Encontro em Veneza

No ano que vem, o melhor projeto literário do Brasil, o Sempre um Papo, capitaneado por Afonso Borges, comemora 40 anos. Fui o primeiro a lançar um livro pela iniciativa – o romance “O dia de Ângelo” -, no restaurante La Taberna, em Belo Horizonte. Afonso ainda não sabia como denominar o projeto e aceitou minha sugestão: Sempre um Papo.

No último 29 de maio, fiz novo lançamento em Belo Horizonte, organizado pela equipe do Afonso: o autobiográfico “Quando fui pai do meu irmão” (Alta Books). Foi então que soube que ele e Iara, cujo casamento abençoei em 2021, estariam de partida para a Itália no dia seguinte, rumo à lua de mel que ainda não haviam curtido.

O que o casal não sabia é que, três dias depois, eu também viajaria à Itália para proferir uma série de palestras em Faletto, Turim, Pinerolo, Veneza, Bolzano e Milão. Afonso e Iara preferiram ficar todo o período da viagem em Veneza.

Decidi fazer uma surpresa ao casal. Via WhatsApp, monitorei a viagem deles, sugerindo pontos turísticos na célebre cidade dos canais. A dupla estava convencida de que eu continuava no Brasil.

Na quarta, 4 de junho, desembarquei do trem em Veneza e me hospedei no convento dos frades dominicanos construído em 1221, ao lado da monumental igreja de São João e São Paulo (ou San Zanipolo). Em estilo gótico, o templo abriga a tumba de 25 doges e pinturas de famosos artistas venezianos, como Bellini e Lotto.

Frei Antonio Vizentin, meu anfitrião – que já morou no Brasil e na Turquia -, me indicou um bom restaurante próximo ao convento. Não contei, mas guardo a impressão de que nas apertadas ruas vizinhas há mais de 50 opções de boa comida italiana, entre osterias, trattorias, pizzarias e tavole calde. Antonio sugeriu a Trattoria Bandierette (Barbaria delle Tole Castello 6671), local sem afetação, preço módico, com mesas ao ar livre e excelente culinária. Fiz reserva para o jantar.

Pelo celular, Afonso continuava interessado em minhas dicas turísticas. À tarde, comuniquei ter feito uma reserva para o casal naquela trattoria, marcada para 20h30. Ao chegarem, o chef Carlo os estaria esperando. Eles ainda acreditavam que eu me encontrava em São Paulo.

Por coincidência, o casal se hospedara em uma pousada ao lado da igreja dominicana, a menos de cinco minutos do restaurante. Inventei estar escrevendo um conto ambientado em Veneza e, por isso, precisava da ajuda dele quanto a detalhes. Portanto, não deixasse de ir à procura do chef Carlo. Afonso respondeu: “Chego lá uma hora antes!”

De fato, o casal chegou antes de mim, tirou foto diante da trattoria e me enviou. É quase indescritível as caras de espanto de Iara e Afonso ao me avistarem na “calle”, como são chamadas as vielas estreitas, calçadas de pedras, de Veneza. Ele me viu primeiro. Mirou sério, olhos arregalados, como se visse um dos personagens de Barbara Hambly, do romance “O fantasma de Veneza”.   

Logo, o rosto pálido e assustado, acentuado pela barba alva, ganhou expressão risonha, acolhedora. Iara levou um pouco mais de tempo para me identificar. Era como seu eu tivesse descido ali de um drone.

“Não encontrei aqui nenhum chef Carlo”, comentou Afonso. “Bem, respondi, também sou Carlo e, de alguma forma, não deixo de ser chef. Tenho até livro de culinária.”

Viciado em “spaghetti alle vongole”, Afonso admitiu que naquela noite saboreara o melhor de todos os que havia experimentado. Pouco depois, frei Antonio se juntou a nós. Fomos a um restaurante na praça da igreja beber um Pinot Noir e fumar charutos.

Rememoramos Sebastião Salgado. O casal contou que na última viagem ao Brasil, em maio último, Lélia e Tião comeram em sua casa canjiquinha com costelinha de porco – o prato mais típico da culinária mineira, segundo minha mãe. O fotógrafo costumava acordar Afonso em plena madrugada, ligando de algum país da África ou do Oriente, para cantarolar ao telefone.

