O cenário que o novo papa – Robert Francis Prevost – herda está longe de ser tranquilo. A Igreja Católica enfrenta inúmeros desafios internos e externos que exigirão habilidade diplomática, coragem pastoral e capacidade de diálogo com o atribulado mundo atual.
Sob o pontificado de Francisco, aumentaram as tensões entre setores conservadores e progressistas dentro da Igreja. A polarização crescente no mundo ecoa na barca de Pedro. Críticas ao seu estilo pastoral e às reformas vieram de cardeais influentes, grupos leigos e teólogos. Essa divisão reflete a diversidade política e cultural que marca a conjuntura global. O papa Leão XIV terá a difícil missão de preservar a unidade da Igreja sem sufocar a pluralidade de expressões católicas.
O fato de adotar o nome Leão na sequência de Leão XIII (1810-1903), o papa da encíclica “Rerum Novarum”, a primeira a abordar o tema das relações trabalhistas, demonstra a sua sensibilidade para as questões sociais. Há que considerar também que Prevost é agostiniano, discípulo de Santo Agostinho, um filósofo pagão que se converteu à fé cristã e se tornou um pilar da teologia. Boa parte de sua atividade sacerdotal e episcopal foi no Peru, o que nos permite considerá-lo o segundo papa latino-americano.
No entanto, a escassez de vocações sacerdotais, sobretudo na Europa e no continente americano, ameaça a sustentabilidade pastoral da Igreja em muitos lugares. Ao mesmo tempo, o envelhecimento do clero e a sobrecarga das funções pastorais dificultam a presença efetiva da Igreja nas inúmeras comunidades. Isso reabre os debates sobre o celibato facultativo, a ordenação de mulheres, o direito dos casais homoafetivos ao sacramento do matrimônio.
Após doze anos de pontificado, o papa Francisco deixou um legado marcante na Igreja Católica e na conjuntura mundial, tanto por sua abordagem pastoral quanto por suas posições diante dos problemas contemporâneos. Primeiro papa latino-americano, primeiro jesuíta no cargo e primeiro a adotar o nome Francisco — em referência a São Francisco de Assis —, Jorge Mario Bergoglio conduziu a Igreja por tempos turbulentos, marcados por crises internas e profundas transformações sociais, políticas e ambientais.
Desde sua eleição em 2013, Francisco buscou uma Igreja mais próxima dos excluídos e do mundo real. A opção preferencial pelos pobres, o cuidado com a Criação, a crítica à cultura do descarte e a defesa dos migrantes foram marcas registradas. Encíclicas como “Laudato Si’” (2015), sobre a ecologia integral, e “Fratelli Tutti” (2020), sobre a fraternidade universal, revelaram um papa com sensibilidade global e consciência dos desafios éticos da contemporaneidade.
Na Igreja, promoveu reformas significativas na Cúria Romana, buscou maior transparência financeira, puniu um cardeal corrupto, simplificou estruturas administrativas. Adotou uma postura mais pastoral em temas sensíveis, como a homossexualidade, os divorciados recasados e o papel das mulheres na Igreja, embora mantendo a doutrina tradicional em muitos aspectos. Seu estilo direto e despojado, aliado ao compromisso com a misericórdia, revitalizou a imagem da Igreja para muitos fiéis.
Apesar dos esforços de Francisco para valorizar a presença feminina na Igreja, as demandas por maior protagonismo das mulheres crescem. A nomeação de mulheres para cargos na Cúria Romana e a criação de comissões para estudar o diaconato feminino são passos importantes, mas insuficientes. A misoginia é muito forte na Igreja. O novo pontífice enfrentará uma pressão crescente por avanços concretos nessa área, inclusive com implicações doutrinárias e eclesiológicas. Os conservadores, no entanto, bradarão com seus velhos argumentos de que Jesus era homem e não havia nenhuma ‘apóstola’ no grupo dos Doze…
O escândalo dos abusos sexuais continua sendo uma ferida aberta na Igreja. Francisco deu passos significativos para enfrentar o problema – como o motu proprio “Vos Estis Lux Mundi” -, mas há ainda resistência institucional e omissões. Leão XIV precisará manter e aprofundar políticas rigorosas de prevenção, punição e apoio às vítimas.
O mundo multipolar e fragmentado requer uma liderança espiritual capaz de promover pontes – eis o significado da palavra ‘pontífice’. O pontificado de Francisco destacou-se pelo diálogo com o Islã, o Judaísmo e outras tradições religiosas, além de seus apelos pela paz em conflitos como os da Síria, Ucrânia e Israel. Prevost terá de cultivar esse papel diplomático e moral num cenário global marcado por xenofobia, racismo, guerras e mudanças climáticas.
Talvez o maior desafio do novo pontífice será manter a vitalidade da missão evangelizadora em um mundo cada vez mais secularizado. A Igreja precisa encontrar linguagem, atitudes e estruturas que falem ao coração das pessoas de hoje, especialmente dos jovens. Isso exige criatividade pastoral, abertura à sinodalidade — processo já iniciado por Francisco — e coragem para repensar formas de presença e atuação no mundo digital, nas periferias urbanas e nos contextos multiculturais.
Penso que o legado mais significativo de Francisco é a tentativa de devolver à Igreja um rosto de ternura, simplicidade e diálogo. Em tempos de crise de autoridade e de perda de confiança nas instituições, ele insistiu na misericórdia como o nome de Deus. Leão XIV não começará do zero — terá diante dos olhos o testemunho de um pastor que, com suas limitações, tentou ser fiel ao Evangelho no coração das contradições do século XXI.
Frei Betto é escritor, autor de “Jesus militante – Evangelho e o projeto político do Reino de Deus” (Vozes), entre outros livros.