40 anos de MST

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) teve origem em 1982, quando 30 trabalhadores rurais e 22 agentes pastorais vinculados à CPT (Comissão Pastoral da Terra) se reuniram em Goiânia.

A ditadura militar entrava em declínio devido ao fracasso econômico e o crescente aumento da mobilização de movimentos populares, como as greves metalúrgicas do ABC paulista. O sindicalismo combativo renascia, o PT havia sido fundado dois anos antes, os exilados retornavam, a redemocratização do país batia à porta.

As lutas camponesas pelo acesso à terra ressurgiam e a questão agrária ganhava nova configuração com a mecanização do campo, o uso excessivo de agrotóxicos, subsídios estatais e desonerações tributárias para a expansão do latifúndio centrado na monocultura.  Em algumas regiões, desde 1979 ocorriam ocupações de terra, apoiadas pela CPT. Constatou-se a importância de um movimento autônomo, desvinculado das estruturas da Igreja Católica, articular as lutas pela terra. Veio a acontecer dois anos depois, em 1984, quando 92 líderes camponeses decidiram criar o MST.

Doze anos depois, em 1996, o MST já organizado em todas as regiões do país, conquistava terras para milhares de famílias, e seus acampamentos e assentamentos recebiam apoios de dentro e de fora do Brasil. Naquele ano, se tornou realmente conhecido ao organizar uma marcha camponesa no Pará, rumo a Belém, para exigir uma audiência com o governador Almir Gabriel (PTB). Em Eldorado dos Carajás a manifestação foi cercada por policiais e pistoleiros contratados por grandes empresas agropecuárias responsáveis por grilagem, desmatamento, exploração mineral e contaminação das águas. Um jovem de 19 anos, Oziel Alves, que gritava palavras de ordem para animar seus companheiros, se viu cercado pelos agressores que o obrigaram a ficar de joelhos e o desafiaram a repetir o que dissera ao microfone. Ao gritar “Viva o MST” tombou morto pela fuzilaria que ceifou a vida de outros 20 manifestantes.

O massacre, em registro fotográfico de Sebastião Salgado, ganhou repercussão internacional. As fotos, exibidas em vários países pela exposição Terra, mereceram trilha sonora de Chico Buarque e texto de José Saramago.

Em resposta, o MST promoveu uma marcha nacional rumo a Brasília que mobilizou, de início, 1.300 manifestantes. O governo FHC declarou que eles jamais chegariam à Praça dos Três Poderes. Em 17 de abril de 1997, ao completar um ano do massacre, os sem-terra entraram na capital federal acompanhados por 100 mil pessoas! Desde então o movimento se tornou importante protagonista na conjuntura brasileira.

A segunda grande marcha nacional ocorreu em 2005, no primeiro mandato do governo Lula, para reivindicar um Plano Nacional de Reforma Agrária. Quinze mil manifestantes caminharam 230 km ao longo de 15 dias, de Goiânia a Brasília, abrigados à noite em barracas, utilizando seus próprios banheiros, recebendo alimentação de suas cozinhas comunitárias. Havia até estruturas para assegurar escolas e lazer às crianças que acompanhavam seus pais. O coronel Jarbas Passarinho chegou a declarar que no Brasil apenas duas instituições eram capazes de tão admirável organização, o Exército e o MST. A Escola Superior de Guerra convidou líderes do movimento para, em palestra, explicar como obtiveram aquele grau de organização popular.

Ao longo dessas quatro décadas o MST criou o espaço próprio de formação de sua militância, a Escola Florestan Fernandes, em Guararema (SP); assentou 450 mil famílias que conquistaram terras; organizou 185 cooperativas de produção, comercialização e prestação de serviços, além de 120 agroindústrias próprias; e fez surgir 1.900 associações de camponeses. Hoje, o movimento se destaca pela produção agroecológica e há mais de dez anos é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.

Apesar do vigor do MST, o Brasil ainda ostenta o vergonhoso título de abrigar a segunda maior concentração de terras do planeta, com 42,5% das propriedades sob controle de menos de 1% dos proprietários (DIEESE, 2011). E mais de 90 mil trabalhadores sem-terra continuam acampados, muitos há anos, vivendo debaixo de lonas pretas, próximos a grandes latifúndios.

A Constituição de 1988, no artigo 184, estabelece que as propriedades agrícolas precisam cumprir função social – devem ser produtivas e respeitar direitos trabalhistas e ambientais. Caso não cumpram esses critérios, podem ser desapropriadas para a reforma agrária pelo Estado, responsável por indenizar o proprietário e assentar as famílias sem-terra naquelas áreas, que passam a ser propriedade pública.

