Por uma Conferência Nacional de Defesa

O Brasil precisa dar tratamento adequado à questão militar. A intentona golpista de 8 de janeiro deu lugar, no âmbito criminal, a uma série de investigações e prisões. Na esfera política, começa a caminhar uma CPMI em que, guardadas as discordâncias, parece existir um acordo: não chamar todos os militares envolvidos no episódio para depor e deixar a questão apenas para o Poder Judiciário. Assim, cuida-se do varejo e se esquiva de um problema cuja causa mora no atacado: para que (ou a quem) servem as Forças Armadas brasileiras?

Antes de buscar a resposta, é necessário ampliar o número de pessoas para quem é feita.

A soberania nacional passa pelo princípio da autodeterminação dos povos. Nesse caso, uma política de defesa nacional serve para diminuir os constrangimentos externos à tomada autônoma de decisões ou, em outras palavras, permitir aos povos e Estados da periferia dizerem não às demandas dos países mais poderosos. Entretanto, a soberania popular implica perceber a nação como comunidade formada de múltiplos pontos de vista, cada qual com um diferente olhar sobre o que deve ser defendido no Brasil e para o seu povo, o que (quem) nos ameaça. Os movimentos populares, por exemplo, pensam que o principal objeto de defesa do Brasil precisa ser uma vida digna para o seu povo.

A política de defesa brasileira e a questão militar vêm sendo tratadas como se o fatídico 8 de janeiro não tivesse ocorrido. É necessário alterar este cenário e convocar os diversos segmentos da sociedade a participar das definições políticas, rompendo com o tradicional elitismo político-acadêmico e com a autonomia militar que tutela a área.

As discussões das relações internacionais são elitistas, tanto a condução da política externa quanto a política de defesa. São comuns comentários como “o povo não sabe”, “não tem visão de longo prazo”, “não tem interesse”. Daí a esquerda alimentar dois tipos de reações: todo militar é suspeito, por isso é preciso acabar com as Forças Armadas. Ou o inverso: na ausência de força de sustentação social própria, seguir à procura de um seguro militar, buscar “um general para chamar de seu”.

Trazer os princípios da democracia e da participação popular para a gestão das relações internacionais do Estado implica subordinar a discussão sobre o que se defende, do que e de quem à apreciação pública. Supõe também subordinar “o braço forte e a mão amiga” a um projeto popular de país, criar conselhos, discutir coletivamente documentos orientadores de defesa nacional, de forma a traduzir para o cotidiano temas considerados técnicos. Quando salientamos que a tarefa atual dos movimentos populares é organizar a esperança enquanto verbo, como ensina Paulo Freire, o dever se estende às áreas que aparentam maior distância do nosso dia a dia, como a de defesa.

A tutela militar sobre a política brasileira não é um fenômeno do governo Bolsonaro, embora tenha se mostrado de maneira aguda naquele período, assim como durante a ditadura militar, ao longo de 21 anos. Existem propostas de curto, médio e longo prazos para alterar a situação, e algumas já fazem parte do debate público, como a necessidade de rever o artigo 142 da Constituição (que trata das atribuições das Forças Armadas); alterar a metodologia e o conteúdo curricular da educação dos militares; separar as polícias das Forças Armadas; e revogar privilégios que a caserna mantém quando comparada a outras categoriais civis, desde a ditadura. Mas sem força social nada disso se torna um projeto.

O presidente Lula inicia um governo de frente amplíssima, e é natural e positivo que queira diminuir a temperatura das relações com a caserna. O caminho, atualmente sinalizado, de oferecer recursos para investimentos em equipamentos, coincide com a opção política dos primeiros mandatos. Entretanto, destinar dinheiro aos militares vem se mostrando um poço sem fundo, talvez ainda maior que o do Congresso Nacional, insaciável na sua demanda por emendas.

Porém, a conjuntura apresenta uma oportunidade histórica, pois a tutela militar sobre a política brasileira é questionada: por setores populares, que avaliam negativamente a instituição em decorrência da superexposição ocorrida durante o governo Bolsonaro; pela imprensa, que todos os dias descobre um esqueleto no armário entre os muitos documentos protegidos por sigilo nos últimos anos; por algumas elites nacionais, que viveram a contragosto a divisão de espaços (e dividendos) políticos com parte da caserna no último período; internacionalmente, pois não há apoio para quarteladas militares neste momento por parte das grandes potências.

Diante dos desgastes na caserna, revisar os documentos de defesa nacional apenas como obrigação normativa é um equívoco. As novas Estratégia Nacional de Defesa e Política Nacional de Defesa precisam ser objetos de amplo debate, convidar diferentes setores da sociedade para se sentar à mesa naquela que seria a I Conferência Nacional de Defesa. Mais gente discutindo permite arejar o tema e melhorar a correlação de forças na condução do assunto, muito centrada nas figuras do Presidente e dos comandantes de cada Força. Além disso, oferece resposta a uma antiga reclamação da caserna, a de que ninguém externo às Forças Armadas se interessa pela corporação ou pela política de defesa.

É necessário entregar a responsabilidade de definir o que deve ser objeto de defesa e o que (quem) nos ameaça para quem é de direito – o povo brasileiro. A conferência não é um fim em si mesma, mas um processo através do qual a democracia participativa pode chegar a uma área cuja condução foi historicamente autoritária e antipopular. Será uma oportunidade de proporcionar educação política de segmentos diversos sobre o assunto.

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Poder da dramaturgia

Em homenagem a José Celso Martinez Corrêa

Como assistente de direção de José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, na primeira montagem da peça “O rei da vela”, de Oswald de Andrade, em 1967, e como crítico de teatro do jornal “Folha da Tarde”, aprendi que o teatro é um recurso privilegiado de formação de leitores. Ou melhor, de formação humana. Graças à representação no palco, permite ser “lido” inclusive por quem não é alfabetizado.

Os gregos da Antiguidade, como Ésquilo, Sófocles, Eurípides, descobriram que o espetáculo retrata a nossa natureza lúdica, os nossos instintos perversos, os nossos sentimentos contraditórios, enfim, essa multiplicidade de seres que nos povoam.

Se para muitos sou o escritor sisudo que parece saber mais do que realmente conhece, trancado no meu quarto esta manhã, ao escutar Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, dei asas ao sambista que me habita. Reside em mim uma multidão: o intelectual e o crente, o cartesiano e o insensato, o adulto e a criança.

No palco, o ator ou atriz reveste-se de um personagem ao qual dá vida, voz, movimento e emoção. O teatro é um ritual mágico, transfigurador do real, espelho que nos devolve a nós mesmos. Podemos ser Édipo e Creonte, e também Jocasta, Electra e Medeia.

Teatro vem do grego “theátron” – lugar onde se contempla. E contemplação não é sinônimo de observação. É experiência mistérica, endógena, em que me deixo invadir pelo objeto contemplado. O contemplativo é o místico apaixonadamente habitado pela divindade. No teatro, são os personagens que despertam seus homônimos escondidos em sua subjetividade. Neles contemplam-se o lado trágico e também o cômico. O que trazem de divino e de demoníaco.

Nossos arquétipos estão delineados nas grandes obras teatrais. Não foi em vão que Freud recorreu a elas para estruturar sua etiologia psíquica. No teatro importa o ser. Por isso, o palco é o lugar privilegiado do monólogo, reflexo desse nosso contínuo monólogo interior tão bem captado por James Joyce em sua monumental obra literária.

Como exemplo de diversidade cultural propiciada pela dramaturgia, atenho-me à Grécia do século V a.C., aos fundadores do teatro clássico: Sófocles, Ésquilo, Eurípides e Aristófanes. E a dois personagens: Édipo e Lisístrata.

