeso, assim como cerca de 207 milhões de adolescentes e 131 milhões de crianças, entre 5 e 9 anos de idade. Quase 1/3 dos adolescentes e adultos com sobrepeso são também obesos.

Desnutrição na África

O grave impacto que a pandemia de Covid-19 está tendo na alimentação da população da África Subsaariana deixa 67.000 crianças em risco de morrer de fome, antes do final deste ano (cerca de 426 por dia), a menos que medidas de contenção sejam tomadas, alertou a ONG Save the Children, com base em um estudo publicado pela revista The Lancet.

A ONG destacou que a insegurança alimentar se viu agravada em diferentes partes do continente africano pelas cheias, infestações de gafanhotos e o aumento nos preços dos alimentos, ao que se juntou a pandemia, que paralisou a economia e destruiu os meios de subsistência de milhares de famílias.

De acordo com as primeiras estimativas realizadas, a pobreza deve aumentar 23% na África Subsaariana devido à pandemia, e até 2030 o número de pessoas subnutridas no continente pode chegar a 433 milhões.

Em uma situação de insegurança alimentar como a atual, lembra a organização Save the Children, as crianças correm alto risco de sofrer de desnutrição aguda. Já antes do coronavírus, havia mais de 26 milhões de crianças, na África Oriental e Meridional, sofrendo de desnutrição aguda grave, a forma mais letal de desnutrição. Agora, na África Ocidental e Central, estima-se que 15,4 milhões de crianças menores de 5 anos sofram de desnutrição aguda grave este ano, um aumento de 20% em relação aos dados anteriores.

Segundo explicou Ian Vale, diretor regional da Save the Children na África Oriental e Meridional, os “efeitos devastadores” do vírus já estão sendo vistos nas pessoas mais vulneráveis do mundo. “As medidas contra a Covid-19 dizimaram os meios de subsistência e a produção agrícola, tornando os alimentos, quando disponíveis, extremamente caros. Em poucas palavras, muitos pais e mães já não podem colocar comida na boca dos filhos”, resumiu.

Mesmo antes da pandemia, a África Subsaariana era uma das regiões com a maior insegurança alimentar do mundo, e há temores de que, se as tendências atuais continuarem, será o lar de mais da metade das pessoas com fome crônica do mundo. “A cada dia chegam mais meninos e meninas às nossas clínicas com sintomas de desnutrição, e isso é só o começo. Se esperarmos até que as clínicas estejam lotadas, será tarde demais”, advertiu Vale, destacando que “a crise alimentar pode matar dezenas de milhares de crianças, caso não recebam assistência humanitária imediata”.

Diante dessa situação, a organização Save the Children já fornece alimentos e dinheiro às famílias mais vulneráveis, garantindo o acesso à água potável e mantendo seus programas de saúde e nutrição funcionando de forma segura diante da crise do coronavírus. Além disso, pediu aos governos e doadores a mobilização urgente de fundos para ajudar as crianças mais pobres e vulneráveis do mundo.

Olivier De Schutter, relator da Organização das Nações Unidas (ONU), considera que mais de 1.400 medidas de proteção social adotadas por diferentes governos foram amplamente insuficientes e 176 milhões de pessoas devem se somar à população pobre mundial após a pandemia. Isso significa um crescimento de 2,3% na taxa de pobreza em comparação a um cenário sem a pandemia.

As redes de segurança social implementadas por vários governo estão, em geral, cheias de buracos. As medidas costumam ser de curto prazo, e com financiamento insuficiente. Milhares de pessoas mais pobres, que se encontram em condições de trabalho precárias ou sem residência permanente, estão excluídas dos programas de proteção social. Pois muitos programas, como acontece com o Auxílio Emergencial adotado pelo governo brasileiro, exigem que as inscrições sejam concluídas online, o que de fato exclui grande parcela da população que não tem acesso à internet ou não dispõe de habilidades digitais.

Repensar a produção e o consumo

Segundo Inger Andersen, diretora executiva do PNUMA (Programa da ONU para o Meio Ambiente), “a pandemia expôs a fragilidade de nossos sistemas de abastecimento de alimentos, desde cadeias de valor complexas até impactos em nossos ecossistemas. Mas também demonstrou que as empresas e as pessoas estão prontas para se reconstruírem melhor. Essa crise nos oferece a chance de repensar radicalmente como produzimos e consumimos alimentos. Por exemplo, reorientar o consumo reduzindo pela metade o desperdício de alimentos e adotar mudança para dietas mais ricas em vegetais também são ferramentas poderosas de mitigação climática que podemos utilizar. Cabe a nós aproveitar essa oportunidade e colocar os sistemas alimentares sustentáveis no centro da recuperação verde.”