Naquela noite, entre luzes suaves refletidas nos canais e o aroma salgado do mar misturado ao vinho, aprendi que Veneza não é feita apenas de pedra e água, é feita também de encontros improváveis, silêncios plenos de sentido e surpresas que o coração arquiteta em segredo.

Sob o céu de junho, brindamos à amizade que atravessa oceanos, à literatura que nos liga como ponte invisível e à beleza das coincidências que só o tempo sabe tramar. Enquanto o sino da igreja marcava as horas da madrugada, senti que há momentos que não se repetem, apenas se guardam como uma pequena joia no bolso da alma.

Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.

Cultura do ódio e regulação das redes

Cresce o número de suicídios de jovens vítimas de linchamento virtual. O ódio permeia as redes digitais, a cultura do cancelamento se alastra, e a defesa da honra torna-se impossível. As fake news provocam transtorno de estresse pós-traumático e depressão profunda. E os assassinos virtuais se escondem sob o anonimato.

Daí a importância de a escola, desde o ingresso de crianças, promover educação para o uso das redes digitais e da internet em geral. Caso contrário, crianças e jovens correm o risco de ficar vulneráveis à maior usina de ódio global já inventada pelo ser humano, e que assegura bilhões de dólares a cada mês na conta bancária dos proprietários das plataformas digitais, das big techs, e que têm por objetivo uma única conquista: money, money, money! Eles detêm o segredo para manter mais de 5 bilhões de pessoas, horas a fio, ligadas a seus celulares, conectadas às redes digitais, a ponto de sofrerem da doença da moda, a nomofobia – dependência da internet.

Faça uma pesquisa em seu entorno e verá que as pessoas guardam na memória mais ofensas que sofreram do que elogios recebidos. Portanto, quanto mais as redes destilam ódio,  mais pessoas conectadas. Eis a receita do sucesso das plataformas.

A mais simples noção de psicologia nos ensina que nossa identidade decorre de nossas relações sociais, não apenas presenciais, como família e amizades, mas também das conexões virtuais. A diferença é que estas têm imensurável poder de ampliar uma acusação injusta, enquanto o acusado muitas vezes  sequer tem a chance de se defender, pois é imediatamente cancelado, ou seja, apagado dos canais digitais.

Como se defender de um comentário maldoso que em menos de uma hora é multiplicado por mil? Frente a essa sinistra conjuntura vejo apenas dois antídotos: educar crianças e jovens no uso das redes digitais e do mundo virtual e o governo estabelecer uma rígida regulação para barrar a “fakeocracia” e impedir que a cultura do ódio prevaleça sobre a cultura do respeito e da solidariedade.

No Brasil, pesquisas apontam que crianças e jovens viciados em internet apresentam considerável perda de capacidade de memorização, de redigir e interpretar textos, de expressão oral e cada vez menos interesse por literatura. Sabem digitar, mas nem sempre sabem refletir.

Após carregarem pesadas pedras para erguer as pirâmides, arrastadas à tração animal, os escravos egípcios devem ter ficado agradecidos e, ao mesmo tempo, perplexos, quando um deles, na Mesopotâmia (atual Iraque) inventou a roda. Do mesmo modo, nossa geração se surpreende com a agilidade “mágica” da robótica para desempenhar tarefas com maior velocidade e precisão que a habilidade humana. 

O algoritmo veio inaugurar uma era civilizatória ao nos oferecer uma nova “roda”: a inteligência artificial que, diga-se de passagem, nem é propriamente inteligência nem é artificial, pois é toda programada por seres humanos, embora tenha desempenho automático. Mas sem ela não poderíamos pesquisar os buracos negros nos longínquos espaços siderais, nem penetrar os diminutos recônditos da matéria graças à nanotecnologia.

A roda veio facilitar todo tipo de transporte, da mala de viagem, que já não temos que carregar, ao caminhão que leva pesados blocos de pedra. Mas se não existisse, não haveria tantos acidentes de trânsito. A culpa, com certeza, não é da tecnologia. É do uso que dela fazemos, e isso vale para a inteligência artificial.

É programada pela inteligência humana, embora a supere em agilidade, mas não em criatividade. Pode fazer complexos cálculos matemáticos em milésimos de segundos, mas é incapaz de produzir um romance à altura de “Dom Quixote”, de Cervantes ou “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa.