O movimento já faz a sua parte. Resta ao governo agilizar a dele.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus rebelde – Mateus, o evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros.

São pássaros e não voam

Imagino a cabeça dos que viviam entre os séculos XIV e XVI diante de tantas mudanças de paradigmas! Testemunharam, literalmente, a queda do céu. A fé, sustentáculo do período medieval, foi desbancada pelo advento da ciência. As revoadas de anjos deram lugar às explorações marítimas. Ptolomeu, ídolo dos negacionistas, cedeu o proscênio para Copérnico e Galileu.

Contudo, o otimismo voltairiano com a irrupção da modernidade, apoiada em suas filhas diletas, a ciência e a tecnologia, não se confirmou. À servidão do feudalismo sucedeu-se a opressão do capitalismo. Os prognósticos do Iluminismo não se confirmaram: malgrado a fé ateísta de Nietzsche, as religiões se robusteceram na pós-modernidade e o dogma da imaculada concepção da neutralidade científica esvaneceu-se nos cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki.

O capital tornou-se senhor do mundo. É o deus Mamon ao qual todos devemos adoração. Nada se sobrepõe a ele, sejam leis, direitos humanos ou delimitações fronteiriças. Criou um Sansão que desbanca todos os filisteus e ainda não se deparou com um Davi capaz de derrotá-lo. 

Sua poderosa cabeleira são as redes digitais. Elas provocam a mesma ruptura epistemológica operada no advento da modernidade pela filosofia de Descartes, a física de Newton e a literatura de Cervantes. E, na pós-modernidade, pela física quântica, a morte das grandes narrativas e a descoberta do inconsciente. 

O surgimento do motor elétrico no século XIX deu origem a três gerações de equipamentos comunicacionais: o rádio, que se escuta; a TV, que se mira; e as redes digitais, com as quais interagimos. Enquanto somos objetos passivos diante do rádio, da TV, do cinema e da mídia impressa, nas ferramentas digitais nos sentimos protagonistas. Temos a sensação de ter alcançado o ápice da liberdade de expressão. Findou o consenso da maioria ditado pela hegemonia da minoria. Agora cada um é rei ou rainha em sua bolha. Voltamos a nos tribalizar. Sem nenhuma consciência de que, de fato, somos manipulados por uma sofisticada tecnologia que nos introjeta um chip virtual e nos induz a nos demitir da condição de cidadãos para nos reduzir à condição de meros consumidores. 

Quais as consequências de tão abrupta revolução epistêmica? Crianças e jovens têm, hoje, duplo espaço de (de)formação: o institucional (família, escola, igreja etc.) e o digital (Google, TikTok, Instagram, X, Facebook, YouTube etc.). Como são espaços antagônicos, instala-se o conflito na subjetividade. A tendência é o digital prevalecer sobre o institucional. No digital cada um encontra a sua tribo, que fala a mesma linguagem onomatopaica. E cria seus próprios valores sem dar ouvidos à voz autoritária de pais, professores, ministros religiosos e políticos. Ali cada usuário é “primus inter pares”, e não filho, aluno, fiel ou eleitor. 

Há, contudo, um grave problema. Imagine fazer uma viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro, por terra, sem que haja estradas, mapas, indicações e veículos. A vida é feita de paradigmas, referências, valores e objetivos. Quando nada disso tem solidez, pois vivemos na “sociedade líquida” (Bauman) prevista por Marx (“tudo que é sólido desmancha no ar”), sentimo-nos perdidos. Porque o tempo não espera. E quem não conhece o caminho fica sem horizonte de futuro. Cai no redemoinho do aqui-e-agora, sem que a vida encontre no tempo a sua linha de historicidade. 

Daí o número de jovens que se recusam a amadurecer. Desprovidos de linguagem lógica, reféns do precário dialeto telegráfico das redes, prisioneiros de seus joguinhos virtuais, ficam à deriva no mar da vida, sem bússola. São pássaros e não sabem voar. Adultos, e ainda abrigados sob o teto familiar, parecem náufragos agarrados aos escombros de uma era que desabou, pois não aprenderam a nadar. Gritam por socorro! Sequer sabem o que é utopia – que poderia salvá-los desse redemoinho que, como um ralo de pia, suga-os para a vida shoppingcentrada e permanentemente monitorada pelas redes digitais. Muitos sofrem de nomofobia, dependência do celular. Fácil saber se você já contraiu essa doença: ao se deitar para dormir desliga ou não o celular?