As 16 ações identificadas no relatório inclui aprimorar métodos de produção e reduzir a emissão de metano pela pecuária para diminuir emissões significativas. Porém, reduções muito maiores poderiam ser alcançadas com a adoção de dietas mais saudáveis e sustentáveis, que contenham proporção maior de alimentos vegetais em vez de animais. Hoje, qualquer plano climático nacional deve discutir de forma explícita a questão das dietas.

Resolver a questão alimentar não é apenas um pré-requisito para alcançar os objetivos da Agenda 2030. A transição para produções regenerativas e que absorvam carbono, além da adoção de dietas saudáveis, predominantemente baseadas em vegetais – que são baratos e acessíveis –, bem como a redução à metade da perda e desperdício de alimentos, são ações cruciais, que devem ser incluídas na agenda dos países e integradas em seus planos de ação climáticas com objetivos claros.

Em 2021, no contexto da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 15), líderes globais podem concordar com um novo acordo para a natureza e as pessoas, e com paralisação e reversão da perda da biodiversidade. A primeira Conferência das Nações Unidas para Sistemas Alimentares também está prevista para 2021. Conforme o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, “transformar sistemas alimentares é crucial para alcançar todas as metas de desenvolvimento sustentável”.

Alimentação e combate ao vírus

A alimentação pode ser uma aliada no combate à Covid-19? Não existe evidência científica que associe diretamente este fator à prevenção ou ao tratamento da doença provocada pelo novo coronavírus. Porém, é sabido que alguns nutrientes agem no corpo humano, fortalecendo nosso sistema de defesa. Pesquisadores da Universidade Médica da China publicaram, em fevereiro de 2020, uma revisão sistemática de outros estudos sobre potenciais intervenções no tratamento da infecção. Entre outros procedimentos, os autores sugerem a avaliação nutricional de cada paciente antes da administração dos tratamentos gerais. E destacam a importância, para infectados ou não, de uma dieta equilibrada em vitaminas (A, B, C, D e E), ômega 3, ferro, zinco e selênio. Esses nutrientes “são reconhecidos como imunomoduladores”, explica Taís Lopes, professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, do Brasil, e podem ser encontrados, por exemplo, em frutas, verduras, legumes e grãos. Uma alimentação variada, que combine alimentos in natura, minimamente processados e devidamente higienizados, pode ser a base de uma dieta saudável e, com isso, garantir a imunidade do corpo.

Ao procurar uma fonte de nutrientes, a docente recomenda alimentos que estejam na safra e sejam oriundos de produtores locais. Além de terem preços mais acessíveis do que os produtos que vêm de outras localidades, são mais saborosos e possuem mais qualidade. Se forem cultivados de forma ecológica, sem uso de fertilizantes químicos, fungicidas, inseticidas e herbicidas, por exemplo, garantem também que não se acumule veneno no organismo. Inúmeras pesquisas associam o consumo de agrotóxicos a doenças como cânceres, más-formações congênitas, além de distúrbios endócrinos, neurológicos e mentais.

Alimentação, direito de todos

Em 2019, relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) afirma que, em todo o mundo, os números da subnutrição voltaram a subir, após décadas em declínio, com mais de 820 milhões de pessoas sem acesso à alimentação digna e adequada. No Brasil não foi diferente, e indicadores sociais recentes revelam que o país está de volta ao Mapa da Fome (havia saído em 2014, segundo a própria FAO), com 6,5% de sua população em situação de extrema pobreza. Dados deste mês de setembro registram que, no Brasil, 10 milhões de pessoas voltaram à fome este ano.

A alimentação é um direito indispensável para a sobrevivência humana. “As normas internacionais reconhecem o direito de todos à alimentação adequada e o direito fundamental de toda pessoa a estar livre da fome como pré-requisitos para a realização de outros direitos humanos”, explica a professora Taís Lopes.

Segundo ela, “a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) requer a adoção de políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição, acesso, consumo de alimentos seguros e de qualidade, promoção da saúde e da alimentação adequada e saudável em todos os níveis federativos”. Em tempos de pandemia, a professora destaca a importância de o Estado agir de forma ágil e priorizando as populações mais vulneráveis. “O acesso físico ou econômico aos alimentos deve se dar por meio de ações emergenciais do Estado em conjunto com a sociedade civil organizada, garantindo o isolamento social necessário. O Estado também deve fiscalizar a venda de alimentos por preços abusivos”, reforça.