Toda tecnologia encerra uma ambivalência. Como a política ou a religião. Servem para oprimir ou libertar. É o que pensadores como Lévinas e Bauman acentuam ao chamar a atenção para o modo como o ser humano trata a tecnologia, como se fosse neutra e, assim, se desinteressa sempre mais pelos valores éticos no seu modo de pensar e agir. Como o mercado, a tecnologia se tornaria uma esfera autônoma, “autorregulável”, com o poder de determinar a condição humana.

Na pauta de defesa da democracia há que entrar a regulação do uso dos algoritmos, de modo a amenizar o impacto do que a socióloga estadunidense Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de vigilância”. Todos os dados que geramos ao utilizar o Google, por exemplo, são coletados em grandes bancos de dados e analisados por especialistas para detectar quais são as tendências em voga e as futuras potencialidades do mercado. O Google sabe, por meio do algoritmo, que o usuário A aprecia vinhos e, assim, entope o e-mail dele  com publicidade desta bebida. O mesmo acontece quando o usuário B procura um novo par de sapatos. Quando capta informações sobre trânsito, de interesse público, cria um software e oferece aos governos. Software são os aplicativos que utilizamos no acesso à internet, como Word, calculadora, Spotify, Tik Tok etc.

O problema é que não sabemos o que é feito com esses dados. O que sabemos através do Facebook é porque alguém vazou um documento interno. As empresas não falam sobre seus modelos de negócio. Não existem dados consolidados, os termos de uso e as políticas de privacidades são muito confusas.

Qualquer governo que pretenda reduzir as desigualdades e promover a democracia e a justiça social deve se preocupar com a regulação do uso dos algoritmos. Como se sabe, são programas concebidos para fazer buscas em imensos bancos de dados, classificar essas informações segundo um critério previamente definido por seu autor e orientar sua destinação. Em tese,  eliminariam distorções subjetivas, mas o que acontece de fato na internet é que os critérios não são conhecidos nem passíveis de sê-lo.

Além de tratar de capturar e manter o internauta conectado pelo maior tempo possível e motivá-lo a compartilhar, os conteúdos selecionados pelo algoritmo em função de uma infinidade de fatores, como acontece nas redes digitais,podem induzir à discriminação e desigualdade. É o que ocorre quando o algoritmo de uma empresa de seleção de candidatos a emprego exclui sistematicamente pessoas de determinado gênero ou etnia.

Esse “buraco negro” do ciberespaço precisa, urgentemente, ser mapeado, para não sugar a nossa cidadania e nos reduzir a meros consumistas.

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.

40 anos de “Fidel e a Religião”

Na quinta, 22 de maio, o Centro Fidel, em Havana, que preserva o acervo do líder da Revolução Cubana, promoveu, junto com a Secretaria de Assuntos Religiosos do governo, a comemoração de 40 anos do lançamento de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras). Presentes a viúva de Fidel, Dalia, acompanhada dos filhos.

Já traduzido para 24 idiomas e editado em 32 países, o projeto do livro surgiu em fevereiro de 1985 quando participei de um jantar em casa de Chomy Miyar, secretário particular de Fidel. Antes que o Comandante chegasse, manifestei a Lupe Veliz, assessora de imprensa, a intenção de fazer breve entrevista com Fidel para servir de epílogo de um livro sobre Cuba, destinado aos jovens. A reação veio como um balde de água fria: os pedidos de entrevistas chegavam a quase três mil e Fidel priorizava a mídia dos EUA.

O Comandante chegou após meia-noite, quando o café era servido e os charutos acendidos. Entre os presentes, figuras históricas do país, como Armando Hart, Núñez Jiménez e Eusebio Leal.

Ao ter a oportunidade de abordar Fidel a sós, repeti a proposta. Ele chamou Chomy e indagou como abrir espaço na agenda para a entrevista. O assessor sugeriu maio. De fevereiro a maio o projeto ganhou proporções em minha cabeça. Decidi entrevistá-lo sobre um tema controverso no mundo socialista – religião. Sabia que Cuba era oficialmente ateia e as confissões religiosas encaradas, no mínimo, com desconfiança, à exceção das denominações de matriz africana, consideradas “folclore”.

Ao retornar a Havana em maio, trazia 64 perguntas. Fidel me pediu desculpas, os EUA haviam disparado uma ofensiva midiática contra a Revolução com as emissões, desde Miami, da Rádio e TV Martí, e ele não dispunha de tempo para a entrevista. Senti-me como Santiago, personagem de Hemingway em “O velho e o mar”: ou pesco agora este tubarão ou nunca mais! Tanto insisti que Fidel indagou que perguntas eu gostaria de lhe fazer.