De Ésquilo nos restaram, entre outras, “As suplicantes”, “Prometeu acorrentado”, “Os persas”. Foi ele quem inventou a tragédia. Arcaico e religioso, nos forneceu a primeira luz do que seja a democracia. Encenada por volta de 468 a.C., “As suplicantes” mostra a população de Argos – ou seja, a “demo” – concedendo asilo (“kratos”, o poder de decidir) às Danaides, que haviam assassinado seus maridos na noite de núpcias. É ali que, pela primeira vez, os dois termos aparecem unidos. Já no fim do século V a.C. o substantivo definia o regime ateniense.

Sófocles acreditava no poder dos deuses e na predestinação. Seu principal personagem é o destino. Destaca-se com o maior trágico da antiguidade grega por seu “Édipo rei”, mais tarde completado pela peça “Édipo em Colona”. Vamos encontrá-lo na psicanálise, mas não há literatura criada do nada. Os primórdios de Édipo se encontram no Canto IV da “Ilíada” e no IX da “Odisseia”, e na peça “Os sete contra Tebas”, de Ésquilo. Por força do destino traçado pelos deuses, ele mata o pai e se casa com a mãe. Mas sua geometria de palco é muito mais do que um mero triângulo conflitivo, hoje utilizado na telenovela para atrair audiência. Édipo abrange todos os campos da experiência humana: a relação do homem com o divino (o oráculo); o poder (a realeza) e a família. Ou seja, piedade, autonomia e afetividade.

Antígona é a mulher que prefere dar ouvidos aos deuses e fechá-los aos tiranos. Ela realça o protesto, a autonomia, a liberdade de consciência e expressão. É a pioneira do feminismo.

Eurípides é o autor de “Electra”, (Ésquilo e Sófocles também escreveram sobre a lenda de Electra, que vinga a morte do pai instigando seu irmão, Orestes, a matar a mãe e o amante). Dele temos “Medeia” (“Gota D’Água”, na versão de Chico Buarque), “As troianas” (libelo contra a guerra), “As bancantes”, entre outras peças.

Ao contrário de Sófocles, Eurípides introduz a dúvida, convida-nos à crítica diante dos deuses, das autoridades, das supostas verdades geradas pela imposição. Adepto do feminismo “avant la lettre”, realça as mulheres como seres fortes, dotados de coragem e ternura, ódio e paixão, ao contrário dos homens, débeis e covardes. Suas peças primam pelo retrato psicológico dos personagens e exaltam o amor e suas várias manifestações: apaixonado, conjugal, materno. Ifigênia renuncia à própria vida para favorecer a expedição à Tróia; Medeia vive intensamente suas paixões amorosas.

Aristófanes polemiza, introduz a sátira social, faz da arte uma arma de crítica política. Em “Os cavaleiros” desmoraliza os demagogos Cléon e Hipérbolo. Em “As rãs” mostra um concurso entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides, os três grandes trágicos. Satiriza Eurípides e exalta Ésquilo. Em “As nuvens” critica os metafísicos e os sofistas, sem poupar seu amigo Sócrates. Ridiculariza a justiça ateniense em “As vespas” e, em “Lisístrata”, a greve sexual das mulheres força atenienses e espartanos a fazerem um acordo de paz.

Os dramaturgos gregos parecem ter captado todas as nuances da alma humana. Deixaram-nos obras imortais e insuperáveis. Pena que já não prestamos atenção às suas criações artísticas e, cada vez mais, sofremos de fronemofobia, o medo de pensar.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

Agite antes de usar

Quais fatores favorecem a tendência mundial a governos autoritários? O que leva eleitores a escolherem candidatos de extrema-direita, ainda que ameacem a democracia?

Algo me parece evidente: quanto mais instabilidade econômica, quanto mais insegurança social, quanto mais sensação de fragilidade, mais o eleitorado tende a preferir candidatos tipo “Rambo”. Entre a ordem e a liberdade, optam pela primeira. Entre a segurança e a democracia, também. Basta conhecer a história da Alemanha na virada das décadas de 1920 e 1930 para constatar como a insegurança social – detalhe, numa nação muito culta – fez os ventos soprarem a favor da ascensão de Hitler. Vejam na Netflix o filme “Cabaré Eldorado”.

Em Israel, a nova política direitista do gabinete de Benjamin Netanyahu, que se empenha em reduzir o poder do Judiciário, se apoia na suposta ameaça palestina e ataques constantes aos acampamentos da Cisjordânia. Na França, as ondas de protestos à nova lei de previdência social e, agora, ao assassinato, por um policial, do jovem Nael, de 17 anos, alavancam politicamente Marine Le Pen, líder da extrema-direita. No Brasil, foram as manifestações de junho de 2013 e a crise econômica que aqueceram o caldo de cultura que possibilitou a eleição de Bolsonaro em 2018. Os projetos autoritários se apoiam nas bulas de medicamentos líquidos: “Agite antes de usar”.

Clara Mattei, professora de Economia, autora de “The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (em tradução livre: “A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”), defende a tese de que a austeridade econômica pavimenta o caminho para o fascismo.

Ela cita os exemplos de Mussolini, Trump e a atual primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, como efeitos da austeridade econômica. Escreve ela: “Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos dos assalariados, que são a maioria, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.”

E acrescenta: “Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e com flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento de impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e grupos corporativos ou sobre patrimônio.”

Esse “pobretariado” privado de empregos e jogado na mais completa insegurança social por falta de moradia, saúde e educação, é como o náufrago que se agarra ao primeiro galho de árvore ao alcance das mãos – entenda-se, o líder político que adota o discurso salvacionista, menospreza as instituições democráticas, prefere a lei da força à força da lei e evoca Deus como seu aliado.

Essa política necrófila é beneficiada pelas redes digitais que tendem a isolar as pessoas e instigá-las ao consumo, exacerbam a violência. O adolescente de 16 anos, responsável pelo massacre em uma escola de Aracruz (ES), em novembro de 2022, declarou à polícia que havia aprendido na internet a manusear armas. Sete meses depois, no Rio, a servidora doméstica, Isabella da Silva Oliveira, de 19 anos, também admitiu que aprendeu na internet a lidar com armas para assassinar o patrão, Lilson Braga, de 66 anos.

Essa cultura de ódio e ressentimento, tão propagada pela extrema-direita, só pode ser combatida com políticas sociais que reduzam a desigualdade social, condenem energicamente todo tipo de preconceito e promovam a educação política das classes populares, inclusive com a descolonização da mensagem bíblica.

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de quarentena” (Rocco), entre outros livros.

Antonio Vermigli (1951-2023): meu tipo inesquecível

Imagino que todos conhecemos pessoas que, dotadas de um talento excepcional, gostaríamos que muitos de nossos amigos e amigas também conhecessem. É o caso do meu querido amigo Antonio Vermigli, que transvivenciou neste mês de julho.

Antonio era dirigente da Rete Radié Resch, associação de solidariedade internacional, fundada na Itália em 1964. Radié Resch é o nome de uma menina palestina que, naquele ano, morreu de pneumonia. Por falta de casa, habitava com a família em uma caverna úmida de Nazaré. O primeiro projeto da Rete consistiu em financiar a construção de casas para famílias palestinas em Nazaré e Belém, pois haviam sido expulsas de seus domicílios pelas tropas do governo de Israel.

Foi graças à minha prima, Maria Inês Libanio, radicada há décadas na Itália, que em 1980 conheci Antonio. Ela trabalha na Fundação Internacional Lelio e Lisli Basso, que se dedica à defesa dos direitos humanos em países periféricos e promove o Tribunal Permanente dos Povos.

