Sobre Educação Política

Quem conhece a tradição da esquerda sabe que seus militantes habitualmente recebiam formação político-ideológica. Havia múltiplos cursos, seminários, fóruns e equipes de educação popular que assessoravam processos formativos em grupos e partidos. Incentivava-se a leitura de vasta bibliografia marxista e da história da esquerda. Popularizava-se como referência histórica os exemplos das revoluções russa, chinesa e cubana.

Em suma, havia um sistema de sentido que impregnava a subjetividade da militância, a ponto de inúmeras vítimas de torturas em mãos de tiranias demonstrarem uma inquebrantável resistência ideológica e preferirem morrer a delatar.

O capitalismo também dissemina seu sistema de sentido, baseado na naturalização da desigualdade social, do racismo, da misoginia, da meritocracia e, sobretudo, do direito à apropriação privada da riqueza. Com a vantagem de o capitalismo ser hegemônico no mundo e possuir ampla rede de deseducação política que incute nas pessoas seus “valores” fundados na prevalência do capital sobre os direitos humanos.

Assim, multidões associam democracia e neoliberalismo, competitividade e liberdade, apropriação da mais-valia e prosperidade. Todo esse aparato ideológico tem por ferramentas desde o “catecismo” capitalista das produções Walt Disney até as poderosas plataformas digitais com seus robôs e algoritmos, agora turbinados pela inteligência artificial.

Foi o Cristianismo que inventou a publicidade e primeiro criou uma ampla rede de educação religiosa. As religiões surgiram há 8 mil anos como influentes sistemas de sentido. Dão respostas às indagações mais pertinentes do ser humano: por que há sofrimento? Quem criou o mundo? O que nos acontece após a morte? Aliadas ao poder, incutiram em seus fiéis a abnegação frente à pobreza e à opressão; o sentimento de culpa quando se violam leis e preceitos estabelecidos pela elite dominante; a esperança de alcançar na transcendência pós-morte a plenitude dos direitos negados nesta vida. Vide René Girard, Paul Ricouer, Max Weber, Feuerbach e outros.

As religiões criaram um sistema eficiente de atrair fiéis, dos quais o corpo hierárquico (padres e pastores) obtém recursos para se manter e ampliar suas estruturas. E o que os fiéis recebem em troca? Nenhum benefício material, ainda que vivam na miséria. Recebem em troca bens simbólicos, um sistema de sentido, uma razão de viver, uma esperança de recompensa divina. Como o marxismo do século XX, as religiões moldam a subjetividade humana.

Eis o ponto: o que, em última instância, motiva o ser humano são as convicções impregnadas em sua subjetividade. Não são as políticas sociais que o beneficiam ou o salário que recebe. Convicta, uma pessoa é capaz de renunciar a seus privilégios de classe para abraçar, em nome de uma causa, as mais duras adversidades (Francisco de Assis, Gandhi, Fidel, Guevara, irmã Dulce). É capaz de sacrificar a própria vida por uma causa, como foi o caso de frei Tito de Alencar Lima, preso em 1969 e reenviado à tortura, durante três dias, em fevereiro de 1970. Para evitar delatar seus companheiros, cortou a artéria do braço para guardar silêncio.

Hoje, como é feita a educação política-ideológica dos militantes de esquerda? O que almejam os partidos progressistas, obter votos ou conquistar um novo modelo de sociedade alternativo ao capitalismo?

É inegável que políticas sociais trazem votos, mas não imprimem convicções. Estas resultam de sistemas de sentido introjetados no coração humano, como crenças religiosas ou princípios ideológicos. Onde as ferramentas da esquerda para promover educação política?

É fato que alguns partidos progressistas e movimentos populares têm suas escolas de militância, como a Florestan Fernandes (MST) e a Paulo Freire (Levante Popular da Juventude). Isso, contudo, não é o mais importante. O mais importante é atingir amplas parcelas da população, e fazê-lo sem viés partidário e retórica ideológica.