Para quem ainda tem o direito à alimentação respeitado, é recomendável que se evite estocar alimentos e, também, desperdiçá-los. O que sobra para poucos, falta para muitos. A sugestão é fazer um cardápio semanal, planejar as compras e aproveitar integralmente tudo o que estiver na sacola.

Vale lembrar que, após adquirir os produtos, é importante higienizá-los. Sanitizante hipoclorito de sódio para o que vem da feira ou direto do produtor (frutas, verduras, legumes etc.), água e sabão ou álcool 70° para embalagens que não forem descartadas.

Para tanto, é preciso algo básico: que se tenha acesso à água, de qualidade e em quantidade suficiente. A água será necessária também para o cozimento dos alimentos e a hidratação.

Quando respeitar a quarentena se torna fundamental para a saúde coletiva, a cozinha pode ser um refúgio. “A reclusão é uma oportunidade para cozinhar em família, testar novas receitas, adquirir novos hábitos, experimentar novos alimentos e desenvolver novas habilidades culinárias”, frisa a professora Taís Lopes.

Pandemia e desigualdade

No entanto, a Covid-19, como fica cada vez mais evidente, é fonte de enormes desigualdades. Uma delas é a renda. Nem todos sofreram perdas; na verdade, há aqueles que ganharam muito, como os setores farmacêutico, de tecnologia da informação e de crédito. Enquanto devido à pandemia a maior parte do planeta afunda em uma das piores crises econômicas, como sempre os ricos se tornam ainda mais ricos.

Segundo o site Business Insider, 32 das maiores multinacionais do mundo aumentaram seus lucros em um valor de 109 bilhões de dólares em relação à média dos exercícios dos quatro anos anteriores, nos quais já haviam alcançado excelentes resultados. A denúncia vem da Oxfam, que se dedica à redução da pobreza global.

Segundo a Oxfam, a realidade, além do número de infecções e vítimas, é ainda pior: as corporações colocaram seus lucros à frente de tudo, esquecendo a saúde dos trabalhadores, usando sua influência política para moldar estratégias políticas.

Nos Estados Unidos, 27.000 trabalhadores do setor de carnes tiveram resultado positivo e mais de 90 morreram. A Tyson Food, segunda maior processadora e comercializadora de frangos, bovinos e suínos no mundo, publicou documento contra o fechamento das unidades, apesar de 8.500 funcionários terem ficado doentes.

Na Índia, centenas de trabalhadores das plantações de chá, a maioria mulheres, não receberam salários por suposta perda de receitas devido ao vírus. Enquanto isso, alguns dos principais fabricantes aumentaram drasticamente seus lucros.

Em nível planetário, diante de ganhos substanciais, cerca de meio bilhão de pessoas serão levadas para a pobreza pela situação de pandemia; 400 milhões de postos de trabalho já foram perdidos; e, de acordo com sindicatos internacionais, 430 milhões de pequenas empresas estão em risco. Os grandes conglomerados cada vez mais asfixiam os negócios de menor escala.

De 2016 a 2019, as 10 maiores marcas empresariais pagaram US$ 21 trilhões em dividendos, 74% de seus lucros. Desde o início da pandemia, o valor, na Bolsa de Valores, de 100 grandes corporações globais cresceu mais de US$ 3 trilhões. E 25 bilionários, entre os quais Bezos, da Amazon, que se tornou o homem mais rico do planeta, viram sua riqueza aumentar em 255 bilhões de dólares no curto espaço de tempo, entre meados de março e o final de maio de 2020. As empresas farmacêuticas terão margens de lucro de 21% em 2020.

Todo esse dinheiro não é gasto para aumentar postos de trabalho, salários ou a segurança do trabalhador. Acabam no bolso de alguns poucos privilegiados e servem para pressionar outros mecanismos financeiros, incluindo o valor das ações.

Quase nada dessa riqueza foi destinada a combater a Covid-19 ou sustentar ajudas governamentais prestadas às populações. De acordo com a Oxfam, as doações durante este período chegaram a apenas 0,5% dos ganhos de 2019.

Os vencedores da era pós-Covid-19 sempre serão as grandes corporações e seus acionistas, que depois distribuirão esmolas. Dessa forma, o poder do Estado é enfraquecido e a sociedade sai perdendo.

A Oxfam, portanto, acredita que chegou a hora em que os governos deveriam encontrar maneiras de reduzir esses superlucros. Mas, para isso, seria necessário uma revolução cultural e ética que substituísse a lógica do “livre mercado” pela lógica da partilha e da isonomia de direitos, adotada por Cuba.