Havia um tipo de entrevistador que o Comandante evitava, os “intelectuais bibliográficos”, que lhe dirigiam questões recheadas de citações de textos e autores. Talvez me incluísse nessa categoria. Quando li a quinta pergunta – todas sobre a formação religiosa de sua família – ele me interrompeu: “Amanhã começamos”.

Foram quatro longos encontros noturnos, registrados em gravador. Ao deixar Cuba, sabia que tinha em mãos um conteúdo explosivo: pela primeira vez um líder comunista no poder enfatizava que a religião, considerada pela tradição marxista “ópio do povo”, tem também dimensão libertadora, revolucionária.

Em setembro Fidel me ligou. Pediu que eu fosse a Havana. Ali, para minha surpresa, contou que submetera suas respostas ao Birô Político. E nem todos concordaram com tudo. Eu pensava que o líder da Revolução fosse uma figura inconteste. Disse que, frente às discordâncias de seus companheiros, defendera seus pontos de vista e os convencera a mudar de opinião, exceto numa questão: um marxista poderia ser cristão sem deixar de ser marxista. Antes da resposta dele, eu havia dito que um cristão pode ser marxista sem deixar de ser cristão. Afinal, o marxismo é um método de análise da realidade, uma teoria crítica do capitalismo, e não uma religião.

A resposta de Fidel foi (mal) cortada. Ele havia concordado comigo. Porém, a primeira parte da resposta – “um marxista pode abraçar a fé cristã sem deixar de ser marxista”- foi suprimida.  E o restante da frase – “ambos os casos o importante é que sejam sinceros revolucionários” – dá a entender ao leitor que a recíproca é verdadeira.

O livro foi lançado em Havana em novembro de 1985. Toda a tiragem de 300 mil exemplares se esgotou em dois dias. No lançamento em Santiago de Cuba havia 10 mil pessoas na praça. Deram-me dois mil exemplares para autografar. Minha mão “engessou” após escrever a 500ª dedicatória…

O efeito do livro foi quase imediato: o caráter ateu do Estado cubano e do Partido Comunista foi substituído pelo laico; as denominações religiosas passaram a ter plena liberdade; Cuba recebeu quatro visitas papais em poucos anos (Francisco lá esteve duas vezes). Os governos socialistas, ao se darem conta do erro de sua postura antirreligiosa, passaram a me convidar para “apagar o incêndio”, como descrevo em “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco). Estive na União Soviética três vezes, na China, na Tchecoslováquia, na Polônia, na Alemanha Oriental. Era tarde. O Muro de Berlim já desabava implacavelmente.

De qualquer modo, a esquerda comunista passou a reconhecer a religião como uma dimensão importante da cultura popular a ser respeitada e valorizada, e não discriminada. A direita, entretanto, usa a religião como os fariseus e saduceus do tempo de Jesus, para manipular consciências e sentimentos e legitimar a injusta desigualdade social.

Frei Betto é escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros.

O insuperável guarda-chuva

O veloz avanço da tecnologia, graças ao impulso da ciência, nos surpreende a cada dia. Quando se pensa que o ChatGPT é a última palavra em inteligência artificial, os chineses “presenteiam” a posse de Trump, em 20 de janeiro, com o DeepSeek, mil vezes mais barato e veloz, o que produz grandes perdas financeiras para as corporações estadunidenses de IA.

Minha geração, nascida na década de 1940, viu a tecnologia transformar o mundo de modo admirável. Na casa de meu avô materno, conheci o telefone de manivela. Criança, eu subia em um tamborete para alcançar o bocal. Quando na adolescência eu poderia imaginar, frente ao telefone de disco na copa de casa, que um dia eu traria no bolso da camisa um aparelho, chamado celular, que desempenha múltiplas funções, de telefone a computador?

Sim, este é o admirável mundo novo, diria Huxley. Apesar de o capitalismo ter se apropriado de quase todas essas inovações, ferramentas para alavancar o mercado, e não para melhorar a nossa humanização como espécie inteligente.

Há, porém, um utensílio imprescindível ao sairmos à chuva e que, até hoje, não sofreu alteração substancial: o guarda-chuva. É incômodo carregá-lo, não resiste à ventania, não impede que, de alguma forma, sejamos molhados e, com frequência, a estiagem nos induz a esquecê-lo em algum canto.