Como? O método é o proposto pelo professor Paulo Freire: indutivo, crítico, participativo, cujo protagonismo é exercido pelos educandos e não pelos educadores. As ferramentas, a capilaridade do governo federal, a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), as trincheiras digitais.

Para tanto, é imprescindível que haja sincronia entre a Secretaria Geral da Presidência da República, responsável pelo contato com os movimentos sociais, a Secom (Secretaria de Comunicação Social), responsável pela poderosa máquina de publicidade e informação do governo, o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura.

Há quem alegue não ser papel do Estado promover educação política. Ora, a máquina estatal não é neutra. Sua atual estrutura foi montada para atender aos interesses da classe dominante. Foi manipulando essa estrutura que Bolsonaro sonegou vacinas, disseminou o ódio, liberou a importação e o comércio de armas, consolidou o apoio do fundamentalismo evangélico, nomeou para postos-chaves quem reza por sua cartilha, como o presidente do Banco Central e dois ministros do STF.

No regime democrático, o Estado deve servir, prioritariamente, aos interesses do povo, ao fortalecimento da democracia, à defesa dos direitos humanos.

O governo possui apenas duas pernas de sustentação: o Congresso e a mobilização popular. O Congresso atual é majoritariamente contrário ao governo, e este, seu refém. Lula se sente obrigado a ceder e conceder ao Centrão para levar adiante seu projeto de governo. E não há suficiente mobilização popular em seu apoio. A capacidade de mobilização popular foi perdida pela esquerda, com exceção do MST.

E só há um caminho para recuperá-la: a educação política, como outrora ocorria nos sindicatos, nas pastorais populares, nas ONGs, nos movimentos sociais. Visão crítica e dialética da realidade. Protagonismo popular. Caso contrário, não haveremos de deter o avanço das forças neofascistas e a progressiva morte da democracia.

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.

A desigualdade se aprofunda

O Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) acaba de divulgar relatório no qual assinala que nos últimos anos a renda dos brasileiros que ocupam o topo da pirâmide social cresceu três vezes mais que a renda do restante da população.

O seleto grupo de 0,01% da população (15 mil pessoas), que agrupa os mais ricos do país, viu sua riqueza aumentar de R$ 371 bilhões em 2017 para R$ 830 bilhões em 2022.

Já os ganhos da imensa maioria da população adulta (95%) não avançou mais do que 33%.

No Brasil, os 5% mais ricos da população detêm 40% da renda nacional, segundo a FGV baseada em dados da Receita Federal. E pagam menos impostos que a classe média! Nos últimos cinco anos, os brasileiros tiveram aumento médio de 33% em sua renda. Já para os 5% mais ricos o aumento foi de 51%; para 1% foi de 67%; 0,1%, 87%; e 0,01% (15 mil pessoas) 96%!

Detalhe: no Brasil a renda do capital é menos tributada que a do trabalho, e os mais ricos estão isentos de recolher impostos sobre lucros e dividendos – o que a reforma tributária do governo Lula almeja mudar. Quem ganha mais deve pagar mais.

Quem está entre o 0,1% mais rico? Todos que têm renda mensal acima de R$ 140 mil. Entre o 1% quem tem renda mensal acima de R$ 30 mil. E se situam entre os 5% mais ricos os que têm renda mensal acima de R$ 10 mil.

Diante desse quadro injusto, o governo Lula propõe, na reforma tributária, revogar a isenção sobre dividendos. Até março o Congresso deve receber a proposta, conforme previsto pela emenda constitucional da reforma tributária recentemente promulgada. Mas é possível que, com este Congresso predominantemente conservador, a discussão sobre a reforma se estenda até 2025.

Enquanto isso, o brasileiro se endivida cada vez mais. Já faz três anos que os saques em cadernetas de poupança superam os depósitos. O Banco Central reconhece que as pessoas sacam o dinheiro não para fazer aplicações mais rentáveis, e sim “para gastos mais correntes” (Relatório de Estabilidade Financeira, 2024). Em 2023, os saques foram de R$ 87,819 bilhões e no ano anterior R$ 103,237 bilhões.

