Bolsonaro e o golpe

Muitos esperavam que Bolsonaro desse um golpe de Estado em 7 de setembro: mobilizaria multidões, fecharia o Congresso e o STF e realizaria o seu sonho, governar como ditador. Para tanto, os caminhoneiros exerceriam papel preponderante, como ocorreu no Chile em 1973 para emplacar a ditadura de Pinochet. Eles bloqueariam as estradas, paralisariam a economia brasileira, e invadiriam sedes de instituições republicanas.

O tiro saiu pela culatra. Com exceção de São Paulo, as manifestações tiveram pouca adesão (a maioria, familiares de policiais civis e militares), o bloqueio das rodovias durou poucas horas e o Congresso e o STF não foram invadidos.

No entanto, ao discursar na Avenida Paulista Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade ao ofender, diretamente, dois ministros da suprema corte, Alexandre de Moraes, (de quem disse não cumprir ordens), e Luiz Roberto Barroso, presidente do TSE.

O pavio do suposto golpe não pegou fogo, mas provocou muita fumaça. No dia seguinte ao feriado nacional, o sistema financeiro viu desabar todos os seus índices, o que obrigou os donos do Mercado a convocarem o ex-presidente Michel Temer para entrar em campo e convencer Bolsonaro a assinar uma carta de retração, de modo a evitar o impeachment acionado pelo Judiciário e acalmar o mundo das finanças. Muitos apoiadores do presidente agora o criticam pelo recuo, considerado traição.

Golpe houve. Mas não no Dia da Independência. Ocorreu em 2016 e foi perpetrado, por traição, pelo vice-presidente da República, Michel Temer, que logrou induzir o Congresso a derrubar a presidente Dilma Rousseff. Desde então, houve desdobramentos, e o mais significativo deles foi a eleição de Bolsonaro a presidente da República em 2018. A partir da posse, em janeiro de 2019, teve início o desmonte do Estado brasileiro, com sucessivas privatizações do patrimônio público e a progressiva militarização dos órgãos de governo. Acrescem-se a isso o negativismo que induziu o governo a considerar a pandemia de Covid-19 mera “gripezinha” e se ver obrigado a nomear quatro diferentes ministros da Saúde, além de se enredar na corrupção, apurada pela CPI do Senado, que envolve a compra de vacinas e insumos.

Agora, em meados de setembro, o cenário é nada favorável à reeleição de Bolsonaro no próximo ano. Seu apoio se reduz, no momento, a 23%; a economia fracassa; a inflação soma-se ao acelerado aumento dos preços de combustíveis e alimentos; a crise hídrica se agrava; o desemprego se expande; o prestígio internacional desaba; e a Justiça aperta o cerco em torno dos filhos do presidente, acusados de graves delitos.

Há quem opine que, ainda assim, diante da impossibilidade de ser reeleito, Bolsonaro haverá de dar um “golpe no golpe”, à semelhança do que o AI-5 representou durante a ditadura, e assumir a sua índole ditatorial. Não partilho dessa opinião, por considerar que, para tanto, ele precisaria contar com fatores que, ora lhe faltam: apoio de potências internacionais; confiança do mercado financeiro; ampla sustentação popular; aprovação da grande mídia; e, sobretudo, respaldo das Forças Armadas.

Bolsonaro, comprovadamente ligado a milicianos, tem hoje o apoio de nichos expressivos das polícias civil e militar. Mas não das Forças Armadas, ainda que alguns comandantes o apoiem publicamente. As armas da República o toleram sem, no entanto, estarem dispostas a uma nova versão do golpe impetrado por elas em 1964 e que levou o Brasil a 21 anos de ditadura. Ainda mais quando já não há uma Casa Branca disposta a patrocinar a quartelada.

Para amplos setores da oposição, importa que Bolsonaro sangre até o último dia de seu governo. Assim, o contrapondo com Lula, cujos índices sobem a cada nova pesquisa eleitoral, fica polarizado e impede o surgimento de uma candidatura forte como terceira alternativa. Se Bolsonaro fosse derrubado pelo impeachment e seu vice, o general Mourão, assumisse, isso sim poderia diluir a atual polarização e favorecer o aparecimento da terceira via, uma enganosa candidatura de direita travestida de moderada e que, assim, poderia alavancar uma alternativa entre o que a grande mídia chama de polos extremos, o direitismo de Bolsonaro e o esquerdismo de Lula.

Ainda bem que o Brasil tem, agora, um Luiz no fim do túnel… Mas seria um equívoco a oposição restringir a campanha à figura carismática do ex-presidente da República. É preciso formular, o quanto antes, um novo projeto de Brasil, capaz de sinalizar um futuro imediato no qual haja redução das desigualdades sociais, amplas ofertas de empregos e combate à devastação socioambiental.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.

Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento

Posso afirmar, sem receio de exagerar, que Paulo Freire é raiz da história do poder popular brasileiro nos 50 anos entre 1966 e 2016. Esse poder surgiu, como árvore frondosa, da esquerda brasileira atuante na segunda metade do século XX: grupos que lutaram contra a ditadura militar (1964-1985); as Comunidades Eclesiais de Base das Igrejas cristãs; a abrangente rede de movimentos populares e sociais despontados nos anos 70; o sindicalismo combativo; e, na década de 1980, a fundação da CUT (Central Única dos Trabalhadores); da ANAMPOS (Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais) e, em seguida, da CMP (Central de Movimentos Populares); do PT (Partidos dos Trabalhadores); e do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); e de tantos outros movimentos, ONGs e entidades.

Se eu tivesse que responder à sugestão: “Aponte uma pessoa causa de tudo isso.” Eu diria, sem nenhuma dúvida: Paulo Freire. Sem a metodologia de educação popular de Paulo Freire, não haveria esses movimentos, porque ele nos ensinou algo de muito importante: ver a história pela ótica dos oprimidos e torná-los protagonistas das mudanças na sociedade.

Os excluídos como sujeitos políticos

Ao sair da prisão política, em fins de 1973, tive a impressão de que toda luta aqui fora havia acabado por força da repressão da ditadura militar, até porque todos nós, imbuídos da pretensão de sermos os únicos entendidos em luta capaz de resgatar a democracia, estávamos na cadeia, mortos ou no exílio. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar uma imensa rede de movimentos populares disseminados por todo o Brasil.

Quando o PT foi fundado, em 1980, vi companheiros de esquerda reagirem: “Operários? Não. É muita pretensão operários quererem ser a vanguarda do proletariado! Somos nós, intelectuais teóricos, marxistas, que temos capacidade para dirigir a classe trabalhadora”. No entanto, no Brasil os oprimidos começavam a se tornar não só sujeitos históricos, mas também lideranças políticas, graças ao método Paulo Freire.

Uma vez, no México, companheiros de esquerda me perguntaram:

— Como fazer aqui algo parecido ao processo de vocês lá no Brasil? Porque vocês têm um setor de esquerda na Igreja, um sindicalismo combativo, o PT… Como se obtém essa força política popular?

— Comecem fazendo educação popular – respondi – e daqui a trinta anos…

Eles me interromperam:

— Trinta anos é muito! Queremos uma sugestão para três anos.

— Para três anos não sei como fazer – observei -, mas para trinta anos sei o caminho.

Em resumo, todo o processo de acumulação de forças políticas populares, que resultou na eleição de Lula a presidente do Brasil, em 2002, e manteve o PT no governo federal por treze anos, não caiu do céu. Tudo foi construído com muita tenacidade a partir da organização e mobilização de bases populares pela aplicação do método Paulo Freire.

O método Paulo Freire

Conheci o método Paulo Freire em 1963. Eu morava no Rio de Janeiro, integrava a direção nacional da Ação Católica. Ao surgirem os primeiros grupos de trabalho do método Paulo Freire, engajei-me em uma equipe que, aos sábados, subia para Petrópolis, distante 70km do Rio, para alfabetizar operários da Fábrica Nacional de Motores. Ali descobri que ninguém ensina nada a ninguém, uns ajudam os outros a aprenderem.

O que fizemos com os trabalhadores daquela fábrica de caminhões? Fotografamos as instalações, reunimos os operários no salão de uma igreja, projetamos diapositivos e fizemos uma pergunta absolutamente simples:

— Nesta foto, o que vocês não fizeram?

— Bem, não fizemos a árvore, a mata, a estrada, a água…

— Isso que vocês não fizeram é natureza – dissemos.

— E o que o trabalho humano fez? – indagamos.

— O trabalho humano fez o tijolo, a fábrica, a ponte, a cerca…

— Isso é cultura – dissemos. — E como essas coisas foram feitas?

Eles debatiam e respondiam:

— Foram feitas na medida em que os seres humanos transformaram a natureza em cultura.

Em seguida, aparecia a foto do pátio da Fábrica Nacional de Motores ocupado por muitos caminhões e as bicicletas dos trabalhadores. Simplesmente perguntávamos:

— Nesta foto, o que vocês fizeram?

— Os caminhões.

— E o que vocês possuem?

— As bicicletas.

— Vocês não estariam equivocados?

— Não, nós fabricamos os caminhões…

— E por que não vão para casa de caminhão? Por que vão de bicicleta?

— Porque o caminhão custa caro, e não pertence a nós.

— Quanto custa um caminhão?

— Cerca de 40 mil dólares.

— Quanto vocês ganham por mês?

— Bem, ganhamos em média 200 dólares.

— Quanto tempo cada um de vocês precisa trabalhar, sem comer, sem beber, sem pagar aluguel, economizando todo o salário para, um dia, ser dono do caminhão que você faz?