Sua origem é muito antiga. Registros de 4 mil anos comprovam a existência de dispositivos semelhantes ao guarda-chuva no Egito, na Mesopotâmia e na China. Versões rudimentares foram encontradas na Índia, usadas principalmente para proteger as pessoas do sol.

Por volta do século XI a.C., os chineses já usavam guarda-chuvas de seda e papel impermeabilizados com verniz. Símbolos de status como, hoje, um relógio Rolex.

Na Grécia antiga e no Império Romano, as mulheres usavam para se protegerem do sol. Daí o nome de sombrinhas. O uso por homens veio a se popularizar na Europa no século XVIII, graças a Jonas Hanway, escritor inglês conhecido por descrever suas viagens e se opor ao comércio de escravos.

O atual guarda-chuva (até agora insuperado), com mecanismo dobrável e varetas de aço, foi patenteado em 1852 por Samuel Fox, empresário britânico do ramo siderúrgico.

O guarda-chuva conquistou as telas de cinema. Quem não se lembra da clássica cena de Gene Kelly em Cantando na chuva (Singin’ in the Rain, de 1952)? Aliás, a “chuva” era jorro de água misturada com leite para produzir mais brilho. Em Os Pássaros (1963), de Hitchcock, figurantes usam guarda-chuvas para tentar se proteger dos ataques das aves.

Em Mary Poppins (1964), Julie Andrews voa com seu guarda-chuva mágico. Em Blade Runner – o caçador de androides (1982) a chuvosa e futurista Los Angeles exibe guarda-chuvas com luzes neon. Em Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001), Hagrid usa um guarda-chuva rosa como varinha mágica disfarçada. No encantador curta-metragem O guarda-chuva azul (2013), este imprescindível protetor e uma sombrinha vermelha se apaixonam em uma cidade chuvosa. E no recente La La Land (2016), os personagens dançam em um parque exibindo guarda-chuvas coloridos.

Outra peça da mesma família do guarda-chuva, que também não admite (até agora) avanço tecnológico, é a palheta ou limpador de para-brisa. Pode ser o carro mais sofisticado, lá estão os grampos percorrendo os vidros sob a chuva.

O ser humano é muito pretensioso. Não consegue inventar algo mais prático e eficiente que o guarda-chuva e, no entanto, quer se apropriar de outros planetas e encontrar o elixir da eterna juventude. E, de quebra, o da imortalidade. Deus deve estar rindo de tanta empáfia!

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

Legado de Francisco e os desafios do Papa Leão XIV

O cenário que o novo papa – Robert Francis Prevost – herda está longe de ser tranquilo. A Igreja Católica enfrenta inúmeros desafios internos e externos que exigirão habilidade diplomática, coragem pastoral e capacidade de diálogo com o atribulado mundo atual.

Sob o pontificado de Francisco, aumentaram as tensões entre setores conservadores e progressistas dentro da Igreja. A polarização crescente no mundo ecoa na barca de Pedro. Críticas ao seu estilo pastoral e às reformas vieram de cardeais influentes, grupos leigos e teólogos. Essa divisão reflete a diversidade política e cultural que marca a conjuntura global. O papa Leão XIV terá a difícil missão de preservar a unidade da Igreja sem sufocar a pluralidade de expressões católicas.

O fato de adotar o nome Leão na sequência de Leão XIII (1810-1903), o papa da encíclica “Rerum Novarum”, a primeira a abordar o tema das relações trabalhistas, demonstra a sua sensibilidade para as questões sociais. Há que considerar também que Prevost é agostiniano, discípulo de Santo Agostinho, um filósofo pagão que se converteu à fé cristã e se tornou um pilar da teologia. Boa parte de sua atividade sacerdotal e episcopal foi no Peru, o que nos permite considerá-lo o segundo papa latino-americano. 

No entanto, a escassez de vocações sacerdotais, sobretudo na Europa e no continente americano, ameaça a sustentabilidade pastoral da Igreja em muitos lugares. Ao mesmo tempo, o envelhecimento do clero e a sobrecarga das funções pastorais dificultam a presença efetiva da Igreja nas inúmeras comunidades. Isso reabre os debates sobre o celibato facultativo, a ordenação de mulheres, o direito dos casais homoafetivos ao sacramento do matrimônio.