Durante a greve dos metalúrgicos do ABC paulista, em 1980, assumi a direção do Fundo de Greve a partir do momento em que os diretores do sindicato começaram a ser presos. Fui à Europa em busca de apoio. Então, por indicação da Fundação Basso, conheci Antonio. Desde então mantivemos contato.

Nos últimos 40 anos, com poucas exceções, como o período da pandemia, passei uma ou duas semanas na Itália a convite da Rete. Antonio estabelecia previamente o programa de palestras e me ciceroneava por inúmeras grandes e pequenas cidades, muitas chamadas de “paese”. Havia dia em que eu falava sobre o mesmo tema em dois “paesi”, um vizinho ao outro. As distâncias entre os dois são tão curtas, que custei a entender por que não concentravam o público de ambos no auditório de um só. O forte sentimento regionalista dos italianos exigia que cada “paese” tivesse a sua exclusividade.

Todos os anos Antonio levava à Itália figuras latino-americanas que, durante uma ou duas semanas, pudessem percorrer diversas cidades para proferir palestras e, assim, angariar recursos para projetos na América Latina. A lista é longa, mas destaco as mais conhecidas: Lula, Aleida Guevara (filha do Che), Rigoberta Menchú (Prêmio Nobel da Paz), Leonardo e Waldemar Boff e Marcelo Barros.

Durante o período das visitas, Antonio se desdobrava em motorista, publicitário, tesoureiro, livreiro, hospedeiro, e no que mais preciso fosse para nos assegurar conforto e êxito no trabalho. Sempre solícito e irreverente, dirigia como se pilotasse um avião (o que lhe valeu, antes da fundação da Rete, um grave acidente e aposentadoria precoce da profissão de carteiro). Jamais demonstrava o menor cansaço, sempre com um humor exuberante. Saudava os amigos quase aos gritos, o que despertava a atenção de todos em volta, e seu jeito efusivo se expressava na gesticulação envolvente. Sósia de Robert De Niro, inclusive nas tiradas irônicas, várias vezes vi-o ser alvo da atenção de pessoas surpreendidas por cruzarem com o “ator”…

Não conheci outro que, com tanta liberdade, zoasse de Lula e outras personalidades sem provocar nenhum constrangimento. Em 2012, quando minha mãe, Maria Stella Libanio Christo, levou a culinária mineira para a feira internacional do Slow Food, em Turim, ela, minha irmã Cecília e eu, tivemos Antonio como motorista e cicerone. Numa avenida de Turim, quando os veículos estavam todos travados num engarrafamento, Antonio largou o volante, desceu e, como um mestre a admoestar seus pupilos, proferiu um veemente discurso sobre a inutilidade de buzinaço naquelas circunstâncias.

Vivia em Quarrata, na Toscana, numa casa modesta à beira da estrada. O espaço da garagem era dividido com pilhas de livros de autoria de seus convidados, que ele mesmo cuidava de mandar imprimir para obter, com a venda nas palestras, fundos destinados aos projetos da Rete. Um deles, meu “Batismo de sangue”.

Em Quarrata, Antonio fundou a Casa da Solidariedade, que abrigava pessoas amigas vindas de muitos países, e na qual costumava exibir seus dotes culinários aos hóspedes. Em um único ponto jamais concordamos: de que a pizza italiana é melhor que a paulista. Pode ser, mas nunca aprovei nenhuma das tantas que ele me ofereceu Itália afora. Prefiro as de massa fina, leve, crocante, sem bordas pronunciadas, que só encontro em São Paulo.

Invariavelmente Antonio levava seus convidados para almoçar frutos do mar no Le Fontanelle, nas cercanias de Quarrata. Como era amigo da família proprietária, entrava aos gritos saudando os funcionários, caçoava de maitres e garçons, brincava com as mulheres, invadia a cozinha para decidir o cardápio, contava piadas, como se seu estado de espírito fosse uma festa incessante.

Todos os anos, em setembro, ele promovia, por ruas e estradas que unem Agliana e Quarrata, a Marcha da Justiça, sempre liderada por personalidades que convidava. Participei em 1998 ao lado de Lula, Rigoberta Menchú e do humorista Pepe Grilo que, mais tarde, fundaria o partido Cinco Estrelas.

Antonio vinha quase todo ano ao Brasil visitar os trabalhos sociais subsidiados pela Rete, e sempre acompanhado de seu inseparável parceiro Vito Sávio e extensa comitiva de colaboradores da Rete interessados em conhecer as obras beneficiadas pelos recursos advindos da Itália. Na programação, contatos com o MST, com o qual tanto se identificava, e visita a Lula, que o adotava como guia quando passava pela Itália.

Sua transvivenciação precoce deixa um profundo vazio no coração de todos nós que tivemos o privilégio de desfrutar de sua convivência. Deus o tenha, graciosa e divertidamente.

Carlos Rodrigues Brandão (1940-2023) por ele mesmo

Em 2011, Carlos Rodrigues Brandão me enviou originais de um novo livro. Pediu-me que opinasse sobre o conteúdo e indicasse editoras. É um texto autobiográfico, ainda inédito. Selecionei alguns textos para que todos tenham ideia de quão digno, profundo e competente foi este querido amigo e parceiro em muitas trincheiras, da pastoral à educação popular.

Frei Betto

Nós e eles, ou: eles em nós

Em Os deuses do povo – um estudo sobre a religião popular e outros sobre sistemas de crenças, ritos e festas da experiência do catolicismo de camponeses e de negros. (…) Meus sujeitos de pesquisa e meus interlocutores eram cristãos católicos, como eu – ora com mais certezas, ora com maiores dúvidas – julgava também ser. Tanto assim que muitas vezes oramos juntos em seus rituais, e não foram poucas as vezes em que, diante de todos, deixei de lado meus aparatos de pesquisa e, reverente, tomei as fitas pendentes de um altar rústico, beijei-as e as passei sobre a cabeça.

Fui certa feita “festeiro de Santos Reis” em São Luís do Paraitinga e talvez de uma forma próxima a vários de vocês, e um tanto mais distante de outros companheiros de ciências sociais, eu me sentia e identificava como alguém que pesquisa algo de um sistema de fé, crença, culto e rito; de uma religião, enfim, que desde a minha infância era também “a minha” e, em cujas verdades essenciais, eu também acreditava. Diante de um rústico altar de santos eu não me ajoelhava como um ator que representa “ser como eles”.

(…)

Em Goiás e, depois, Minas Gerais e São Paulo, varei longas horas de noites entre dezembro e janeiro caminhando, cantando, orando e comendo entre e com foliões de Santos Reis. Durante dias e semanas andei atrás e, entre ternos de congos e de moçambiques, em festas “de santo de preto”. Documentei e, aí sim, varando noites inteiras em claro, e até dancei danças, funções ou folgas de São Gonçalo. Quase sempre sozinho, como é costume entre antropólogos. Algumas vezes acompanhado de estudantes, em fecundas e breves jornadas de oficinas de pesquisa de campo, a que me habituei desde meus primeiros anos de professor, ainda em Goiás.

Havia apenas algumas diferenças em tudo. Estas duas seriam as mais importantes. Primeira: Creio que eles oravam com maior e mais sincera fé do que eu mesmo, devotando em muitas ocasiões às suas preces, rezas de terço e cantórios de louvor ou de “peditório” um tempo imensamente maior do que o que eu ousaria destinar a tais práticas. Segunda: Durante os quase sempre muito longos momentos de seus rituais devotos, eles apenas “faziam aquilo” a que se dedicavam. Eu partilhava com eles “aquilo”, quando era convidado ou me parecia devido e, ao mesmo tempo, os pesquisava.