Fontes: Relatórios Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO); Oxfam; Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola; Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); Save the Children; Programa Mundial de Alimentos; a Organização Mundial da Saúde (OMS); PNUMA (Programa da ONU para o Meio Ambiente); site Business Insider.

Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco) e assessor da FAO para questões de Soberania Alimentar e Educação Nutricional.

É uma ingenuidade total querer humanizar o capitalismo

Por Bárbara Schijman
Publicado no Página 12

Frei Betto
Frei Betto

O intelectual brasileiro fala da “hegemonia total do capital” em um mundo em pandemia

Ele chama seu presidente de Bolsonero, comparando-o com o imperador romano que entrou para a história por ter queimado Roma. Aponta a urgência da construção de um socialismo sólido e a necessidade de pensar estratégias contra a narrativa hegemônica dos setores conservadores.

Carlos Alberto Libanio Christo, mais conhecido como Frei Betto, é um reconhecido líder progressista latino-americano e uma das principais figuras da Teologia da Libertação. Escritor, jornalista e frade dominicano, passou quatro anos na prisão durante a ditadura militar brasileira, à qual se opôs de corpo e alma. Durante seu trabalho junto ao movimento popular, conheceu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de cujo governo participou do programa Fome Zero. Ele escreveu 69 livros, editados no Brasil e no exterior, entre eles, Fidel e religião; Batismo de sangue e A Mosca Azul.

Que reflexos este mundo em pandemia abre para você?

Acredito que a pandemia é uma vingança da natureza, resultado de anos de dominação e devastação por seres humanos. Absolutamente tudo o que temos feito nos últimos 200 anos, a busca do lucro e do aproveitamento máximo dos recursos da natureza sem nenhum cuidado com a preservação do meio ambiente, resulta no descontrole da cadeia da natureza, que é totalmente desarticulada pela intervenção humana. Muitos falam em “antropoceno”, ou seja, a era da intervenção total do ser humano na natureza; mas prefiro chamar essa situação de “capitaloceno”. Ou seja, a hegemonia total do capital, da busca do lucro, do lucro; tudo isso que causa um desequilíbrio total do ambiente natural.

Todo esse processo de devastação ambiental é resultado de ganhos de capital privado. O problema não é o ser humano; o problema é o capitalismo neoliberal. E devemos lembrar que a natureza pode viver sem nossa presença desconfortável; não precisamos, precisamos da natureza.

Como você analisa a situação no Brasil?

No meu país a situação é catastrófica porque temos um governo neofascista. Eu chamo o presidente Jair Bolsonaro de “Bolsonero”, cheguei até a lhe dar esse apelido antes da revista The Economist. O Brasil está em pleno fogo, na Amazônia e em outras áreas, e o presidente não tem interesse em melhorar a situação ou mudar o rumo do que estamos vivendo. Tudo o que significa morte combina com ele. Vivemos sob um governo genocida e mentiroso.

Ele é tão flagrante que em seu último discurso na ONU disse que os culpados pelos incêndios na Amazônia são camponeses, pequenos agricultores da região e indígenas. Por isso, não há dúvida de que vivemos aqui no Brasil uma situação catastrófica administrada por um governo neofascista, que usa cada vez mais fundamentalismos religiosos para se legitimar. A saúde importa tão pouco para ele quanto a educação. Bolsonaro sabe muito bem que um povo educado é um povo que tem um mínimo de consciência crítica. E então para ele é melhor que o povo não tenha educação para que possa continuar a guiar uma massa ignorante. Claro que não por causa da missa em si, mas por causa das condições educacionais que não são propriamente oferecidas ao povo. Como se tudo isso não bastasse, voltamos agora a um mapa da fome, com um número enorme de pessoas que não dispõem do mínimo necessário dos nutrientes fornecidos pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Enfim, estamos em uma situação tremenda. Veremos o que acontece nas eleições municipais de novembro.

Que cenário você imagina?

Acho que as eleições serão um termômetro interessante para avaliar a aparência do nosso povo. Mas a verdade é que, nisso, não sou muito otimista. A pandemia ajudou muito para o Bolsonaro ter a hegemonia da narrativa, porque não existem manifestações públicas, são proibidas, ou não são convenientes, então só se ouve a voz do governo.

Ao votar a favor do impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro dedicou seu voto à memória do torturador do Exército, Coronel Carlos Brilhante Ustra. Seu comportamento não deve ser surpreendente. Mas, o que explica que, mesmo assim, mantenha um piso considerável de apoio popular?