Aí eles começavam a calcular e tomavam consciência da essência da relação capital x trabalho, o que é mais-valia, exploração etc.

As noções mais elementares do marxismo, enquanto crítica do capitalismo, vinham pelo método Paulo Freire. Com a diferença de que não estávamos dando aula, não fazíamos o que Paulo Freire chamava de ‘educação bancária’, ou seja, enfiar noções de política na cabeça do trabalhador. O método era indutivo. Como dizia Paulo, nós, professores, não ensinávamos, mas ajudávamos os alunos a aprenderem.

Culturas distintas e complementares

Quando cheguei a São Bernardo do Campo (SP), em 1980, havia militantes de esquerda que distribuíam jornais entre as famílias dos trabalhadores. Certo dia, dona Marta me indagou:

— O que é “contradição de crasse”?

— Dona Marta, esqueça isso.

— Não sou de muita leitura – justificou-se – porque minha vista é ruim e a letra, pequena.

— Esqueça isso – eu disse. — A esquerda escreve esses textos para ela mesma ler e ficar feliz, achando que está fazendo revolução.

Paulo Freire nos ensinou, não só a falar em linguagem popular, plástica, não academicamente conceitual, mas também a aprender com o povo. Ensinou o povo a resgatar sua autoestima.

Ao sair da prisão, morei cinco anos em uma favela no Espírito Santo. Lá trabalhei com educação popular no método Paulo Freire. Ao retornar a São Paulo, no fim dos anos 1970, Paulo Freire me propôs dar um balanço da nossa experiência em educação e, graças à mediação do jornalista Ricardo Kotscho, produzimos o livro chamado “Essa escola chamada vida” (Ática). É o seu relato como educador e criador do método, e da minha experiência como educador de base.

No livro conto que na favela em que eu morava havia um grupo de mulheres grávidas do primeiro filho, assessoradas por médicos da Secretaria Municipal da Saúde. Perguntei aos médicos por que trabalhar apenas com mulheres grávidas do primeiro filho.

— Não queremos mulheres que já tenham vícios maternais. – disseram – Queremos ensinar tudo.

Pois bem, passados uns meses, bateram na porta do meu barraco.

— Betto, queremos sua ajuda.

— Minha ajuda?

— Há um curto-circuito entre nós e as mulheres. Elas não entendem o que falamos. Você, que tem experiência com esse povo, podia nos assessorar.

Fui assistir ao trabalho deles. Ao entrar no Centro de Saúde do morro, fiquei assustado. Ali estavam mulheres muito pobres, e o Centro havia sido todo enfeitado com cartazes de bebês Johnson, loirinhos de olhos azuis, propaganda de Nestlé etc. Diante daquele visual, reagi:

— Está tudo errado. Quando as mulheres entram aqui e olham esses bebês, percebem que isso é outro mundo, não tem nada a ver com os bebês do morro.

Assisti ao trabalho dos médicos. Percebi que falavam em FM e as mulheres estavam sintonizadas em AM. A comunicação realmente não funcionava. Numa sessão, o doutor Raul explicou, em linguagem científica, a importância do aleitamento materno e, portanto, das proteínas, para formação do cérebro humano. Quando ele terminou a exposição, as mulheres o fitaram como eu ao abrir um texto em mandarim ou árabe: não entendo nada.

— Dona Maria, a senhora entendeu o que doutor Raul falou? – perguntei.

— Não, não entendi, só entendi que ele falou que o leite da gente é bom pra cabeça das crianças.

— E por que a senhora não entendeu?

— Porque não tenho estudo. Frequentei pouco a escola, nasci pobre na roça. Eu tinha que trabalhar na enxada e ajudar no sustento da família.

— E por que o doutor Raul soube explicar tudo isso?

— Porque ele é doutor, é estudado. Ele sabe e eu não sei.

— Doutor Raul, o senhor sabe cozinhar? – indaguei.

— Nem café sei fazer.

— Dona Maria, a senhora sabe cozinhar?

— Sei.

— Sabe fazer frango ao molho pardo (prato que, no Espirito Santo, e também em algumas áreas do Nordeste, é chamado de galinha de cabidela)?

— Sei.

— Por favor, fica de pé – pedi – e conta pra gente como se faz um frango ao molho pardo.

Dona Maria deu uma aula de culinária: como se mata o frango, de que lado se tiram as penas, como preparar a carne e fazer o molho etc.

Quando ela se sentou, falei:

— Doutor Raul, o senhor sabe fazer um prato desses?

— De jeito nenhum, até gosto, mas não sei cozinhar.

— Dona Maria – concluí – a senhora e o doutor Raul, os dois perdidos em uma mata fechada, famintos e, de repente, aparece uma galinha. Ele, com toda cultura, morreria de fome, a senhora não.