(…)

Terminada a festa ou o ritual que por algum tempo nos aproximara, eles deixavam de ser reis e rainhas, nobres de uma corte processional de negros, mestres, contramestres e outros devotos-artistas errantes em nome dos Três Reis do Oriente, ou dançantes em louvor a São Gonçalo, e retornavam à rotina de serem pedreiros, subempregados, biscateiros, garçons, lavradores de arroz e milho, mulheres “donas de casa e mães de família”. E eu, que os deixava e viajava de volta, permanecia sendo o antropólogo que os “pesquisara” e agora deveria escrever sobre eles. Ou seja, traduzir em que acreditavam, o que faziam e criavam diante de mim e dos outros, em uma linguagem que eles não entenderiam se algum dia me lessem.

Mas, a seu modo, eles conheciam outras diferenças. E um dia, do meio de seu terno, ao me ver numa esquina de rua gravando e fotografando, um capitão negro de congos interrompeu o seu canto para me gritar entre sorrisos: “Eh, meu branco! Quem sabe, dança. Quem não sabe, estuda!”

(…)

Depois de haver saído da vida universitária como estudante e, também, da Juventude Universitária Católica e do Movimento de Educação de Base, onde vivi a mais forte e intensa experiência do pertencer a uma pequena e ativa comunidade cristã de fé (o crer pessoal), de crença (o crer comunitariamente com outras pessoas), de vida, destino e militância – algo a que dávamos naqueles anos o nome de “engajamento” – iniciei uma vida dupla que já abria suas duas trilhas para mim ainda nos tempos de estudante. Creio que vários dentre os que agora me escutam, e mais adiante poderão ler o que escrevi, viveram ou vivem ainda algo bastante semelhante.

Ao mesmo tempo, e quase sempre repartindo um mesmo dia, mesma semana, mesmo mês de vida e de trabalho, me tornei professor universitário e permaneci vivendo o que até imagino ser uma dimensão de militância. Assim, desde agosto de 1967 vivo o ser um professor e um antropólogo, desde cedo bastante motivado pelo mundo rural e pelos cenários e espaços rurais daquilo a que dei e damos nomes como: culturas camponesas, culturas populares, culturas rústicas e, de maneira especial em meu caso, as tradições populares de negros, mestiços e brancos católicos, residentes em áreas rurais ou em cidades agrárias de pequeno porte.

As mesmas culturas a que demos durante os anos sessenta e seguintes nomes mais políticos, como: culturas dominadas, culturas oprimidas, culturas do povo e assim por diante. Tempos em que, com frequência, Cultura Popular costumava ser escrita com maiúsculas e deu origem aos movimentos de cultura popular de que participei através do Movimento de Educação de Base.

Nascido em Copacabana e, depois, morador da Gávea, dois bairros de classe média de uma grande cidade, nunca me interessei por temas ligados à antropologia urbana, e mesmo o limite de minhas pesquisas sobre a religião foram em cidades interioranas de porte médio ou pequeno, como Itapira, São Luiz do Paraitinga, Goiás (cidade de), Pirenópolis, Mossâmedes e outras.

Em outra direção, durante todo o período dos governos militares, dei continuidade a uma “vida militante” junto a “movimentos sociais de Igreja” e experiências de luta e resistência, que as Comunidades Eclesiais de Base e na Diocese de Goiás costumávamos chamar de Igreja do Evangelho. Boa parte de toda a minha participação de então foi através do Centro Ecumênico de Documentação de Base, da Diocese de Goiás e, em menor escala, de outras, como a de São Félix do Araguaia.

(…)

Nos anos oitenta participei de um longo trabalho de pesquisas sobre o catolicismo no Brasil de então. Foi uma iniciativa do Instituto de Estudos da Religião, do qual fiz também parte por muitos anos, e foi coordenada por Pierre Sanchis. De maneira quase simbólica, mais do que acadêmica, para um dos volumes escrevi um estudo sobre “eles”, os outros: A partilha do tempo. Um momento de antropologia do campesinato realizado junto a pessoas e famílias de uma comunidade encravada na Serra do Mar, entre Taubaté, no Vale do Paraíba, e Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo, chamada Catuçaba, pertencente ao município de São Luís do Paraitinga. Um dos últimos redutos brasileiros onde todos os anos, com solene pompa e alegre festa, comemora-se, nas ruas e dentro da igreja, a Festa do Divino Espírito Santo.

Para outro volume escrevi um estudo sobre “nós”, os cristãos situados, frente aos camponeses de Catuçaba, do outro lado das culturas: a profana e a religiosa. Uma incômoda e persistente clivagem visível e vivida, que desde pelo menos os anos heroicos da década de sessenta nos acostumamos a chamar de “cultura erudita” (a nossa, ou a dos que pesquisam e escrevem… mas não sabem dançar) versus a “cultura popular” (a deles, ou a dos que são pesquisados, descritos e escritos… mas sabem dançar).

(..)

O que vivemos e somos agora? O quê? Quem? Nós, que trilhamos o ser-cristão-católico entre a Ação Católica e os Movimentos de Cultura Popular entre o final dos anos 1950 e os anos 1960. Aqueles que depois viveram intensamente, como tantas e tantos de nós, as vocações renovadoras conciliares e pós-conciliares, que na esteira de nossas próprias ousadias anteriores nos abriram difíceis portas e nos apontaram não menos desafiadores horizontes que desaguavam na Teologia da Libertação, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas “Igrejas do Evangelho”. Nós, que nos abrimos – em tempos de novos fundamentalismos e, em direção oposta, tempos de uma mercantilização desenfreada do sagrado – a redescobertas que nos obrigam a despojamentos antes impensáveis de nós-mesmos. Que nos desafiam agora a saltos em direção a alianças e comunhões com “outros”, cada vez mais diversos e mais aproximados de nós justamente por causa de suas diferenças culturais e religiosas.

Lembro-me dos tímidos primeiros passos de nossa vocação ecumênico-cristã dos tempos de surgimento em minha vida do Centro Ecumênico de Documentação e Informação e do Instituto de Estudos da Religião. Lembro-me da abertura deste primeiro passo de acolhida do diferente e dos saltos seguintes a que ele nos obrigou. Lembro-me do que aprendi com pessoas do Conselho Missionário Indigenista e da Teologia da Inculturação.

Em meio a católicos e a outros cristãos empenhados em dedicar suas vidas à conversão de “pagãos” negros do candomblé ou indígenas da Amazônia, eis-nos diante de missionários católicos que se negavam a qualquer ação conversionista e me ensinavam, como ouvi de um deles, que: “a minha missão como missionário inculturado é fazer tudo o que puder para que os índios com quem trabalho creiam e vivam a sua própria fé indígena tradicional em toda a sua plenitude. Porque o ser-cristão neles não é o converter-se ao meu cristianismo, mas o viver a sua própria ancestral experiência religiosa e espiritual de seus deuses”.

E alguns passos e saltos maiores foram e seguem sendo dados ainda. Recordo o Mosteiro da Anunciação do Senhor, também na Cidade de Goiás. Nas cerimônias rituais de cada manhã, celebrávamos um dia “em comunhão com os nossos irmãos budistas”; outro com os muçulmanos, outro com os praticantes dos cultos religiosos de tradição afro-americana. E nos considerávamos – a menos que eu mesmo esteja colocando sobre este “nós” o que eram as palavras de meu próprio desejo – “cristãos de tradição católica”. Homens e mulheres praticantes e participantes de uma entre tantas vocações de fé e de prática pessoal e solidária da religião e da vida espiritual, todas elas tradições tão “verdadeiras” e santificadoras quanto a nossa, a “católica”, uma entre tantas outras tradições históricas e culturais de uma mesma religião: o cristianismo. Uma religião entre as muitas moradas de fé em que um mesmo Deus de múltiplos rostos se dá a ver é pronunciado e acolhido pelos humanos.