Tenho duas explicações para essa situação. Em primeiro lugar, a direita tem o domínio do sistema eletrônico das redes digitais, que prefiro não chamar de “sociais” porque não necessariamente criam sociabilidade. Acho que muita gente de esquerda, progressista, ainda não domina esse mecanismo. E também, como os donos dessas plataformas são favoráveis a setores próximos ao governo, muitos usam algoritmos e outros dispositivos para divulgar notícias falsas. E todo tipo de mentira Isso é muito poderoso porque hoje as pessoas descobrem muito mais sobre notícias e eventos por meio das redes digitais do que pela mídia tradicional. Este é um primeiro fator. O segundo fator está relacionado à mobilização dos mais pobres pelas igrejas evangélicas conservadoras. E depois há pessoas que abdicaram de sua liberdade para buscar segurança. Essa é a proposta do direito mundial: que cada pessoa abdique de sua liberdade em troca de sua segurança.

Frei Betto
Frei Betto

Diante deste último, e da narrativa hegemônica que ele descreve, o que dizer das vozes de esquerda?

Sobre isso nós, aqueles de nós que se sentem de esquerda, temos uma certa responsabilidade porque abandonamos o trabalho de base. Abandonamos o trabalho ao lado das pessoas mais pobres deste país. Nos treze anos que estamos no governo, não aumentamos esse trabalho de base, e esse espaço tem sido ocupado por essas igrejas evangélicas e alguns setores católicos fundamentalistas conservadores. Essas igrejas já percorreram um longo caminho. E isso também tem a ver com um projeto de inteligência dos EUA desde os anos 1970. Em duas conferências realizadas no México, a CIA e o Departamento de Estado já afirmaram que a Teologia da Libertação era mais perigosa que o marxismo na América Latina e que então toda uma contra-ofensiva deveria ser realizada. Essa contra-ofensiva vem de mãos dadas com o surgimento dessas igrejas eletrônicas que foram exportadas para a América Latina, África, Ásia e outros lugares.

A religião é o primeiro sistema de significado inventado pelo homem. Não há outro sentido mais poderoso e globalizante do que a religião. É por isso que há tantos que hoje buscam o domínio desse sistema. E nós, que somos progressistas na Teologia da Libertação, temos feito um trabalho de base intenso e muito positivo aqui no Brasil entre os anos 1970 durante a ditadura militar e também nos anos 1990, mas depois vieram dois próprios pontificados. conservadores, os de João Paulo II e Bento XVI. Foram 34 anos de desmobilização daquela igreja de base, daquela igreja das comunidades eclesiais de base; foram 34 anos de danos à Teologia da Libertação. Tudo isso abriu espaço para essa contra-ofensiva da direita evangélica.

Afirma que “não há futuro para a humanidade fora do socialismo”. Como o socialismo é construído nesta conjuntura?

Não espere que o capitalismo acabe para construir o socialismo. Temos que construir o socialismo dentro do sistema capitalista, ou seja, iniciar iniciativas populares de economia solidária, de partilha de bens, de fortalecimento de bases populares. É aí que começa, não há outra maneira. Não podemos voltar à concepção leninista do assalto ao Palácio de Inverno. Temos que denunciar o sistema capitalista, mas criar alternativas eficazes para este sistema, o mais longe possível da base. Dessa forma, acho que podemos quebrar esse sistema no longo prazo, mas devemos ter iniciativa e pressão e forças políticas. É um trabalho de longo prazo, essencial, e não vejo outra saída além disso na atual conjuntura.

Que exemplos dessas iniciativas você afirma?

Existem muitas iniciativas de setores populares em diferentes lugares. No Brasil, o Movimento Sem Terra tem iniciativas tipicamente socialistas. Recentemente, com a tremenda alta do preço do arroz no Brasil, o MST, que é grande produtor de arroz, não aumentou os preços e fez uma péssima venda. Muitas pessoas puderam descobrir as vantagens da agricultura familiar, onde os serviços e os lucros são repartidos entre famílias assentadas ou acampadas. Existem pequenas iniciativas que temos que fortalecer, e buscar espaços nos governos novamente, porque a possibilidade de trabalhar a partir do governo é muito importante e imensa, como fizemos durante as presidências de Lula e Dilma.

Infelizmente, não aproveitamos todas as possibilidades e, sobretudo, não fizemos um trabalho, para mim fundamental, que tenha a ver com a alfabetização política do povo. Muito mais deveria ter sido investido nisso. Se tivermos outra chance de voltar ao governo, teremos que enfrentar esse trabalho, que é fundamental. Se, por um lado, os treze anos de governo do Partido dos Trabalhadores promoveram muitos avanços sociais no Brasil – eles são os melhores de nossa história republicana -, por outro, não trabalhamos na alfabetização política do povo, no fortalecimento dos movimentos populares, e a democratização dos meios de comunicação.