Segundo o IBGE, da população brasileira 67,8 milhões são pobres e 12,7 se encontram na extrema pobreza. É como se toda a população da capital paulista sobrevivesse na miséria. A pobreza afeta mais crianças e jovens. De acordo com o IBGE, 49,1% da população entre 0 e 14 anos eram consideradas pobre em 2022. Dessa faixa etária, 10% estavam na extrema pobreza.

O Brasil tinha, em 2022, 10,9 milhões de jovens entre 15 e 29 anos que não estudavam nem trabalhavam, os chamados “nem-nem”. Como fazem para comprar um calçado, entrar no estádio de futebol, tomar um suco?

Na abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos, este ano, a Oxfam declarou que, nos primeiros anos da atual década, se ampliou a desigualdade social no mundo. Os bilionários do planeta estão 3,3 trilhões de dólares mais ricos que em 2020. O patrimônio deles triplicou.

Embora o hemisfério Norte (EUA e Europa) abrigue apenas 21% da população mundial, lá se encontram 74% dos bilionários com 69% da riqueza global.

O mais rico do mundo, Elon Musk, dono do X (ex-Twitter) e da Tesla, fábrica de carros elétricos, teve seu patrimônio aumentado em 737%. Enquanto isso, os 60% mais pobres, que tinham 2,26% da riqueza global, agora têm 2,23%. Pandemia, guerras, crise climática e aumento do custo de vida são os principais fatores da ampliação da desigualdade entre ricos e pobres.

Hoje, metade da riqueza do mundo está em mãos de 1% da população. No Brasil, o 1% mais rico da população concentra 60% da riqueza nacional. A desigualdade se reflete também nas relações de gêneros e étnicas. As mulheres, que são 49% dos habitantes do planeta, detêm, em média, apenas 38,5% da riqueza global. O restante fica com os homens. No Brasil, a renda das famílias brancas supera em 70% a das famílias negras, devido à diferença de acesso à educação e ao emprego.

Segundo a Oxfam, as fortunas bilionárias crescem, a cada dia, 2,7 bilhões de dólares. E 1,7 bilhão de trabalhadores vivem em países onde seus salários estão abaixo do índice de inflação. Em 30 anos, é a primeira vez que aumenta a polaridade entre a riqueza extrema e a pobreza extrema. Enquanto as empresas de energia e de alimentos foram as mais lucrativas, 800 milhões de pessoas vão dormir, todas as noites, com fome.

Uma das causas de tamanha desigualdade é que os ricos praticamente não pagam impostos, em especial sobre patrimônio e heranças. De cada dólar da receita tributária, apenas 4 centavos são de imposto. Nos países que não aplicam imposto sobre herança, 5 trilhões de dólares são repassados aos herdeiros – quantia que supera a soma do PIB de todos os países da África.

Há que taxar os mais ricos: 2% sobre a fortuna dos milionários; 3% sobre quem possui mais de 50 milhões de dólares; e 5% sobre os bilionários, sugere a Oxfam. Isso faria os governos arrecadarem 1,7 bilhão de dólares anualmente e retirar 2 bilhões de pessoas da pobreza.

Mas qual bilionário pensa senão em si mesmo e em seus herdeiros? No máximo dão migalhas a alguma obra filantrópica. Sabem que o bolso é a parte mais sensível do corpo humano. No entanto, ignoram que caixão não tem gavetas…

No ritmo atual, o mundo levará 230 anos para erradicar a pobreza. E em apenas 10 anos teremos o primeiro trilionário. Sim, uma pessoa com fortuna de 1 trilhão de dólares! Se os cinco homens mais ricos do mundo somassem suas fortunas e cada um gastasse 1 milhão de dólares por dia, levariam 476 anos para ficar com o bolso a zero, afirma a Oxfam.

Dos 8 bilhões de habitantes do planeta, 6,1 bilhões se encontram na pobreza. Isso é justo? Prova o êxito ou o fracasso do capitalismo?