(…)

O que somos, agora?

Lembro que este “nós” a que tenho me referido deve ser entendido em uma dimensão muito simples e até mesmo familiar. Começa em mim, minha biografia e minhas incertezas de antes e de agora. E se estende a pessoas, algumas ainda entre nós, outras que já partiram (e terão visto “tudo”… ou “nada” do outro lado), que partilharam de um modo ou de outro os trajetos de “vida de Igreja” de que tenho falado aqui. Trajetos que eu pretendi iniciar na Ação Católica dos anos 1960 e que se estendem até, por exemplo, ao livro A arte de semear estrelas, de Frei Betto.

Olho para dentro de mim (o mais difícil dos espelhos), olho ao meu redor e vejo o quê? Vejo e percebo algo que compreendo? Compreendo algo que possa ser unificado como uma “visão comum”, como uma “vocação partilhada”, como um “mesmo horizonte de uma mesma e múltipla fé”? Ou tudo o que vejo – bem à moda de nosso tempo – são fragmentos, colagens de imagens de mim e de nós mesmos em álbuns-do-ser-quem-sou tão frágeis e mutáveis quanto tudo o que parece existir ao nosso redor?

(…)

Devo dizer que, tal como Frei Betto, Leonardo Boff e Marcos Arruda, sou ainda um leitor de Teilhard de Chardin, e malgrado os anos de leituras obrigatórias de escritos de antropologia que o contradizem, ainda me considero alguém que sonha não deixar de crer nem na noosfera, nem no Ponto Ômega.

Olho ao meu redor e o que vejo? Rubem Alves declara, em uma entrevista publicada em um jornal, que se considera um “teólogo ateu”. Não faz muito tempo perguntei a ele, num repente ousado, quando falávamos sobre a morte (um dos seus temas mais temidos e desejados): “Rubem, pra onde você acha que vai quando morrer?” Ele me respondeu como quem passou da dúvida à certeza: “Vou voltar para o lugar de onde eu vim há milhões de anos!” E com um gesto do rosto apontou a terra e não o céu.

Leio o último livro que Frei Betto carinhosamente me enviou: A arte de semear estrelas. Neste livro, Betto se excede em clareza e beleza, leio mais um apelo ao desvelo do corpo do que à salvação da alma. Por isso, talvez este livro menos católico, pastoral e político do que os outros, terá sido até agora o seu escrito mais humanamente cristão.

E se Leonardo Boff escreveu há pouco um livro sobre São José, terá sido para revelar mais o “homem humano” como nós somos ou poderemos ser, do que o santo piegas em que o transformaram. E isto depois de haver escrito vários livros em que a “Mãe Terra” quase ocupa o lugar sagrado e supostamente único do “Deus Pai”. Escritos mais sobre o que fazer com a Terra do que sobre o que esperar do Céu, em que o apelo a uma caridade cristã restrita aos humanos estende-se à compaixão dos budistas. Uma caridade onde cabem todos os seres que conosco compartem a vida na Terra.

Leio a sós e com meus alunos os dois primeiros volumes da trilogia de livros de Marcos Arruda, publicados pela Editora Vozes. O terceiro está a caminho. Neles encontro a polissemia de afetos, de ideias, de propostas do pensar e do agir, de autores com os quais sonho, sem os mesmos efeitos, colocar em meus próprios livros. No primeiro volume da série: Humanizar o infra-humano – a formação do ser humano integral: homo evolutivo, práxis e economia solidária, Marcos Arruda abre-se a uma leitura da pessoa humana, de seu destino e do sentido de seu agir na história, que transcende até mesmo as fronteiras mais abertas do que temos chamado de pan-ecumenismo. Ele não apenas acata o diferente, mas pensa através da integração de/entre diferentes. E, assim, pensa a mensagem cristã através das propostas dos paradigmas emergentes no mundo da ciência, onde se unem Fritjof Capra, Ilya Prigogine e Leonardo Boff. Ele reescreve Teilhard de Chardin por meio de Sri Aurobindo, ali, onde Marx e Buda podem compartir igual esperança num “outro mundo possível”.

Quero imaginar pelo menos dois lugares-de-escolhas situados de um lado e de outro do que imagino serem as opções de fé destas e de outras pessoas conhecidas e amigas. Faço isto, já que acabo de citar a pessoa de Buda, para situar Marcos, Betto, Leonardo, Rubem e eu mesmo num possível “caminho do meio”, tão caro ao budismo, entre dois outros, se não opostos, pelo menos bastante divergentes.

Em um ponto ou um lugar-de-escolhas – amplo o bastante para converter-se em uma grande linha com várias e diferentes opções – reconheço pessoas, homens e mulheres de minha geração e de um semelhante “tempo de vida engajada na igreja”, e que se afastaram dela, do cristianismo e de qualquer opção de vida religiosa de maneira completa, ou quase. Entre as mais próximas, convivo com amigos para quem as perguntas que fiz acima – e que me faço com frequência – já não fazem mais parte de conversas e, segundo alguns, sequer de qualquer plano de preocupações cotidianas. Cristo terá sido um judeu ousado e um homem exemplar. Mas viveu e morreu como tantos outros, antes e depois dele. Deus não existe. Ou, no limite, se existe, nada tem a ver com o deus teísta, amoroso e implacável da tradição judaico-cristã. Melhor seria crer na “religião cósmica” proposta por Albert Einstein, ele mesmo um judeu descrente do YHVH de seus pais, para poder crer em um deus real, mesmo que cosmicamente abstrato.

(…)

João Guimarães Rosa disse, certa feita, que “para muita coisa falta nome”. E é verdade. Falta um nome para mim. Falta um nome para dizer quem eu sou. Pra dizer quem somos nós, habitantes e viajeiros desta múltipla “diáspora da fé”. Um nome – será que isto é preciso – para a teia de uma comunidade tensa, fecunda e unitariamente diversa e dispersa, que vai de pessoas que ainda creem “numa comunidade que crê”, a quase desesperançados “teólogos ateus”. Uma comunidade de destino e de diáspora que às vezes, ao ser perguntada: “o que você é?”; ou “qual a sua religião?”; ou, ainda, “em que você crê?”, em um primeiro momento se espanta e descobre que “falta nome” para dizer em uma ou duas palavras: eu sou, no que eu creio e do que eu faço parte.

Não consegue – como eu não consigo – responder a essas perguntas com a certeza de um velho pedreiro em Itapira. Há muitos anos, ao fazer minha pesquisa indaguei sobre sua ocupação profissional: “o que o senhor é?” Ele respondeu com os olhos fixos em mim: “Eu sou um preto, um pedreiro pobre. Mas sou um crente e um salvo no Senhor. A seguir me perguntou: “E o senhor?”. Eu não soube ao certo o que responder.