Há quem defenda que o capitalismo deve ser humanizado. Isso é possível?

É uma ideia totalmente contraditória. Humanizar o capitalismo é o mesmo que arrancar os dentes do tigre, pensando que assim será tirada a sua agressividade; É uma ingenuidade total querer humanizar o capitalismo. Não há possibilidade disso; o capitalismo é inerentemente ruim. Seu próprio mecanismo endógeno é um mecanismo necrofílico. É um sistema que se alimenta do trabalhador, do consumidor, dos pobres. É uma questão aritmética: se não há tanta riqueza, não há tanta pobreza; se não há tanta pobreza, não há tanta riqueza. É impossível humanizar o capitalismo; É uma postulação muito ingênua e infelizmente ainda existem pessoas que acreditam neste mito.

Como é gerada a consciência democrática? Como trabalhar a democratização da sociedade em tempos como os de hoje?

Através de sistemas de comunicação – digital, impresso, audiovisual, etc.-, traduzindo para a linguagem popular muitos dos conceitos divulgados nos meios de comunicação de massa. Pessoas simples muitas vezes não entendem conceitos como dívida pública, investimentos estrangeiros, flutuação da taxa de câmbio, equipamentos de mercado. Isso exige metodologia – que Paulo Freire ensina – e equipes de educação popular.

Você imagina o Lula como presidente do Brasil novamente?

Talvez você tenha a oportunidade porque estão revendo seus julgamentos e sentenças, cheios de tantos preconceitos. Espero ter a chance de ser candidato novamente; é nossa esperança aqui.

Você imagina uma Igreja Católica menos conservadora, de fato atenta às proclamações que defende?

Como eu disse, a Igreja Católica passou 34 anos de pontificados conservadores que desmobilizaram em grande parte toda aquela obra popular das comunidades eclesiais de base, matéria-prima da Teologia da Libertação. Isso não vem da cabeça dos teólogos, vem das bases. Tudo isso foi desmobilizado. Podem ser tempos diferentes das mudanças que o Papa Francisco propõe, mas ainda assim a hierarquia intermediária entre as bases e as pessoas que detêm o poder na igreja não mudou totalmente. Ainda temos um grande número de bispos e padres muito conservadores e que não querem se engajar nas lutas populares, têm medo ou buscam seu conforto, seu conforto e não querem se colocar em risco. Há todo um trabalho a fazer Mas há setores da Igreja Católica e da América Latina que estão muito comprometidos com essas lutas pela defesa dos direitos dos mais pobres, dos direitos humanos; isso é muito forte em muitos setores.

Como você pensa sobre o futuro imediato?

Acho que no futuro imediato haverá uma exacerbação do individualismo. A pandemia exigiu o corte de relacionamentos face a face, então as pessoas vão ficar cada vez mais isoladas, com menos oportunidades de se relacionar e se reunir nas ruas, nos sindicatos, nos movimentos sociais, pelo menos até a vacina venha nos tirar dessa situação. E aqui reaparece a importância de saber lidar com redes digitais. Nós, a esquerda progressista, temos que aprender mais e mais como gerenciar essas redes e mudá-las, porque sabemos que muitos deles estão ali apenas para favorecer o consumo ou mesmo vinculados a serviços de espionagem, inteligência e controle de pessoas. Há muito o que lutar em torno disso, porque é um fator que veio para ficar. Muitas pessoas são informadas por meio dessas redes digitais. Temos que criar grupos com capacidade de dominar essas redes, negar notícias falsas e divulgar a verdade, os fatos reais. Esta é a única maneira de realizar um trabalho virtual de educação política.

Existe Teologia da Libertação hoje?

Sim, claro. A Teologia da Libertação abriu seu campo para outras questões que não são apenas lutas sociais, ela também aborda a questão da ecologia, questões da nanotecnologia, astrofísica, cosmologia, bioética. O problema é que perdemos muito das bases populares que estavam na base da Teoria da Libertação. Essas bases foram perdidas durante esses 34 anos de pontificados conservadores. Nossa tarefa principal é voltar às bases, voltar às aldeias, voltar às favelas, às periferias, voltar aos pobres, aos oprimidos, aos excluídos, como os negros, os indígenas, os LGBT. Todos nós temos que estar nesta luta; é aí que temos que caminhar.

Você está otimista?