Frei Betto é escritor, autor do romance sobre a Amazônia, “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Suicídio e Redes Digitais

Duas semanas antes do Natal, Flávio chegou da faculdade, em São Paulo, jantou com os pais e se trancou no quarto. Às 2h30 da madrugada, os pais foram acordados pelo interfone do apartamento. O porteiro avisou que subiria para falar com eles. Julgaram se tratar de assalto. Os ladrões teriam rendido o funcionário para obrigar os moradores a abrir as portas. Ao ouvir a campainha, o casal espiou pelo olho mágico. O porteiro estava rodeado de policiais. Flávio tinha se atirado do 10º andar. Completara 20 anos e era filho único.

No bilhete que deixou, Flávio atribuiu sua decisão à injusta acusação recebida do coletivo feminista da faculdade. Incluíram seu nome na lista de “abusadores”. Logo depois apagaram. Mas a indignação já havia impelido o rapaz ao gesto mortal de protesto.

Na missa de sétimo dia, comparei o suicídio de Flávio ao do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017. Acusado injustamente de corrupto, não suportou a calúnia. Como ele, Flávio foi vítima de assassinato digital.

Lembrei de frei Tito de Alencar Lima, meu confrade na Ordem Dominicana, que também tirou a vida, em agosto de 1974. Cruelmente torturado pela ditadura militar ao ser preso, em 1969, em janeiro de 1971 os sequestradores do embaixador suíço exigiram a libertação de 70 presos, entre eles Tito. Banido do país, se exilou na França.

As sequelas das sevícias se manifestavam em seu desequilíbrio mental. “É preferível morrer que perder a vida”, escreveu em sua Bíblia. Segundo seu psiquiatra, Tito se matou para evitar a loucura. Tomou a vida nas próprias mãos.

“Buscou, do outro lado da vida, a unidade que havia perdido deste lado”, declarou o cardeal Arns, arcebispo de São Paulo, na missa na catedral da Sé que, em 1984, acolheu os restos mortais do frade morto aos 28 anos.

Outrora a Igreja Católica excluía os suicidas do direito a liturgias fúnebres, como ainda o fazem outras instituições religiosas. Tal atitude decorria de interpretação equivocada do suicídio de Judas Iscariotes. Ora, Judas não foi execrado por se matar, e sim por ter traído Jesus.

Hoje a Igreja Católica confia na misericórdia de Deus, do qual somos todos filhos e filhas, e na salvação dos que atentaram contra a própria vida. Inclusive Jesus experimentou a angústia no caminho da cruz: “Minha alma está triste até a morte” (Mateus 26,38).

Conheci Flávio em uma viagem ao exterior e disse a seus pais que ele era o filho que eu gostaria de ter tido. Não havia sido batizado, mas tinha a intenção de fazê-lo. Segundo a teologia cristã, Flávio recebeu o “batismo de desejo”. Teve também o seu batismo de sangue.

Todos nós, sem exceção, nascemos em Deus. Como afirmou o apóstolo Paulo, “Nele vivemos, nos movemos e existimos.” (Atos dos Apóstolos17,28). “Deus é amor”, diz a carta de João no Novo Testamento (4,8). Um Deus amoroso não rejeita seus filhos e filhas. Nem cria um lugar de terríveis sofrimentos eternos conhecido como inferno. Após a nossa transvivenciação, a vida é terna.

Flávio foi vítima das redes digitais, do cyberbullying. Elas são úteis e necessárias, como facas de cozinha. E igualmente perigosas, porque podem assassinar reputações, induzir à violência, exacerbar o individualismo e o narcisismo.

Assim como somos educados a não usar facas contra nossos desafetos, nem o carro para atropelá-los, é preciso aprimorar a regulação das redes para evitar a “fakecracia”, com suas calúnias, perjúrios e difamações impunes e graves consequências à honra das pessoas. A liberdade de expressão, como a de locomoção, exige limites. Não posso trafegar de carro sobre a calçada, nem entrar na casa do vizinho sem pedir licença ou ser convidado. Do mesmo modo, ninguém tem o direito de propagar calúnias.