(…)

E eu… entre nós

Não tenho e nem busco no plural respostas às perguntas sobre os dilemas que vivemos, todos e cada um. Mas se posso pensar algo a partir do meu caso – ou de minha pessoa – talvez deva começar por uma boa metáfora. Nos domingos, a Catedral de Notre Dame, em Paris, abre diferentes portas. Em uma delas, lateral, entram os turistas que chegam à igreja para visitá-la. Eles percorrem os espaços não-centrais, visitam o que há para ver e fotografar, e saem por uma porta lateral oposta. Mas há uma porta central, a grande porta da catedral, é por ela que devem entrar os fiéis, aqueles que chegam para participar dos “ofícios do domingo”, as várias missas que se sucedem ao longo do dia. Algumas pessoas ficam postadas em locais próximos das entradas, para guiarem turistas e devotos entre portas e destinos diversos. Entrei duas ou três vezes pela porta central. E mesmo sem o fervor católico da juventude e dos “anos da Ação Católica” quis estar “ali” e compartilhar com outros diferentes crentes o que creio que ainda existe de crença em mim. Vivi os ritos e mesmo sem confessar os meus muitos pecados (coisa do passado?), procurei um lugar na fila da “comunidade que crê” e comunguei. Com quem? Com um deus? Com um homem que depois alguns transformaram em um deus? Ou com a comunidade de crentes daquela e de outras filas da vida e do destino? Devo dizer que em outras vezes entrei pela porta dos turistas. Se pela outra porta eu queria saber o que um deus teria feito para os seres humanos, acho que pela porta do lado eu entrei para saber o que os homens terão feito para existir um deus.

(…)

De igual maneira teria participado de um culto de crentes budistas e faz tempo sonho com um longo retiro entre eles. Isso vale para o desejo que preservo de algum dia participar de rituais de sinagoga e de mesquita. Não pela curiosidade do antropólogo, mas por querer saber com que falas e cantos se diz a um deus de outro e mesmo rosto as palavras da fé e da crença. Tenho comigo um livro de preces cristãs, judaicas e islâmicas. Quando tenho vontade de dizer algo a deus ou ao vento, abro o livro em qualquer página e leio (e oro?) qualquer prece. Tenho também outros, com preces que se estendem de Oriente a Ocidente, e trazem nomes de deuses de povos africanos e de povos indígenas das Américas. Algumas são de fato bastante mais tocantes do que uma “Ave-Maria” e quase todas são muito menos infelizes do que a “Salva Rainha” da minha infância e adolescência. Escolho qualquer uma e digo ao deus de qualquer povo, ou de toda a humanidade e do Universo, o que em outras línguas terá sido dito muitas vezes antes de mim.

Martin Buber e Emmanuel Lévinas são dois judeus cujos livros leio, mesmo sem os compreender inteiramente. Buber, do Eu e Tu, é uma leitura “desde os tempos da JUC”. E penso que ele foi importante até mesmo para o Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire.

Lévinas é mais recente entre nós, mas existe um centro de estudos a ele dedicado no Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre.

Em 2007 saiu pela Editora Verus um novo livro de Martin Buber: Eclipse de Deus – considerações sobre a relação entre religião e filosofia. Retomando categorias de Eu e Tu, a ideia central do livro me pareceu muito simples, se é que eu a compreendi. Se há um deus (e para ele há, sem dúvida alguma), ele é dois: o deus do crente e o deus do filósofo. O deus de quem crê em deus e o deus de quem pensa sobre deus. Os dois são seres irreconciliáveis, porque em nós eles existem sob duas naturezas intocáveis. Um é o deus da relação Eu-Tu e, por isso, deve ser compreendido sem ser pensado. O outro é o deus da relação Eu-Isso. Um deus tornado objeto do pensamento, privado da subjetividade de um Tu que somente pode estar em relação comigo através de minha fé. Acho que é por isso que Emmanuel Lévinas – que se considerava um crente judeu e estudava a fundo os seus livros santos – quase nunca se lembra de citar Martin Buber.

(…)

Faixa Livre entrevista Frei Betto

Frei Betto, Ricardo Braga, Tarcísio Motta e Caio Andrade

  • Jornalismo com uma outra visão dos fatos –
    Segunda a Sexta – 8h às 10h
    Apresentação: Anderson Gomes

Entrevista: Frei Betto – Teólogo, jornalista e escritor
Tema: Momento político
Debate: Congresso Nacional: aliado ou inimigo do Brasil?

Ricardo Braga – Economista, doutor em Ciência Política e colunista do site Congresso em Foco
Tarcísio Motta – Deputado federal (PSOL-RJ)
Caio Andrade – Professor da Rede Estadual do Rio de Janeiro e Doutorando em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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Caiu na rede é peixe!

Há consenso de que saímos piores da pandemia. Nos exigiu isolamento e coincidiu com o acirramento da polarização política. O isolamento somente não se transformou em cela solitária porque tínhamos algumas janelas abertas, como as redes digitais. Mas a polarização política irrompeu na esfera da emoção, não da razão. Muito diferente das polarizações anteriores, nas quais os debates se apoiavam em autores dotados de luzes (Marx, Smith, Gramsci, Keynes, Lenin, Arendt etc.) e em propostas para o futuro da humanidade.

Agora não há citações, projetos ou propostas. Há disputas acirradas na base do ódio, da difamação, da infâmia, enfim, da violência. O adversário é encarado como inimigo. Não deve ser convencido, e sim vencido. E virtualmente assassinado; às vezes, literalmente.

O que nos levou a esse nível de desumanidade? Por que tantas relações de parentesco e amizade foram sumariamente cortadas? Por que o debate cedeu lugar ao ódio, à exclusão, ao cancelamento?

Há muitas respostas e hipóteses. Entre elas, a de que a dependência psíquica às redes digitais esgarçou os vínculos sociais. Hoje, mais de 5 bilhões de pessoas estão conectadas à internet (a população mundial é de 8 bilhões), e o Brasil ocupa o quinto lugar no número de usuários. Há mais smartphones em nosso país (249 milhões) que os 203 milhões de habitantes.

Somos tragados, literalmente, pelas bolhas nas quais transitamos. E elas exacerbam em nós o individualismo e o narcisismo. Somos espectadores de nós mesmos. Abrimos a ferramenta digital como quem descerra a cortina do teatro ou o véu que cobre o espelho. É a mim mesmo que eu quero ver. O outro só me interessa enquanto plateia do que posto. E caso manifeste alguma discordância com o que posto, então disparo todo tipo de agressão ou simplesmente o silencio pelo cancelamento. Já não suporto conviver com a diferença, o pluralismo, a diversidade.

Se é assim, por que milhões de usuários das redes haveriam de votar em candidatos tolerantes e democráticos? Preferem aqueles que são à sua imagem e semelhança: raivosos, sectários, violentos. Homens e mulheres se lixam para o debate democrático. Estão imbuídos de certezas, ainda que sejam desafiados a prová-las.

Como peixes atraídos por suculentas iscas, caímos nas redes! E elas sugam-nos tempo e energia psíquica. Aceleram-nos a ansiedade. Exigem-nos atenção múltipla. Induzem-nos a tomar partido frente a cada tema exposto. Aplaudimos o que reforça o nosso ponto de vista e demonizamos quem contraria a nossa ótica. “Huis clos”: como se estivéssemos fechados numa dessas caixas de laboratório onde colocam camundongos submetidos a reações automatizadas. Reagimos por instinto, não pela lógica.

A doença mais em voga atualmente é o estresse. Hipnotizados pelo smartphone, não podemos deixar de estar conectados a ele, ainda que estejamos na mesa de refeição, no culto religioso, no trabalho ou no transporte. “Dormimos” ligados a ele, pois mantê-lo apagado é quase um auto banimento. Se a TV é a extensão dos nossos olhos; o rádio, de nossos ouvidos; o celular é de nosso ser. A sensação de estar tribalizado ameniza-nos a solidão, ainda que as nossas relações sejam meramente virtuais. E as redes digitais suscitam sérios desafios éticos, como livre acesso à pornografia, postagens que incentivam o terrorismo e o neonazismo, quebra de privacidade familiar e pessoal, crimes cibernéticos etc.