Ignoro o que dirá o futuro dessa primeira geração que passou da era analógica à digital. Porém, os sintomas não são alvissareiros: ódio à flor da pele; reaparecimento da direita neonazista; economia produtiva suplantada pela especulativa; aumento das formas criminosas de discriminação (homofobia, xenofobia, racismo, misoginia etc.). Entram em cena o negacionismo, o cancelamento e a polarização. Esgarçam-se os valores éticos, o ecocídio se amplia, os direitos humanos são ridicularizados. 

Enquanto miramos, perplexos, o dilúvio que afeta o Rio Grande do Sul, não percebemos que estamos à beira do abismo. Não há uma ponte chamada utopia que nos conduza à terra firme. Assim como a natureza, que em nada necessita de nós, e no seu percurso extinguiu várias espécies, como os dinossauros, agora somos nós mesmos, seres humanos, a nos aniquilar, como o ouroboro, a serpente que morde o próprio rabo. 

Ainda há tempo de evitar o pior, como incentivar o pensamento crítico, introduzir o raciocínio dialético no lugar do analítico e, sobretudo, regular as redes e suas plataformas.

Frei Betto é escritor, autor do romance sobre a Amazônia “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

Entrevista Literária de José Honório Rodrigues (Segunda Parte)

FB: Quando vejo o Planalto negociando com o Congresso dominado pela oposição ao executivo, pergunto ao senhor: o brasileiro sempre teve este espírito de conciliação?

JHR: O espírito de conciliação tem origem antiga. Data dos primeiros contatos luso-indígenas. Os portugueses pensaram, a princípio, como escreveu Caminha em sua saborosa Carta, que “a esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos”. E começaram, logo nos primeiros dias, aquele método de dissolução cultural com que pensavam amansá-los. Às resistências opostas uma terrível violência ensinaria que o poder é poder e que Portugal representava na época, ao abrir a Fronteira Mundial, o maior poder agressor mundial. O medo, que gera a violência e a agressão, já estava em Caminha, ao dizer que “os índios andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles”. Uma desafeição geral contra a terra e a indiada dominava a gente portuguesa; um ódio incontido contra o gentio levava-o a praticar as maiores iniquidades, como as que praticaram Mem de Sá e Jerônimo de Albuquerque ao mandarem colocar, à boca de bombardas, feitos em pedaços, os índios que mataram cristãos. As guerras contra tabajaras, potiguaras, aimorés, tamoios, caetés, contra índios de todo o Brasil, mostram o aspecto demoníaco das horas de vitória do voluntarioso, o esmagamento do indígena e a dureza portuguesa.

FB: Prevalece no inconsciente coletivo a imagem de que o brasileiro é pacífico, conciliador, avesso à violência. O senhor concorda?

JHR: Se, de modo geral, prevalece da parte do povo o espírito de conciliação, que se manifesta na unidade linguística, na mestiçagem, na tolerância racial e nas acomodações que atenuam os antagonismos sociais, seria falso sustentar que seu comportamento foi sempre conformista. Lutas sociais sem fim e com grande derramamento de sangue mostram as divisões inconciliáveis e os comportamentos inconformistas. As lutas sangrentas pela posse da terra, pela expulsão indígena, de latifundiários e destes com sertanejos, fizeram correr muito sangue. O crime no sertão, onde reinou sempre mais respeito pela propriedade que pela vida, as lutas de famílias oligárquicas, mancharam de sangue os alicerces sociais, e com sangue se foi formando a consciência política. Nem foram menores a violência, a crueza e o sangue das guerras contra quilombos negros, mineiros, baianos, cariocas e pernambucanos. O de Palmares suportou 17 expedições punitivas, na última das quais, em 1694, foi cercado por 3.000 homens e custou inumeráveis vítimas e muito sangue. Essas explosões de sangue mostram o inconformismo do povo, o radicalismo da liderança popular e a violência e crueza da repressão pela minoria dominante. A fase colonial não valida a tese da tradição política pacífica, que uma historiografia oficial vem sustentando para abater os impulsos de revolta e para satisfazer as esperanças da minoria dominadora.

FB: Significa então que nossos colonizadores foram implacáveis na violência?

JHR: O que fez a liderança colonial? Não deu ao povo sequer os benefícios da saúde e da educação, o que levou Antônio Vieira a dizer: “Não sei qual lhe faz maior mal ao Brasil, se a enfermidade, se as trevas”.

FB: Perdura também a ideia de que a nossa Independência, em 1822, foi uma dádiva dos colonizadores portugueses. Isso procede?