Eu tenho um princípio: você tem que guardar o pessimismo para dias melhores. Não podemos jogar o jogo de um sistema que está procurando que permaneçamos calados, deprimidos, desanimados; Temos que continuar lutando. A história tem muitas reviravoltas. Já passei por muita coisa, algumas muito tremendas, algumas positivas. A prisão na ditadura militar, a força dos movimentos populares, a eleição de Lula, a eleição de Dilma… Estou otimista, sim. Não podemos considerar nenhum momento histórico como definitivo.

Para Frei Betto, bispos católicos agem como “reis”, mas continuarão a perder espaço para evangélicos

Por Inácio França
Publicado no Marco Zero

Frei Betto
Crédito: Instituto Brincante

Aos 76 anos, o mineiro Carlos Alberto Libânio Christo é um dos escritores mais produtivos do país. No início da quarentena, ainda no mês de março, lançou O Diabo na Corte, seu 68º livro, escrito ao longo de 2019 sobre a eleição e o primeiro ano de Bolsonaro na presidência da República. Sete meses depois, está prestes a lançar mais uma obra com título autoexplicativo: Diário de Quarentena.

Mesmo com bibliografia tão vasta, poucos conhecem o frade dominicano Frei Betto por seu nome de batismo. Foi a ele que a Marco Zero Conteúdo para interpretar qual seria significado da nota do bispo de Caruaru, dom José Ruy Gonçalves, pedindo votos contra o “comunismo” no cenário de tensão interna da Igreja Católica e na disputa de espaço com os evangélicos.

A entrevista

Há motivos para que um bispo use a Doutrina Social da Igreja como base para declarar “a aversão da igreja ao comunismo” e pedir voto contra a esquerda, como fez o bispo de Caruaru?

Os bispos são, de certa forma, reis em suas dioceses. Não precisam estar de acordo com o papa, exceto em questões fundamentais de fé e moral, e muito menos com a CNBB, a conferência episcopal. E nesse sentido a Igreja Católica é uma instituição democrática, apesar de sua estrutura formalmente autoritária. Qualquer bispo, padre ou religioso tem o direito de ter e manifestar suas opiniões políticas e ideológicas. Inclusive partidárias. O que discordo é pretender impor esta opinião para o conjunto dos católicos e, o que é pior, condenar as demais como se fossem heréticas… Discordo também de se usar o púlpito para pedir votos para este ou aquele candidato. Nosso papel deve ser pedagógico, ou seja, propagar os valores do Evangelho e deixar que cada fiel tire as suas conclusões. Mas, pessoalmente, estou convencido de que o Evangelho nos traz uma nova proposta civilizatória que não condiz com o capitalismo e nos leva, sim, ao socialismo. Todos nós cristãos somos discípulos de um prisioneiro político: Jesus de Nazaré. Ele foi assassinado na cruz por dois poderes políticos, o romano e o judaico, por anunciar, dentro do reino de César, um outro reino possível, o de Deus, que se baseia em dois pilares – nas relações pessoais, o amor; nas sociais, a partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. Vide meus livros Um homem chamado Jesus (Rocco), Parábolas de Jesus – ética e valores universais (Vozes) e O marxismo ainda é útil? (Cortez)

É correto dizer que as palavras do bispo de Caruaru parecem aproximar a Igreja Católica mais dos evangélicos eletrônicos e fundamentalistas do que da prática do papa Francisco?

Toda palavra que defende a primazia do capital sobre os direitos coletivos é contrária ao Evangelho e faz eco aos fundamentalistas das Igrejas eletrônicas. O compromisso do cristão deve ser o mesmo de Jesus – lutar para “que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10,10). Ou seja, defender os direitos dos oprimidos e excluídos.

O que leva um bispo, como o de Caruaru, a não perceber que a política de morte de Bolsonaro é tão distante do amor à vida pregado pela fé cristã?

Diário de Quarentena

A ideologia, esse conjunto de ideias que temos por trás dos olhos e, no entanto, nos servem de óculos para encarar a realidade. E assim como não vemos os óculos que usamos e, no entanto, eles nos ajudam a enxergar, também a maioria das pessoas não se dá conta da ideologia que traz na cabeça. E como dizia o velho Marx, a ideologia que predomina em uma sociedade tende a ser a ideologia da classe que domina essa sociedade. Também grandes genocidas, como Mussolini e Hitler, foram apoiados por bispos e padres católicos.

Recentemente, 152 bispos publicaram uma carta-manifesto contra a política de morte de Bolsonaro. Em sentido oposto, os setores mais à direita dos bispos pretendem disputar com os evangélicos fundamentalistas o espaço político no campo conservador?