Após doze anos de pontificado, o papa Francisco deixou um legado marcante na Igreja Católica e na conjuntura mundial, tanto por sua abordagem pastoral quanto por suas posições diante dos problemas contemporâneos. Primeiro papa latino-americano, primeiro jesuíta no cargo e primeiro a adotar o nome Francisco — em referência a São Francisco de Assis —, Jorge Mario Bergoglio conduziu a Igreja por tempos turbulentos, marcados por crises internas e profundas transformações sociais, políticas e ambientais.

Desde sua eleição em 2013, Francisco buscou uma Igreja mais próxima dos excluídos e do mundo real. A opção preferencial pelos pobres, o cuidado com a Criação, a crítica à cultura do descarte e a defesa dos migrantes foram marcas registradas. Encíclicas como “Laudato Si’” (2015), sobre a ecologia integral, e “Fratelli Tutti” (2020), sobre a fraternidade universal, revelaram um papa com sensibilidade global e consciência dos desafios éticos da contemporaneidade.

Na Igreja, promoveu reformas significativas na Cúria Romana, buscou maior transparência financeira, puniu um cardeal corrupto, simplificou estruturas administrativas. Adotou uma postura mais pastoral em temas sensíveis, como a homossexualidade, os divorciados recasados e o papel das mulheres na Igreja, embora mantendo a doutrina tradicional em muitos aspectos. Seu estilo direto e despojado, aliado ao compromisso com a misericórdia, revitalizou a imagem da Igreja para muitos fiéis.

Apesar dos esforços de Francisco para valorizar a presença feminina na Igreja, as demandas por maior protagonismo das mulheres crescem. A nomeação de mulheres para cargos na Cúria Romana e a criação de comissões para estudar o diaconato feminino são passos importantes, mas insuficientes. A misoginia é muito forte na Igreja. O novo pontífice enfrentará uma pressão crescente por avanços concretos nessa área, inclusive com implicações doutrinárias e eclesiológicas. Os conservadores, no entanto, bradarão com seus velhos argumentos de que Jesus era homem e não havia nenhuma ‘apóstola’ no grupo dos Doze…

O escândalo dos abusos sexuais continua sendo uma ferida aberta na Igreja. Francisco deu passos significativos para enfrentar o problema – como o motu proprio “Vos Estis Lux Mundi” -, mas há ainda resistência institucional e omissões. Leão XIV precisará manter e aprofundar políticas rigorosas de prevenção, punição e apoio às vítimas.

O mundo multipolar e fragmentado requer uma liderança espiritual capaz de promover pontes – eis o significado da palavra ‘pontífice’. O pontificado de Francisco destacou-se pelo diálogo com o Islã, o Judaísmo e outras tradições religiosas, além de seus apelos pela paz em conflitos como os da Síria, Ucrânia e Israel. Prevost terá de cultivar esse papel diplomático e moral num cenário global marcado por xenofobia, racismo, guerras e mudanças climáticas.

Talvez o maior desafio do novo pontífice será manter a vitalidade da missão evangelizadora em um mundo cada vez mais secularizado. A Igreja precisa encontrar linguagem, atitudes e estruturas que falem ao coração das pessoas de hoje, especialmente dos jovens. Isso exige criatividade pastoral, abertura à sinodalidade — processo já iniciado por Francisco — e coragem para repensar formas de presença e atuação no mundo digital, nas periferias urbanas e nos contextos multiculturais.

Penso que o legado mais significativo de Francisco é a tentativa de devolver à Igreja um rosto de ternura, simplicidade e diálogo. Em tempos de crise de autoridade e de perda de confiança nas instituições, ele insistiu na misericórdia como o nome de Deus. Leão XIV não começará do zero — terá diante dos olhos o testemunho de um pastor que, com suas limitações, tentou ser fiel ao Evangelho no coração das contradições do século XXI.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus militante – Evangelho e o projeto político do Reino de Deus” (Vozes), entre outros livros.

Sobre o Colégio dos Cardeais

A Igreja Católica é mestra em hierarquias. Os cardeais são divididos em três categorias: cardeais-bispos, cardeais-presbíteros e cardeais-diáconos. Os cardeais-bispos são titulados como se ocupassem a direção de importantes dioceses em torno de Roma, como Ostia, Porto-Santa Rufina, Albano, Frascati, Palestrina, Sabina-Poggio Mirteto e Velletri-Segni.