JHR: A historiografia latino-americana e mesmo a norte-americana não falam de nossa Guerra de Independência, como se a nossa libertação fosse uma dádiva portuguesa. Se Bolivar, em 1824, chegou a dirigir 9.000 homens entre colombianos e peruanos; se San Martin, em 1817, contou com 8.000 homens; na guerra da Independência da Bahia as tropas brasileiras atingiram, em 1823, 11.000 homens. No Maranhão, mais de 8.000 combatentes lutaram pela Independência. Houve aqui, como em toda a América, grande derramamento de sangue.

Nota do autor: José Honório Rodrigues (1913-1987) foi historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Todas as palavras acima foram literalmente extraídas do capítulo 1 de seu livro “Conciliação e Reforma no Brasil”, publicado em 1965 pela Civilização Brasileira.

Frei Betto é escritor, autor de “Minas do Ouro” (Rocco), que descreve 500 anos da história de Minas Gerais, entre outros livros.

No Gabinete do Presidente

Voltei a Brasília na terça, 7 de maio, para uma atividade de capacitação em pedagogia de agentes qualificados dos Institutos Federais, que participam de programa em convênio com a Secretaria de Economia Solidária, dirigida por meu fraterno amigo Gilberto Carvalho.

À noite, no Espaço Itaú de Cinema, houve apresentação do documentário “A cabeça pensa onde os pés pisam – Frei Betto e a educação popular”, dirigido por Evanize Sydow e Américo Freire. Na sala repleta se encontravam o ministro Flávio Dino, do STF; o embaixador de Cuba, Adolfo Curbelo; o senador Randolfe Rodrigues; Gilberto Carvalho; e vários deputados federais, entre inúmeros amigos e amigas.

Na manhã seguinte, 8/5, Lula me recebeu às 9h em seu gabinete. Não nos víamos desde setembro. Está bem-disposto, embora preocupado com a tragédia socioambiental que aflige a população do Rio Grande do Sul, em socorro da qual o governo federal não tem poupado esforços e recursos.

Lembrei-lhe do Grupo do Mé. Nas décadas de 1980 e 1990, quando ele atuava no movimento sindical, reuníamos periodicamente um grupo de líderes sindicais, entre os quais Olívio Dutra, Jacó Bittar, Devanir Ribeiro, Djalma Bom, e também Luiz Eduardo Greenhalgh e Paulo Vannuchi, para fazer um balanço crítico de nossa militância. Foi a deixa para eu me sentir à vontade ali no gabinete presidencial e expressar minha avaliação da conjuntura.

Referi-me ao fiasco da concentração promovida na capital paulista pelas centrais sindicais no 1º de Maio. Lula não disfarçou sua decepção. A seu ver, as centrais perderam a capacidade de mobilizar os trabalhadores, inclusive pelas vias digitais. É inexpressivo o número de trabalhadores que seguem suas lideranças sindicais nas redes. Contudo, elogiou o desemprenho de Moisés Selerges à frente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Ressaltou que o momento exige uma sintonia mais fina entre governo e movimentos sociais. São vários os ministérios e as secretarias voltados a este objetivo, como Secretaria Geral, Direitos Humanos, Mulher, Povos Indígenas, Igualdade Racial etc. A orquestra precisa estar mais afinada.

Salientei que a comunicação e a mobilização requerem ações articuladas entre os ministérios, Secretaria Geral, Secom, Educação e Cultura.

Abordei ainda a cooperação do Brasil – que figura entre os cinco maiores produtores de alimentos do mundo – com países que enfrentam escassez alimentar. Lula não apenas concordou, como acionou o telefone, à minha frente, para determinar providências efetivas.

Contei que nas bases populares, meu campo prioritário de trabalho, sempre indago que avaliação fazem do governo federal. Em geral, ressaltam que Lula governa com duas tornozeleiras eletrônicas, uma em cada perna: o Banco Central, que insiste em favorecer a economia especulativa em detrimento da produtiva, e o Congresso Nacional, de tendência majoritariamente conservadora.

Frisam ainda que as imagens predominantes do governo são, em 2023, as viagens de Lula ao exterior e, agora, sua presença junto à população gaúcha. Faltam mais ampla e didática informação sobre os avanços efetivos do governo, como a reforma tributária e o aumento do poder aquisitivo da população, bem como o atendimento à saúde. Em 2023, foram tirados do mapa da fome 13 milhões de brasileiros.