Flávio se retirou desta vida em defesa de sua dignidade. Colocou um ponto final em sua íntegra trajetória.

Parafraseando Italo Calvino, Flávio preferiu ausentar-se para que olhos alheios não o encarassem como um homem cuja moral foi partida ao meio.

FREI BETTO é escritor, autor de “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.

Lancellotti, Cristão Exemplar

Um vereador de São Paulo, diplomado em ódio e a cata de votos neste ano eleitoral, decidiu abrir uma CPI para investigar o padre Júlio Lancellotti, que trabalha há anos com o povo da rua. Acuado pela repercussão na mídia e tantas manifestações de apoio ao sacerdote, o vereador alega que seu objetivo é investigar as ONGs que atuam junto aos que se aglomeram na Cracolândia, no centro de São Paulo.

Desconfio que o vereador deu um tiro no pé. Responsável pela Pastoral do Povo da Rua, Lancellotti recebeu, frente às acusações descabidas, apoio do cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, e de inúmeras personalidades do Brasil e do exterior. Aliás, o líder do partido do vereador na Câmara Municipal, Fábio Riva, declarou que a convocação do padre “extrapola” o pedido inicial.

O presidente Lula disse que “Graças a Deus tem figuras como o padre Júlio Lancellotti na capital de São Paulo, que há muitos e muitos anos dedica a sua vida a tentar dar um pouco de dignidade, respeito e cidadania a pessoas em situação de rua. Que dedica sua vida a seguir o exemplo de Jesus. Seu trabalho e da arquidiocese de São Paulo são essenciais para dar algum amparo a quem mais precisa.”

Júlio é exemplo raro de sacerdote. Enquanto boa safra de padres formados ao longo dos 34 anos de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI está preocupada com status, minudências litúrgicas, se exibir em público em vestes sacerdotais e galgar degraus do carreirismo eclesiástico, Júlio coloca em risco sua vida para atender os mais excluídos, aqueles que são vistos nas ruas como “leprosos”, que cheiram mal e devem ser evitados e repudiados. Caminha nos passos de Jesus.

Júlio já sofreu todo tipo de ataques, assim como aconteceu a Jesus, acusado de endemoniado (Mateus 12,24), louco (Marcos 3,21), blasfemo (Lucas 5,21), subversivo (Marcos27,1) e herege (Mateus 26,65). Destemido, o pastor não teme defender o povo da rua dos abusos policiais, acolhê-lo em sua igreja, denunciar as obras públicas que visam a impedir que se possa buscar abrigo sob viadutos ou em parques.

Júlio fez o mesmo com crianças de rua e internos da Febem. E não agia como quem se interessava em “catequizá-los”. Sabe muito bem, graças à sua boa formação teológica, que essa gente excluída expressa de modo especial a face viva de Jesus, que com eles se identificou (Mateus 25, 31-44). Quer apenas que se sintam pessoas dotadas de dignidade e direitos, ainda que a nossa sociedade, fundada na desigualdade econômica, os tenha escorraçado para as calçadas da mendicância e os becos do desamparo.

Quem levaria para casa uma criança nascida com Aids e abandonada pela família? Padre Júlio já levou centenas, como sou testemunha. O vereador misantropo não viu as duas unidades da Casa Vida em São Paulo, que visitei com frequência. Ali as crianças recebiam cuidados médicos e terapêuticos; eram educadas no asseio e escolarizadas; aprendiam a ter autoestima e ser felizes. Cego, o vereador não enxerga nada disso. Nem mesmo este detalhe: cerca de 90 crianças, mesmo virtualmente condenadas à morte por uma enfermidade incurável, foram adotadas por famílias europeias.

Padre Júlio opera milagres: casais que, impossibilitados de procriar, escolheram adotar uma criança filha da miséria e contaminada pelo vírus HIV. Graças à evangélica dedicação do pastor das ruas, cujo testemunho enobrece a espécie humana.