A mulher abriu um sorriso de orelha a orelha. Ela descobriu, naquele momento, um princípio fundamental de Paulo Freire: não existe ninguém mais culto do que o outro, existem culturas distintas, socialmente complementares. Se pusermos na balança toda minha filosofia e teologia, e a culinária da cozinheira do convento em que vivo, ela pode passar sem meus conhecimentos, mas eu não posso passar sem a cultura dela. Eis a diferença. A cultura de uma cozinheira é imprescindível para todos nós.

Paulo Freire e desafios de futuro

Diante da emergência de tantos governos autoritários e da profusão de mensagens antidemocráticas, racistas, homofóbicas, machistas e negacionistas nas redes digitais, me parece de suma importância revisitar Paulo Freire nesta data do centenário de seu nascimento.

O refluxo das forças progressistas na América Latina nos últimos anos, e o despontar de figuras neofascistas como Bolsonaro no Brasil, nos obrigam a reconhecer que há décadas abandonamos o trabalho de base de organização e mobilização populares. Esse vazio junto às populações da periferia, das favelas, das zonas rurais pobres, vem sendo ocupado pelo fundamentalismo religioso, pelo narcotráfico e milicianos.

Em suas obras, Paulo Freire nos ensina que não há mobilização sem prévia conscientização. É preciso que as pessoas tenham um “varal” onde pendurar os conceitos políticos e as chaves de análise da realidade. O “varal” é a percepção do tempo como história.

Há civilizações, tribos, grupos, que não têm percepção do tempo como história. Os gregos antigos, por exemplo, acreditavam que o tempo é cíclico. Hoje, o tempo cíclico retorna por meio do esoterismo, do negacionismo, do fatalismo e do fundamentalismo religioso. Mas retorna, sobretudo, pelo neoliberalismo.

A essência do neoliberalismo é a desistorização do tempo. Quando Fukuyama declarou que “a história acabou”, ele expressou isto que o neoliberalismo quer nos incutir: Chegamos à plenitude dos tempos! O modo neoliberal de produção capitalista, baseado na supremacia do mercado, é definitivo! Poucos são os escolhidos e, muitos, os excluídos. E não adianta mais querer lutar por uma sociedade alternativa, um “outro mundo possível”!

De fato, hoje em dia é difícil falar em sociedade alternativa. Socialismo então, nem pensar! Criou-se um pudor, um bloqueio intelectual e emocional. “O socialismo acabou, desabou, ruiu, foi enterrado!”, alardeiam as pitonisas. As alternativas que se colocam são, em geral, intrassistêmicas.

A noção de que o tempo é história vem dos persas, repassada aos hebreus e acentuada pela tradição judaica. Três grandes paradigmas de nossa cultura são de origem judaica – Jesus, Marx e Freud – e, portanto, trabalharam com a categoria de tempo como história.

Não se consegue estudar o marxismo sem aprofundar os modos de produção anteriores, para entender como se chegou ao modo de produção capitalista. E entender, em seguida, como suas contradições poderiam levar aos modos de produção socialista e comunista. A análise marxista supõe, portanto, o resgate do tempo como história.

Se alguém faz análise ou terapia, o psicanalista logo pergunta ao paciente sobre o seu passado, sua infância, sua criação. Se o paciente puder falar sobre sua vida intrauterina, tanto melhor… Toda a psicologia de Freud é um resgate de nossa temporalidade como indivíduos.

A perspectiva de Jesus era histórica. O Deus de Jesus se apresenta com currículo vitae: não é um deus qualquer – é Deus de Abraão, Isaac e Jacó – ou seja, um Deus que faz história. A categoria principal da pregação de Jesus é histórica: o Reino de Deus. Embora colocado lá em cima pelo discurso eclesiástico, teologicamente não se situa lá em cima. O Reino é algo lá na frente, é a culminância do processo histórico.

É curioso que na Bíblia a história, como fator de identificação do tempo, é tão forte que no relato do Gênesis a Criação do mundo já aparece marcada por essa historicidade do tempo antes do aparecimento do ser humano.

Para muitos, história é aquilo que homens e mulheres fazem. Então, não haveria história antes do surgimento de homens e mulheres, tanto que se fala em pré-história. Para a Bíblia, já há história antes do aparecimento do ser humano. Tanto que os gregos consideravam o deus dos hebreus uma entidade muito incompetente. Um verdadeiro deus cria como o Nescafé: instantâneo, e não a prazo, como mostra o relato bíblico. Ora, no relato da Criação, em sete dias, já há historicidade. E Paulo Freire, homem de formação cristã e militante adepto dos fundamentos do marxismo, soube perceber a importância da leitura do mundo como condição da leitura do texto.