A carta-manifesto dos 152 bispos é um documento primoroso e merece ser divulgada ao máximo. Eis aí a voz profética da Igreja. Mas os bispos conservadores querem sim disputar espaço com os evangélicos fundamentalistas, mas estão longe de avançar. Enquanto o clericalismo, tão denunciado pelo papa Francisco, perdurar na Igreja Católica, ela perderá espaço para os evangélicos. Para formar um pastor católico (padre) são precisos oito anos de estudos, quatro de filosofia e quatro de teologia, e ainda a heroica virtude do celibato. Um pastor evangélico se forma em oito meses… e com a vantagem de não tirá-lo de seu meio. Se mora em uma favela, ali ele implanta sua comunidade de culto. Já o padre é sempre alguém que vem de fora da favela…

Qual o peso da parcela mais reacionária da Igreja Católica no episcopado brasileiro? Essa parcela desafia as mudanças que o papa Francisco tenta conduzir?

O episcopado católico era hegemonicamente progressista nas décadas de 1970-1990. No Brasil, lutou bravamente contra a ditadura militar. Porém, os 34 anos de pontificados conservadores (26 de João Paulo II e 8 de Bento XVI) desarticularam o movimento progressista e abriram espaço aos conservadores. Hoje, a CNBB é marcada por uma enorme diversidade. Predominam os moderados que, em momentos cruciais, tendem a somar com os progressistas, cujo contingente tem aumentado graças às mazelas necrófilas do governo BolsoNero.

Como os bispos e sacerdotes mais progressistas irão ou deveriam atuar nos processos eleitorais em 2020 e 2022?

Jamais apoiando este ou aquele candidato ou partido, mas se empenhando em promover a alfabetização política de nosso povo pela divulgação dos valores do Evangelho quanto à justiça, aos direitos dos pobres, à crítica à riqueza e ao poder tirânico etc. É o que trato em meu livro Um Deus muito humano (Companhia das Letras).

Quais os espaços políticos para os católicos progressistas e de esquerda, para além dos períodos eleitorais? Faço essa pergunta lembrando da afirmação de João Pedro Stédile de que a esquerda institucional se tornou mais interessada na eleição de deputados do que a realizar um trabalho permanente de organização popular.

Nunca deveria haver um partido cristão ou católico. Nossa fé não pode ser afunilada numa proposta partidária. E um partido não deve jamais ser confessionalizado. Deve ser laico e ter as portas abertas a todo tipo de pessoas, sejam elas crentes ou ateias, desde que sintonizadas com o programa do partido. Portanto, nos períodos eleitorais os católicos devem apoiar, não necessariamente candidatos católicos (Hitler se considerava católico!), e sim candidatos e candidatas identificados e comprometidos com a defesa dos direitos humanos, dos excluídos e marginalizados, e de uma sociedade de justiça e paz alternativa à sociedade capitalista.

Li entrevistas em que o senhor diz que não há razão para disputar espaço com os evangélicos fundamentalistas, mas sim voltar a fazer trabalho de base. O que seria esse trabalho de base nesse contexto de luta contra o autoritarismo?

Fora do trabalho de base a esquerda não tem salvação. Temos de retornar às favelas, às periferias, ao campo, aos movimentos de negros, indígenas, mulheres, LGBTodos e Todas etc. Como fizemos nas décadas de 1970-1990, adotando a pedagogia de Paulo Freire. Uma esquerda descolada da base popular está condenada ao fracasso. E não devemos ficar reféns dos períodos eleitorais. Temos que oferecer um projeto de Brasil ao nosso povo.

O cristianismo está preparado para lidar com o protagonismo da mulher e as causas feministas? O mesmo vale para a luta antirracista.

O cristianismo, como instituição, ainda é muito machista e patriarcal. Na Igreja Católica, enquanto as mulheres não puderem ser sacerdotes, bispos, papa, isso haverá de perdurar. Já o racismo não é tão acentuado entre os católicos, mas existe como atitude predominante do brasileiro, um racismo disfarçado e favorecido pelo fato de os negros, no Brasil, serem duplamente discriminados – por serem negros e por serem pobres.

Inácio França

Jornalista e escritor. Foi repórter do extinto Diário Popular (SP) e da sucursal paulista de O Globo. No Diário de Pernambuco recebeu, entre outros, os prêmios Cristina Tavares de Jornalismo e Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos. Assinou reportagens como free-lancer nas revistas Época, Carta Capital, Globo Rural e no jornal Lance. Longe das redações, foi secretário de Comunicação de Olinda, além de oficial-assistente e consultor do Unicef. Recebeu também o título de jornalista Amigo da Criança (Unicef/Fundação Abrinq). Publicou seis livros (crônicas de futebol, registros de memória e história oral e a novela ‘Terezas’)