Ele mereceria, caso existisse, o Prêmio Nobel da Solidariedade. E todo o nosso apoio.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.

Deleite do Espírito

Finda o ano, não a vida. Para quem recebe salários extras e dispõe de privilégios, paira o risco da voracidade: ceias pantagruélicas, muita cerveja na praia, o churrasco crepitando no quintal, uma tristeza d’alma quando o corpo entorpece atolado em comidas, como se o lazer se reduzisse a um exercício compulsivo de ingestão e congestão.

Somos exaustivamente iguais! Nesta virada do ano, pilotamos transbordantes carrinhos de supermercado, assistimos na TV a retrospectiva dos últimos doze meses, tostamos a pele junto ao mar ou à beira da piscina, e acompanhamos a afoita alegria dos que foram eleitos para o seleto clube da fama, enquanto os preteridos se esforçaram para disfarçar ressentimentos.

Trafegamos sobre o fio da navalha. De um lado, a qualidade total que, niponicamente, pretende ensinar-nos a trabalhar mais por menos, como a acompanhar o ritmo das inovações tecnológicas. De seres humanos somos gentilmente reduzidos a peças de engrenagem. Já não se trata apenas de vestir a camisa da empresa, mas nascer com a pele tatuada com o seu logotipo.

De outro, a resistência a tanta pressão consumista, na busca de alternativas para melhor qualidade de vida. Alimentação sadia, exercícios aeróbicos, leitura dos clássicos, meditação, livrar-se de toda tentação de ostentar bens e participação de alguma causa humanitária. Enquanto o sistema nos puxa pelo lado de fora – modas, status, funções de poder etc. – algo mais profundo em nós mesmos nos induz ao lado de dentro: resgatar a capacidade de amar, reaprender a ternura, fitar o semelhante em sua suprema dignidade humana.

Ao contrário dos orientais, somos uma civilização ruidosa. Falamos em cascata, passamos horas ao telefone (executivo é um celular no qual um homem se dependura pela orelha), mantemos ligados a TV, o rádio, o som, como se, perante o silêncio, temêssemos mirar a própria face interior. Claro, o mercado não oferece silêncio porque haveria queda de consumo. Malha-se o corpo, não o espírito.

No entanto, a vida ensina que a felicidade jorra da intimidade. Não há outra fonte. Pode haver prazer na apropriação, alegria no encontro, júbilo numa boa surpresa. Porém, felicidade, como profundo deleite do espírito, só na intimidade amorosa, na oração sem imagens e palavras, na contemplação do belo, no acolhimento do ser querido, na entrega ao mistério, na eternização subjetiva de um momento, na poesia de um toque, um gesto, uma palavra que traz em si plenitude. Ausência de desejos; basta deixar-se sorver pelo esplendor de uma paz que ora vem como brisa suave, ora sopra como vento forte e avassalador.

Tivéssemos um pouco mais de sabedoria, faríamos do réveillon um balanço pessoal, contração e descontração, sístole e diástole, na alegria do novo ano que irrompe e dos novos homens e mulheres que se propõem a não sonegar sentimentos, não blefar com o próximo, não discriminar subalternos, não se omitir da solidariedade às causas sociais. Quem sabe trocar a festa pela visita aos enfermos, o champanhe por uma cesta básica à família da faxineira, os fogos de artifício por uma prece em família. Por que seguir os modelitos padronizados pela mídia hedonista, se isso não nos enriquece como seres humanos?

Renascer a partir da primeira semana do ano. Para nascer de novo, como disse Jesus a Nicodemos, não é preciso retornar ao ventre materno. Basta dar ouvidos à própria intuição, agir com humildade e sintonizar-se com o Transcendente. Na radical disposição de, daqui pra frente, não se deixar consumir como um mingau comido pelas bordas.

Frei Betto é escritor, autor de “Sinfonia Universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin” (Vozes), entre outros livros.