Ao neoliberalismo não convém essa perspectiva. Por isso, não se pode fazer educação popular sem ter o “varal” para dependurar as roupas… Esse “varal” – o tempo enquanto história – é fundamental para que se possa visualizar o processo social e político. Isso acontece também na dimensão micro de nossas vidas. Por que, hoje, muitos têm dificuldade de ter projetos de vida? Por que jovens chegam ao 20 anos sem a menor ideia do que pretendem ser ou fazer da vida? Para muitos deles, tudo é aqui e agora.

Portanto, se queremos resgatar o legado de Paulo Freire, o caminho é voltar ao trabalho de base com as classes populares, adotando o seu método em uma perspectiva histórica, aberta às utopias libertárias e ao horizonte democrático. Fora do povo não há salvação. E se acreditamos que a democracia deve ser, de fato, o governo do povo para o povo e com o povo, não resta alternativa senão adotar o processo educativo paulofreiriano que situa os oprimidos como protagonistas políticos e históricos.

Quando Paulo Freire retornou de 15 anos de exílio, em agosto de 1979, nos encontramos em São Paulo. Éramos vizinhos e, com frequência, eu o visitava. Estreitamos muito as nossas relações pessoais.

Assim, termino esta homenagem com este texto que escrevi no dia 2 de maio de 1997, data da transvivenciação de Paulo Freire:

“Ivo viu a uva”, ensinavam os manuais de alfabetização. Mas o professor Paulo Freire, com o seu método de alfabetizar conscientizando, fez adultos e crianças, no Brasil e na Guiné-Bissau, na Índia, na Nicarágua e em tantos outros lugares, descobrirem que Ivo não viu apenas com os olhos. Viu também com a mente e se perguntou se uva é natureza ou cultura.

Ivo viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É Criação, é natureza. Paulo Freire ensinou a Ivo que semear uva é ação humana na e sobre a natureza. E a mão, multiferramenta, desperta as potencialidades do fruto. Assim como o próprio ser humano foi semeado pela natureza em anos e anos de evolução do Universo.

Colher a uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza a natureza e, ao realizá-lo, o homem e a mulher se humanizam. Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social. Graças ao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionária com trabalhadores do Sesi de Pernambuco, Ivo viu também que a uva é colhida por boias-frias, que ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham muito mais.

Ivo aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma pessoa ignorante. Antes de aprender as letras, Ivo sabia erguer uma casa, tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não é capaz de construir como Ivo. Paulo Freire ensinou a Ivo que não existe ninguém mais culto do que o outro, existem culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social.

Ivo viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhe os cachos, a parreira, a plantação inteira. Ensinou a Ivo que a leitura de um texto é tanto melhor compreendida quanto mais se insere o texto no contexto do autor e do leitor. É dessa relação dialógica entre texto e contexto que Ivo extrai o pretexto para agir. No início e no fim do aprendizado é a práxis de Ivo que importa. Práxis-teoria-práxis, num processo indutivo que torna o educando sujeito histórico.

Ivo viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê a uva. O que Ivo vê é diferente do que vê a ave. Assim, Paulo Freire ensinou a Ivo um princípio fundamental de epistemologia: a cabeça pensa onde os pés pisam. O mundo desigual pode ser lido pela ótica do opressor ou pela ótica do oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de Ptolomeu, ao observar o sistema solar com os pés na Terra, e a de Copérnico, ao imaginar-se com os pés no Sol.

Agora Ivo vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do fruto festa no cálice de vinho, mas já não vê Paulo Freire, que mergulhou no Amor na manhã de 2 de maio de 1997. Deixa-nos uma obra inestimável e um testemunho admirável de competência e coerência.

Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o título de Doutor Honoris Causa, da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto amou, pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para a Palestina, não me foi possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar fui rezar com Nita, sua mulher, e os filhos, em torno de seu semblante tranquilo: Paulo via Deus.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco) e de “Essa escola chamada vida” (Ática), em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho.

Frei Betto: “Freire llevó a los oprimidos a conquistar su autoestima política y su protagonismo”

El fraile dominico Frei Betto sostiene que no es posible aplicar enteramente la pedagogía freireana en la escuela formal

Publicado em 18/09/2021 no “LACAPITAL”

La entrevista vía Zoom con el fraile dominico nacido en Minas Gerais y autor entre otros de Fidel y la religión, El día de Angelo P. y Por una educación crítica y participativa, se da en el marco del centenario del nacimiento de Paulo Freire, a quien recuerda como un hombre carismático, humilde, con los pies en la tierra y un cristiano revolucionario “interesado en fortalecer la conciencia política y ciudadana del pueblo”.

Teólogo, educador popular ligado a las comunidades eclesiales de base y discípulo de Freire —sus textos se encuentran en la librería virtual freibetto.org/livrariapara Betto la pedagogía freireana no se puede aplicar integralmente en la enseñanza formal, porque sería como “meter un elefante en una caja de fósforos”. Y afirma que todo educador debe preguntarse por el objetivo final de su tarea, si es “mera producción de mano de obra para la reproducción del sistema desigual” o está formando personas para construir “otro mundo posible”.