Lula falou sobre sua próxima viagem ao Chile e a preocupação com o estado de saúde de nosso amigo José Mujica, ex-presidente do Uruguai. Esta uma característica de Lula: apesar dos múltiplos fatores inquietantes das conjunturas nacional e internacional, está sempre atento e interessado em seus amigos e familiares.

Ao final, rogamos as bênçãos de Deus diante da bela imagem do Cristo barroco que Lula reintroduziu na parede de seu gabinete.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus rebelde” (Vozes), entre outros livros.

Entrevista Literária de José Honório Rodrigues (Primeira Parte)

FB: Muitos julgam que o pensamento liberal é o alicerce de nossa frágil democracia. O senhor concorda?

JHR: Foi esse o papel dos liberais na história brasileira: derrotados nas urnas e afastados do poder, foram se tornando, além de indignados, intolerantes; e construíram uma concepção conspiratória da História, que considerava indispensável a intervenção do ódio, da intriga, da impiedade, do ressentimento, da intolerância, da intransigência, da indignação para o sucesso inesperado e imprevisto, tal como sucedeu em várias partes, de suas forças minoritárias. A concepção conspiratória da História tem, no Brasil, origens liberais.

FB: Pode detalhar como é essa atitude conspiratória?

JHR: As conspirações visam a interromper o processo normal da vitória majoritária, especialmente depois das derrotas nas urnas, cujo veredito jamais aceitam, culpando o povo de imaturidade pela escolha. O processo histórico brasileiro tem sido anormalizado pela intervenção de forças minoritárias, especialmente depois do agravamento do desequilíbrio entre as aspirações brasileiras e as instituições arcaicas.

FB: O brasileiro não é um povo conciliador?

JHR: A política de conciliação foi quase sempre uma mistificação e serviu para tapear o curso do processo histórico.

FB: Porém, há quem julgue o nosso processo histórico isento de revoltas.

JHR: Seria falso, ainda assim, dizer-se que nossa História desconhece o processo sangrento, pois o sofrimento, a miséria e a fome nos acompanham há séculos. Todos estes elementos têm sido obscurecidos por uma historiografia a serviço das elites e pelo grande desconhecimento de nossa formação. Uma historiografia não deve falar em nome da Tradição, mas da Verdade.

FB: O senhor acredita que a solução para o Brasil estaria na forma de governo?

JHR: Creio ser um equívoco pensar que o mais grave problema brasileiro se manifesta nas chamadas crises sucessórias, o que leva observadores menos atentos a pensarem na reforma do Poder Executivo, como se Monarquia ou República, Presidencialismo ou Parlamentarismo fossem realmente capazes de evitar a instabilidade. Há uma relação de comportamento funcional entre a estabilidade econômica-social e a instabilidade política, e esta só desaparecerá quando aquela ajustar-se às exigências da vida brasileira.

FB: Concorda que há uma desconexão entre a classe política e a sociedade?

JHR: O dissídio entre o Poder e a Sociedade é outra tese que merece atenção. Depois de tê-la escrito foi que, relendo Alberto Torres, vi que ele afirmava isso mesmo, ao escrever que “a separação da política e da vida social atingiu, em nossa Pátria, o máximo da distância” e, logo em seguida, que “a política é, de alto a baixo, um mecanismo alheio à sociedade, perturbador da ordem, contrário ao seu progresso”. O dissídio se manifesta especialmente na falta de integração social, pois praticamente dois terços do povo brasileiro são marginalizados, vivem na periferia do poder, nada tem a ver com ele, não participam de sua constituição, não têm vida cívica e sofrem do mais completo desinteresse da parte dos poderes.

FB: O senhor considera importante nova reforma eleitoral?

JHR: As reforminhas eleitorais foram sempre a via inerte da caminhada brasileira. Nenhuma reforma foi completa e a própria Abolição não se concluiu com a reforma agrária. Os remendos dos fósseis são culpados da ressurreição dos problemas. O processo histórico brasileiro compõe-se mais de instantes de retardamento que de aceleração, e a liderança tem sido mais dominadora que criadora. A bandeira da reforma, da renovação, da modernização, é uma bandeira nacional, não pertence a grupos, deve romper as barreiras sociais e associar todos à missão comum, evitando as interrupções caóticas e fazendo voltar o poder à sua legitimidade através do voto popular.

Nota do autor: José Honório Rodrigues (1913-1987) foi historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Todas as palavras acima foram literalmente extraídas da Introdução de seu livro “Conciliação e Reforma no Brasil”, publicado em 1965 pela Civilização Brasileira.

Frei Betto é escritor, autor de “Minas do Ouro” (Rocco), que descreve 500 anos da história de Minas Gerais, entre outros livros.