O decano do Colégio Cardinalício – atualmente o cardeal Giovanni Battista Re, de 91 anos, que presidiu a missa de corpo presente no funeral do papa Francisco na Praça de São Pedro – detém o título de cardeal-bispo de Ostia, considerada a mais importante diocese vizinha a Roma. É ele quem assume a direção da Igreja entre a morte do papa e a eleição de seu sucessor.

O termo cardeal vem do latim ‘cardo’, que significa a dobradiça da porta. Cardeal é o eixo principal que imprime direção. Daí os pontos cardeais (norte, sul, leste e oeste), em torno dos quais orientamos nossa trajetória, as virtudes cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança, ao redor das quais se agrupam todas as outras virtudes humanas.

A maioria dos cardeais pertence à categoria de cardeais-presbíteros. Em geral, são arcebispos de metrópoles ao redor do mundo, como é o caso dos cardeais brasileiros. Representam os padres do antigo clero romano. 

Os cardeais-diáconos trabalham na Cúria Romana, encarregados da administração da Igreja. Após 10 anos de cardinalato, o cardeal-diácono pode solicitar passar à categoria de cardeal-presbítero.

Todos esses títulos são simbólicos e cada cardeal deve ser, virtualmente, vinculado a uma igreja de Roma, de modo a reforçar seu vínculo ao bispo da cidade histórica – o papa. Por exemplo, o cardeal Odilo Scherer, de São Paulo, está vinculado à igreja de Santo André, localizada no Monte Quirinal, em Roma. O cardeal Orani Tempesta, do Rio, à igreja Santa Maria Mãe da Providência, também na Cidade Eterna.

Cada cardeal está associado a um dos ‘ministérios’ da Cúria Romana, que têm o nome de dicastérios. São 16, dos quais cinco se destacam: Dicastério para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício), que cuida da preservação da fé católica; Dicastério para os Bispos, que auxilia o papa na nomeação de prelados; Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, que supervisiona a liturgia e os sacramentos; Dicastério para o Serviço da Caridade, responsável pelas obras sociais em nome do papa; e Dicastério para a Comunicação, que gerencia a mídia da Santa Sé.

Em “História de Florença”, escrita por Maquiavel entre 1520 e 1525 a pedido do cardeal Giulio de Medici que, mais tarde, se tornaria papa Clemente VII, o autor assinala: “Naquela época veio ao pontificado Pascoal I, e os paroquianos das igrejas de Roma, por estarem mais próximos do papa e participarem de sua escolha, e ainda para ornamentar seu poder com um pomposo título, começaram a se chamar cardeais. E arrogaram-se tamanha reputação que excluíram o povo romano de eleger o pontífice, tanto que raras vezes o escolhido não era um dos cardeais” (São Paulo, Musa, 1994, p. 39).

Nos primeiros séculos da Igreja surgiu a expressão “clerici cardinales” (cardeais clérigos) para designar os agentes pastorais que integravam o Conselho do Bispo. A partir do século XI, o título de ‘cardeal’ ficou reservado aos padres mais importantes da diocese de Roma.

O papa Sisto V (1585-1590) fixou em 70 o número de cardeais. Paulo VI estabeleceu em 120 o número máximo de cardeais eleitores do Papa. João Paulo II constituiu o Colégio Cardinalício mais numeroso da história da Igreja, com 185 membros.

O Brasil foi o primeiro país da América Latina a ter cardeal, em 1905 – Dom Joaquim Arcoverde Albuquerque Cavalcanti, pernambucano de Pesqueira (1850-1930), arcebispo do Rio de Janeiro (1897-1930). Era conhecido como cardeal Arcoverde.

Os cardeais também assessoram o papa, seja colegialmente, quando convocados para tratar questões de maior relevância, seja individualmente, se consultados.

O cardinalato não requer o sacramento da Ordem, como o episcopado e o presbiterato. É um título honorífico de quem ocupa uma função consultiva ou administrativa nos dicastérios, tribunais e ofícios da Cúria Romana. Os cardeais têm a exclusividade de eleger o papa, privilégio estabelecido pelo papa Nicolau II, em 1059.

O papa Inocêncio IV instituiu, em 1245, as insígnias do anel cardinalício, símbolo da fidelidade ao governo pontifício da Igreja, e o chapéu vermelho, hoje barrete, símbolo do direito sagrado de servir ao papa e eleger seus sucessores. Desde o século XIII o cardeal decano preside o Colégio dos Cardeais. No seu impedimento, o cardeal subdecano assume a direção. O decano e o subdecano são eleitos pelos cardeais-bispos e seus nomes submetidos à aprovação papal.