—¿Cómo conoció a Freire?

—Conocí la metodología pedagógica de Freire antes de conocerlo a él personalmente. Vivía en Río de Janeiro a inicios de los años 60 y la metodología había llegado ahí a través del Movimiento de Educación de Base (MEB) al que estaba vinculado. Pude adoptar la metodología en un trabajo con obreros de una fábrica de camiones cerca de Río de Janeiro. Después que salió de la cárcel, donde Paulo Freire estuvo a raíz del golpe militar, fue a refugiarse a la embajada de Bolivia en Río de Janeiro. En septiembre del 64 fui a visitarlo en la embajada y nos conocimos personalmente. Después nos encontramos cuando regresó del exilio a Brasil en 1980. Pasaron muchos años, mantuvimos algún contacto por correspondencia, a través de amigos, pero yo seguía adoptando su metodología, sobre todo en la segunda mitad de los años 70, cuando fui a vivir en una favela en Vitória, en la provincia de Espírito Santo, y también en mi trabajo con las comunidades eclesiales de base en todo Brasil. Fui un discípulo muy fiel de Paulo Freire. Y cuando él regresó del exilio vino a vivir en San Pablo, cerca del convento en el que yo vivo. Con mucha frecuencia me invitaba a almorzar en su casa y ahí teníamos muy buenas charlas. De esas charlas surgió el libro Esa escuela llamada vida.

—Contó que conoció el método Freire en esa fábrica de camiones ¿Cómo lo describiría?

—Implicaba saber leer el mundo antes de aprender a leer textos. Esto vino de la metodología de la Acción Católica Brasileña, un movimiento cristiano progresista que tenía el método de ver, jugar y actuar. Paulo Freire era un cristiano que supo adaptar la metodología marxista sin ningún problema para su fe cristiana. Adoptó ese método inductivo donde cuanto más se conoce el contexto mejor se comprende el texto. Un ejemplo del trabajo que hacíamos en la fábrica: proyectábamos diapositivas con fotos de la cercanía y de la propia fábrica, y a los obreros les hacíamos preguntas:

—En esta foto, ¿qué cosas el ser humano no ha creado?

—La loma, el cielo, los árboles, los pájaros.

—¿Y qué cosas ha creado el ser humano con su trabajo?

—Los camiones, el edificio, la carretera, las bicicletas.

—¿Y de donde viene la materia prima para producir ladrillos, hierro para los camiones o madera para el cercado?

—De la naturaleza. —Ahí venía el concepto de cultura, la acción humana sobre la naturaleza.

—¿Qué vehículos hacen en esta foto?

—Camiones.

—¿Tienen camiones?

—No, bicicletas. Los camiones son muy caros, cuestan como 40 mil dólares. Para tener un camión hay que trabajar décadas.

Ahí venía la concepción de la plusvalía, la relación de clase, las contradicciones, la mercancía, la explotación del trabajo obrero. Desde ahí era muy fácil sacar palabras generadoras como explotación, opresión, capital, naturaleza, cultura, para empezar el pasaje de alfabetización.

—¿Qué eran las palabras generadoras?

—Son las palabras centrales del mundo cultural del obrero, de un campesino o un pescador. Palabras que a partir de ahí se va generando un vocabulario. Por ejemplo, de la palabra vivienda se puedes sacar vida, vitalidad y muchas expresiones de la palabra casa. Esas son las palabras generadoras, aquellas que son más usuales en el vocabulario de una persona que está siendo alfabetizada.

—¿Qué significa aprender con el pueblo?

—Ese es un concepto muy importante en la metodología de Paulo Freire. Significa que no hay nadie más culto que otro, hay culturas distintas y socialmente complementarias. Es una falsedad pensar que una persona que tiene posdoctorado en la universidad es por eso más culta que otra que nunca ha ido a la escuela. Es un falso concepto la idea de que la cultura está asociada a escolaridad. Un ejemplo: un astrofísico con todos los títulos universitarios y científicos, tiene una cocinera que se llama María, que nunca ha ido a la escuela pero que tiene una cultura culinaria que el astrofísico no posee. Si hacemos un balance de quién depende más de la cultura de otro, seguramente María puede pasar sin la cultura astrofísica de su patrón, pero él jamás puede pasar sin la comida de María.

—¿Qué significa Freire en la historia de la educación popular, qué legado deja?

—Puedo decir que sin Freire no habría Lula, Rafael Correa o Evo Morales. Todos esos líderes populares que despuntaron en América Latina son fruto de la pedagogía de Freire, porque llevó a los oprimidos a conquistar su autoestima política y su protagonismo. Hasta Freire los campesinos y obreros progresistas eran conducidos por una vanguardia de intelectuales de izquierda. La vanguardia del proletariado nunca era formada por los propios proletarios. A partir de Freire son los mismos oprimidos los que asumen la dirección del proceso emancipatorio. Este es el sentido más profundo de su pedagogía.