Não há que ser contra a inovação tecnológica. Há que reconhecer, inclusive, que as redes têm muito de positivo, como democratizar a informação (malgrado as fake news), quebrar o monopólio ortofônico dos grandes veículos da mídia, facilitar o contato entre as pessoas, difundir ideias e propostas, favorecer cursos online e acesso a obras de arte, agilizar pesquisas (o Google processa mais de 9 bilhões de pesquisas por dia, e o Brasil se destaca como um entre os cinco países que mais o acessam).

Mas estejamos atentos: é preciso criar marcos regulatórios para as plataformas digitais, de modo a aprimorar a democracia. Como assinala Eugênio Bucci em seu excelente livro, “Incerteza, um ensaio” (BH/SP, Autêntica, 2023): “No totalitarismo o núcleo do Estado é perfeitamente opaco e blindado, enquanto a privacidade pessoal é transparente e vulnerável (ao poder). Ora, troque a palavra “Estado” pela palavra híbrida “capital-técnica” e você terá o retrato fidedigno de nossos dias. Nós não somos apenas seres olhados, vigiados, vasculhados, inspecionados e capitalizados no espetáculo do mundo. Quanto ao centro nervoso e financeiro desse espetáculo, este não é para os nossos olhos e muito menos para o nosso juízo crítico. O nome disso é totalitarismo – um totalitarismo de tipo diferente, admito, mas, ainda assim, totalitarismo” (p. 133-134).

Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros.

Zé Celso, O PRESTIDIGITADOR

Fui assistente de direção de Zé Celso na primeira montagem de “O rei da vela”, peça de Oswald de Andrade. Em 1966, vim para o convento dos frades dominicanos no bairro das Perdizes, na capital paulista, para onde convergiam vários grupos e partidos de esquerda, todos clandestinos.

Uns, para esconder militantes procurados pela repressão; outros, para guardar documentos; e muitos para ouvir os sermões antiditadura proferidos pelos frades nas missas. Ali cruzei com Plínio Marcos e Flávio Império, José Dirceu, Vladimir Palmeira, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, o psicanalista e jornalista Roberto Freire e Carlos Marighella, entre outros.

Entre nossos amigos, Carlito Maia, publicitário. Sua irmã, Dulce Maia, produtora cultural, me propôs um “bico” no Teatro Oficina. Zé Celso procurava quem desse subsídios ao elenco de “O rei da vela” a respeito da conjuntura do Brasil na década de 1930. A proposta me interessou.

Uma noite, Dulce me levou à casa de Zé Celso. Foram duas horas de papo sobre a “revolução” burguesa no Brasil, na década de 30. Impressionou-me a genialidade de Zé Celso, sua inteligência transbordando pelos gestos largos e precisos, impregnado de criatividade, numa altivez dionisíaca. Estava entregue às obras de Oswald de Andrade com paixão incontida. Em seu apartamento na Bela Vista, amontoavam-se livros sobre o início da industrialização no país, discos de antigas marchas carnavalescas, exemplares raros da revista O Cruzeiro, na qual o diretor do Oficina buscava detalhes de ambientação para o espetáculo.

De teatro, eu pouco entendia, mas aprendi com “O rei da vela” que a falência da aristocracia rural brasileira fora marcada pelo processo de industrialização apoiado, sobretudo, no capital estrangeiro.

Fiz intensa pesquisa para a ambientação da peça que marcou as origens do tropicalismo na cultura brasileira, quando o país se deslocava dos coronéis da lavoura para os capitães da indústria, e proferi minipalestras para o elenco. Ousado, Zé Celso me convidou para ser seu assistente de direção. Ainda que semianalfabeto em matéria de teatro, aceitei. O que selou nossa amizade por toda a vida.

Naquela conjuntura, o teatro parecia atingir – e esgotar – seus recursos contestatórios com “O rei da vela”. A repressão e a censura apagaram a chama da última vela. Restou-nos o sonho de um teatro capaz de propor uma ação concreta e eficaz.

Mas a “loucura” de Zé Celso não chegava ao ponto de subverter os próprios limites da arte, encher o Oficina de bananas de dinamite e reduzir o espetáculo a um único e definitivo gesto: acionar, no palco, o detonador. Todos nós sabíamos que, no teatro, o último ato é o mais importante e o único no qual os espectadores são, além da peça, os verdadeiros atores: o momento da saída, quando o reencontro com a realidade, lá fora, dá-se na visão crítica proporcionada pela arte.

Ora, as palavras nem sempre são suficientes. No teatro, elas ressoam bem, mas não atingem o alvo. Fica sempre algo a ser dito, justamente aquilo que o teatro é, por si, incapaz de dizer. Senti isso ao montar o espetáculo de Oswald de Andrade. Ali se deu um grito, um grito perturbador, mas, para mim, insuficiente. O grito se perdeu sem eco no barulho exterior. Deixei o Oficina após um ano e abracei a resistência direta à ditadura.

Zé Celso, entretanto, jamais duvidou do poder subversivo da arte. Não abdicou de sua trincheira, não cedeu às pressões publicitárias, às propostas de altos salários na TV. Viveu, enfim, em coerência inquebrantável, entregue a fazer todo o seu talento irromper no palco em espetáculos que, para sempre, marcam os melhores momentos da história do teatro brasileiro.

Frei Betto é escritor, autor, entre outros, de “Por uma Educação Crítica e Participativa” e “Tom vermelho do verde” (ed. Rocco)

Entenda a Crise Cubana

Passei parte de junho em Havana, onde assessoro o Plano de Soberania Alimentar e Educação Nutricional (Plan San). Agora são mais evidentes os efeitos de um conjunto de fatores que afetam duramente a vida da população: o bloqueio genocida imposto pelos EUA há mais de 60 anos; a pandemia; a crise climática; e a guerra entre Rússia e Ucrânia, fornecedores de insumos, fertilizantes e turistas para a ilha do Caribe.

Com pouco mais de 11 milhões de habitantes, a economia do único país socialista da história do Ocidente depende da exportação de níquel (cujo valor oscila muito no mercado internacional); da produção de charuto (cerca de 80 milhões unidades/ano) e rum; do envio de professores e médicos a países estrangeiros; e do turismo, agora debilitado por novas medidas do bloqueio. Biden mantém Cuba na lista dos países “promotores de terrorismo” e passou a exigir visto para ingressar nos EUA dos europeus que visitarem a ilha.

A implementação da Lei de Soberania e Segurança Alimentares e Educação Nutricional, aprovada pela Assembleia Nacional em 2022, é considerada prioridade em Cuba.

Embora o governo assegure cesta básica mensal a todas as famílias, atualmente as carências são mais acentuadas que no Período Especial (1990-1995), quando desabou a União Soviética, de cuja prosperidade Cuba se beneficiava. Na penúltima semana de junho, o ministro da Indústria Alimentícia, Manuel Santiago Sobrino Martínez, admitiu na TV que a baixa produção e comercialização de alimentos, e a alta dos preços, incidem fortemente na qualidade de vida da população. Cuba importa, hoje, 80% dos alimentos que consome, o que representa um gasto superior a 4 bilhões de dólares/ano.

Uma das metas prioritárias do Plan San é promover a substituição das importações mediante novos hábitos alimentares, como introduzir mandioca no preparo de pães e assim reduzir a compra de trigo. Um exemplo dos reflexos do aumento dos preços dos alimentos no mercado internacional nos últimos anos pode ser visto na compra da carne de frango: há um ano, uma tonelada custava US$ 900 mil, agora está por US$ 1,3 milhão.

A energia, movida predominantemente por petróleo importado, afeta a produtividade da indústria alimentícia. A Venezuela já não tem condições de assegurar o abastecimento de anos anteriores. A crise climática também impacta a economia. Nos primeiros meses deste ano, a seca reduziu a produção de leite em 38 milhões de litros. E afetou a aquicultura ao diminuir consideravelmente o nível dos reservatórios de água.