—En el El día de Angelo P usted dice: “Detesto las aulas, las hamburguesas y la gente que se jacta de engañar a los demás”. ¿Sigue pensando lo mismo de las aulas?

—Si, por eso fui a trabajar con la educación popular. Porque la pedagogía de Freire no se puede poner en la enseñanza formal. Se pude poner uno u otro aspecto, pequeños ensayos si es posible. Pero poner a la pedagogía de Freire en la escuela formal es lo mismo que meter un elefante en una caja de fósforos. Es imposible, porque en la educación popular dependemos del ritmo de los educandos y no del calendario del año lectivo. Siempre me rehusé a ser profesor en escuela formales. He sido muy poco tiempo en algunas escuelas, para cubrir algún vacío que había, pero a mí me gusta trabajar con la gente sencilla de las favelas y de los movimientos populares. Ahí no tenemos la camisa de fuerza de todas las formalidades de la enseñanza burguesa, porque toda nuestra estructura de enseñanza es muy elitista. Lo que Paulo Freire denunció como educación bancaria, el meter en la cabeza de la gente nuestros saberes y conocimientos.

—De todas formas usted solía visitar escuelas. Cuando lo hacía, ¿le gustaba indagar en algo en particular?

—Nunca tuve la pretensión de llevar a las escuelas formales la metodología de Paulo Freire. Tenía sí la pretensión de cuestionar sobre todo en dos aspectos: primero siempre preguntaba cuál era la merienda de los estudiantes, porque en general eran las menos indicadas para una buena salud. Con exceso de grasas, de azúcar. A muchos niños no les gusta la ensalada, entonces preguntaba por qué no usaban un pedacito de tierra para hacer un huerto, porque esos niños al hacer la cosecha van a superar los prejuicios que tienen. Y la otra pregunta que siempre hacía era ¿cómo es la educación sexual en la escuela? En general viene una profesora o profesor a decir que la educación sexual es así y asá. Y le digo: “Bueno, usted me perdonará, pero eso es educación de higiene corporal para evitar enfermedades sexualmente transmisibles, porque en ningún momento ha dicho dos palabras fundamentales: amor y afecto”. Si no es educación para el amor y el afecto está equivocada. Pero no tengo otra pretensión, estoy convencido que se pueden meter aspectos de la metodología freireana en la escuela formal, pero no se puede adoptar totalmente, porque la escuela formal es una compresión a esa metodología y no permite desarrollarla.

Poner la pedagogía de Freire en la escuela formal es lo mismo que meter un elefante en una caja de fósforos. Es imposible”

—¿Cómo era personalmente Paulo Freire?

—Era un hombre muy humilde, en el sentido etimológico de la palabra. De humus, de tener los pies en la tierra. Tenía conciencia de su valor como pedagogo, de su trabajo a nivel mundial, sobre todo en los años que estuvo fuera de Brasil. Cuando fue al Consejo Mundial de las Iglesias en Ginebra pudo viajar a todos los continentes, llevando su metodología a pueblos muy pobres. Era un hombre sin pretensiones de ser importante o de riqueza. Estaba sobre todo interesado en fortalecer la conciencia política y ciudadana de nuestro pueblo. Paulo Freire era un revolucionario en el sentido profundo de la palabra. Era un cristiano revolucionario, y su sueño era justamente ver un Brasil emancipado de las opresiones, con mucho menos desigualdad social, con la gente en condiciones de tener los derechos humanos fundamentales asegurados, como alimentación, salud, educación, cultura y trabajo. Era una persona muy sencilla, no creaba ninguna barrera para acercarse a él, pero era un hombre carismático, sin ninguna duda. Cada vez que iba a dar clase a la Universidad Católica de San Pablo tenían que pasar a un salón porque no estaban solamente sus alumnos sino que llegaban estudiantes de otros cursos interesados en sus charlas.

—¿Hay algún libro, anécdota o frase de Freire que lo acompañe más en estos tiempos?

—Muchas. Él decía mucho una palabra que no sé cómo traducir, que es boniteza, una expresión del nordeste de Brasil. O sea, una cosa muy bella, delicada. Decía que en la educación hay que imprimir boniteza. También decía con otras palabras que la cabeza piensa donde los pies pisan. O sea, usted no puede tener empatía con los oprimidos si vive todo el tiempo en el mundo de los opresores. Si no tiene vínculo con el mundo de los más pobres, de los empobrecidos. Paulo era una persona muy realista en ese sentido, de una epistemología que tenía que tener como punto de partida el mundo de los oprimidos. Eso era muy frecuente en toda su obra: Pedagogía de la autonomía, Pedagogía de la libertad y sobre todo Pedagogía del oprimido, que es su obra más clásica.