Agora o governo incentiva a abertura de micros, pequenas e médias empresas de caráter privado. Já são 844, das quais 144 são padarias e confeitarias; 194 se dedicam à produção de embutidos; 188 produzem conservas; e 92, produtos lácteos.

Na agricultura se instalaram mais de 350 microindústrias. Desde 2022, houve mudanças no comércio de produtos agropecuários e há esforço de informatização do setor. “Sabemos que enquanto os cubanos não virem todas essas mudanças refletidas em sua mesa, duvidarão de todos esses dados, mas o governo está empenhado em reverter essa situação”, afirmou o ministro.

Segundo Jesús Lorenzo Rodríguez Mendoza, diretor de pesquisa para a indústria de alimentos, à medida que a situação econômica do país se agrava, a atividade tecnocientífica ganha maior relevância. “Nestes 46 anos, desenvolvemos 700 produtos. Nossa principal missão é fornecer ferramentas para todos os processadores de alimentos, desde a composição nutricional do produto até a execução de processos tecnológicos, bem como equipamentos mais eficientes a serem utilizados.”

Desde meados de 2022 se agravou o abastecimento de trigo: “Por exemplo, para garantir estabilidade na produção de grãos e no consumo tradicional em um mês é preciso comprar três navios de trigo, que custam cerca de 35 milhões de dólares”, disse Rodríguez Mendoza.

Este ano conseguiram comprar apenas quatro remessas de trigo, devido ao aumento do preço. O bloqueio dificulta as importações, ainda mais porque quase nenhum banco aceita fazer transações financeiras com Cuba para não ser penalizado pelas sanções estadunidenses.

Um navio carregado de trigo que recentemente aportou em Cienfuegos passou mais de 60 dias para carregar no porto de origem, e isso teve um custo adicional na operação: “Conseguimos contratar grãos em países da região e, em muitas ocasiões, os armadores desses países não aceitam vir a Cuba. Assim, temos que buscar navios de outras origens e enviá-los a esses lugares, e isso, logicamente, tem um custo”, declarou o cubano.

Outro exemplo dos efeitos do bloqueio são as peças de reposição: “Temos quatro fábricas, tivemos financiamento disponível, pagamos os fornecedores de peças de reposição e os bancos onde eles trabalham não aceitaram nosso pagamento. Temos que buscar outras alternativas.”

Sobre a produção de bebidas alcoólicas, González Lorenzo explicou que a queda na produção de açúcar em Cuba teve um impacto negativo no setor. No entanto, destacou que novas medidas aprovadas se tornaram uma oportunidade para reverter a situação: “Realizamos um controle sistemático dos processos produtivos e, até junho, conseguimos produzir mais de dois milhões de engradados de rum, o que permitirá recuperar a produção. Entre julho e agosto, por exemplo, vamos entregar cifras semelhantes às que vendemos em 2019, em torno de 400 mil engradados de rum”, afirmou. Acrescentou que será favorecida a produção de outros líquidos, como o vinagre e o vinho seco.

A situação da pesca também foi analisada. A vice-ministra da Indústria Alimentar, Midalys Naranjo Blanco, esclareceu que, embora Cuba seja um país rodeado pelo mar, suas águas não produzem pescado suficiente para a demanda da população. Entre 1976 e 1990, o país dispunha de uma frota pesqueira que operava em águas internacionais e fornecia boa parte do pescado consumido no país (cerca de 100 mil toneladas por ano). Desde 1992, devido ao bloqueio, essa frota teve que se retirar gradualmente das águas internacionais, o que afetou a disponibilidade de alimentos em Cuba.

Entre 1986 e 2009, o país importou cerca de 33.000 toneladas de produtos da pesca. Devido aos níveis de financiamento exigidos não foi possível manter este volume. Como resultado desta situação, a aquicultura é incentivada em Cuba com um programa que inclui todas as regiões do país. Dentre as culturas, a extensiva é desenvolvida, pois a aquicultura intensiva demanda volumes de ração que não estão disponíveis atualmente. A cultura de carpas é uma das mais praticadas, embora demore cerca de 18 meses para atingir um peixe de tamanho comercial.

Naranjo Blanco afirmou que estão trabalhando para aumentar a produção de alevinos e construir o maior número possível de tanques. “Há novos atores econômicos nesta atividade. Temos, por exemplo, 485 produtores privados”, disse a vice-ministra.

Entre as dificuldades enfrentadas pela aquicultura, ela se referiu aos efeitos das alterações climáticas (sobretudo secas e chuvas intensas); o tempo de espera para se obter peixe com características comercializáveis; ​​e o déficit de recursos tecnológicos e científicos para aprimorar a pesca.

Entre as medidas que estão sendo tomadas se destacam: construção e reparação de embarcações; permitir, por período de dois anos, a pesca comercial nos meses de agosto a janeiro nas áreas turísticas; favorecer as vendas no varejo e no atacado; ampliar a área marítima destinada à pesca; aumentar a potência dos motores até sessenta cavalos; rever os planos de gestão das áreas protegidas, juntamente com todos os atores do território.

Desde outubro de 2022, os pescadores não são obrigados a ter contrato com empresas estatais e podem comercializar diretamente seus produtos. Isso, segundo Naranjo Blanco, levou a um aumento na venda de licenças comerciais não estatais, atingindo 4.042 licenças no final de maio, um número muito superior ao de 2022. “Todas essas medidas estão em fase de implementação e, nos próximos meses, deverão permitir maior grau de flexibilidade na atividade pesqueira”, afirmou a vice-ministra.

Sobre os produtos da cesta básica, o ministro da Indústria Alimentícia, Manuel Santiago Sobrino Martínez, reconheceu que existem desafios em termos de embalagem, segurança e qualidade dos alimentos. Citou como exemplo o pão. “Além dos problemas com a matéria-prima, a falta de controle se reflete na qualidade do produto em locais onde não há fiscalização suficiente.

O leite em pó também apresenta uma situação complexa. “Embora em certas áreas, como nas regiões centrais do país, haja boa produção de leite, para garantir o consumo dependemos de pequenas importações da América Latina e do Caribe, que hoje não atendem a demanda”, afirmou.

Em relação ao café, Santiago Sobrino disse que a produção, a partir de agora, vai depender se conseguirem importar, porque a produção nacional é insuficiente.

O frango da cesta básica começará a ser distribuído para uma parcela da população. Mas a distribuição deverá melhorar nos meses de julho e agosto, segundo o ministro.

Em relação aos demais produtos de origem animal, nos próximos dias deve chegar ao porto cubano um navio com matéria-prima e estoque para dois meses.

Com os derivados de soja, o panorama é complexo, devido ao déficit do produto no mercado internacional.

Nesses dias, entram em operação mais de cinco investimentos com capital estrangeiro e dois com capital nacional: uma fábrica de biscoitos, compotas e café; outra de cerveja, no porto de Mariel; uma fábrica de chocolates em Baracoa; a expansão da produção da cerveja Bucanero; entre outras. Isso certamente significa melhoria do cenário.

Em resumo, as medidas previstas são paliativas, contingenciais, sem que reste alternativa senão mobilizar a população a priorizar a produção de alimentos, de modo a promover a substituição das importações. Deve-se somar a isso a educação nutricional para reduzir drasticamente o consumo de açúcar, principal causa das enfermidades letais na ilha.

É hora de todos nós, solidários à Revolução Cubana, intensificar a luta contra o bloqueio USA e mobilizar a cooperação internacional com a ilha que ousou conquistar sua independência e soberania frente ao mais poderoso e genocida império da história da humanidade.

Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.