—En este tiempo que vive América Latina de avance de ideas reaccionarias y discursos racistas, donde algunos plantean que “la rebeldía” parece ser de derecha ¿qué puede aportar Freire?

—Creo que uno de los problemas de América Latina, sobre todo que han enfrentado los gobiernos progresistas de América del Sur en las últimas décadas, es que hemos formado muchos militantes de base, pero esa gente fue absorbida por estructuras de gobierno. O sea, en la medida que líderes como Chávez, Maduro, Morales, Correa, Lula o Dilma fueron ocupando espacios en gobiernos había que tener cuadros confiables, con sintonía ideológica con la propuesta de gobierno. Con eso dejamos espacios vacíos en los barrios populares, y ese vacío fue progresivamente ocupado —en el caso de Brasil— por tres vertientes: el fundamentalismo religioso, el narcotráfico y las milicias, las bandas paramilitares criminales con las cuales Bolsonaro tiene excelente relación. Nuestra principal tarea es volver al trabajo de base. No hay posibilidad de emancipación de América Latina y de los pueblos sin ese trabajo de base, en formación, concientización, organización y movilización. Son las cuatro palabritas que están en la obra de Freire para crear un nuevo proyecto de sociedad. Para dar consistencia a nuestra esperanza de un futuro mejor.—¿Qué le diría a quienes militan en esos movimientos de base, que le disputan al narcotráfico el futuro de muchos chicos y chicas?

—Sí, y sobre todo en situaciones en las que esos chicos y chicas no tienen escolaridad, acceso a la escuela y a empleos. Entonces esa gente se torna muy vulnerable a cualquier tipo de asociación criminal y va por ese lado, sobre todo con este fenómeno de las drogas. No creo en ninguna izquierda que no tenga en su proyecto un trabajo de educación popular.

—¿Qué mensaje le daría a los docentes que están dentro o fuera del sistema educativo?

—Si son educadores se tienen que preguntar ¿educar para qué? ¿Educar para el mercado capitalista, educar muchachos y muchachas para que se tornen mano de obra sofisticada, tecnológica y científicamente bien preparada pero sin ningún proyecto de sociedad en la cabeza? O sea, de mera reproducción de ese sistema de desigualdad, de explotación, de esta era que muchos llaman antopoceno pero yo llamo capitaloceno. Porque la hegemonía mundial está concentrada en los privilegios del capital y no de los derechos colectivos. Creo que cada profesor, maestro o maestra se tiene que preguntar qué objetivo final tengo en mi educación, si mera producción de mano de obra para la reproducción del propio sistema o estoy preparando gente para buscar otro mundo posible, una alternativa a esta sociedad que cada vez más agranda la desigualdad social, la devastación socioambiental y tantos otros problemas que el mundo enfrenta hoy. Agravados con esta pandemia terrible que seguramente tiene que ver con el desequilibrio ambiental, porque la cadena predatoria de la naturaleza se rompe con la injerencia humana y los animales acaban pasando a nosotros sus enfermedades.

—¿Qué utopías perseguir hoy?

—La utopía que me mueve es muy sencilla: creo que no hay futuro para la humanidad si no compartimos los bienes de la tierra y los frutos del trabajo humano. Es como una familia, donde las personas son muy distintas y hay distintos talentos e inteligencias. Pero ningún padre o madre concede a un hijo derechos que no concede a otro. Todos tienen iguales derechos y oportunidades. Este es mi proyecto de sociedad, muy sencillo. ¿Y en qué me he inspirado?. Por la práctica y la palabra de Jesús en los Evangelios. Jesús vino a proponer no propiamente una religión ni mucho menos una Iglesia, sino un proyecto político y civilizatorio que él llamaba reino de Dios. Que la iglesia puso arriba, pero en la cabeza de Jesús estaba delante. Por eso fue crudamente asesinado, porque hablar del reino de Dios en el reino del César, es lo mismo que hablar de democracia en la dictadura, o de socialismo en el capitalismo. Hoy estoy convencido que seguramente no voy a disfrutar de eso, pero hay que vivir para ser semilla de ese nuevo proyecto de sociedad. Que toda la gente tenga derecho no solamente de nacer con dignidad sino de vivir con dignidad. Es una cosa muy sencilla que sigo llamando socialismo. La gente dice que el socialismo no existe o que ha cometido muchos errores. Mira, la Iglesia tuvo la Inquisición y ahora tiene pedófilos pero yo no abandono la propuesta, porque en sí misma es muy buena y positiva. Siempre vamos a tener que hacer nuestras acciones dentro alguna institución, lo importante es luchar para cambiarlas. La utopía sigue siendo este horizonte que decía Eduardo Galeano, el horizonte que vemos en la ventana, que podemos ir caminando en su dirección pero jamás lo vamos a alcanzar. ¿Y para qué sirve el horizonte? Para hacernos caminar.