O cardeal-protodiácono, chefe dos cardeais-diáconos, é quem anuncia ao povo, na Praça de São Pedro, o nome do pontífice eleito no conclave. O atual cardeal protodiácono é Dominique Mamberti, cardeal francês, de origem marroquina, que ocupa importante cargo na Cúria Romana.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus revolucionário – contradição de classes no Evangelho de Lucas” (Vozes), entre outros livros.

Breve história de Eleições Papais

Até o século IV os papas eram eleitos por voto dos diáconos e padres de Roma. Assim como os fiéis das dioceses votavam na escolha de seus bispos. Evitava-se envolver os demais bispos nas questões internas da Sé romana.

Como se sabe que um bispo está ou não em comunhão com a Igreja Católica? Outrora, pesquisava-se a lista de seus antecessores, para se ter certeza de que descendia de um dos doze apóstolos de Jesus. Devido a incêndios, saques e outros imprevistos que faziam desaparecer as listas, decidiu-se que estão em comunhão com a Igreja todos os prelados que se afinam com a doutrina do bispo de Roma.

A eleição de papas por cardeais teve início em 1059. Cardeal vem de “cardo”, dobradiça de porta, e é título de honra que o papa tem o direito de conceder a qualquer católico, como fez João Paulo II ao estender o chapéu cardinalício a dois teólogos europeus: Yves Congar, frade dominicano francês, e o suíço Hans Urs von Balthazar, que faleceu dois dias antes de receber o barrete cardinalício.

Desde que o imperador Constantino aliou-se à Igreja, no início do século IV, para não perder o Império Romano, os bispos passaram a ser tratados como príncipes e os papas, como reis. Durante sete séculos os sucessores de Pedro eram quase sempre escolhidos segundo conveniências políticas de famílias nobres. Isso se reverteu no Natal de 800, quando Leão III coroou o imperador Carlos Magno. O poder espiritual sobrepujou o temporal.

Todo homem batizado na Igreja Católica é virtualmente candidato a papa. Se eleito, deve abandonar a família, abraçar o celibato, ser ordenado bispo. Gregório Magno, eleito em 590, foi prefeito de Roma. O calendário atual é conhecido como gregoriano por tê-lo adaptado ao ciclo solar.

Não há limite de tempo para eleger o papa. A regra atual é que nos primeiros 15 dias seja eleito aquele que obtiver 2/3 mais 1 dos votos. Em seguida, basta maioria simples, metade mais 1. Há 1 escrutínio no primeiro dia do conclave, no qual os cardeais costumam prestar uma homenagem aos mais idosos, concentrando neles seus votos. Do 2º ao 4º dia há quatro votações a cada 24 horas. Descansa-se no quinto dia. No sexto, há 3 escrutínios e, no sétimo, 4. Novo descanso no oitavo dia, mais 3 votações no 9º dia e 4 no décimo. Descansa-se no 11º dia, são feitos 3 escrutínios no dia seguinte e mais 4 no 13º dia. Após o descanso do 14º dia, passa-se ao critério da maioria simples. 

Entre uma votação e outra os cardeais conversam entre si, em geral divididos em grupos linguísticos, que pesam no resultado. Tudo indica que, nos primeiros escrutínios, os italianos tudo farão para recuperar o monopólio do papado. Desde 1522 houve uma sucessão de 44 papas italianos, quebrada em 1978 pela eleição do polonês Wojtyla. O fato de a África ser o continente no qual o catolicismo mais se expande atualmente pode favorecer a escolha de um africano. A prioridade que a Igreja dá à evangelização da África e da Ásia talvez se traduza na eleição de um cardeal negro ou de olhos puxados…

Tudo indica que os cardeais deste conclave farão de tudo para decidir a eleição o quanto antes, para não passarem a impressão de que não estão suficientemente unidos. Mas após um papa que se tornou o mais respeitado estadista do mundo, não será fácil encontrar um cardeal capaz de sucedê-lo à altura. 

Frei Betto é escritor, autor de “Quando fui pai de meu irmão” (Alta Books), entre outros livros.

Protocolos do Conclave

Morto o papa Francisco, o governo da Igreja passou automaticamente às mãos do Colégio dos Cardeais, segundo regras redefinidas por João Paulo II, em 1996, no documento Universi Dominici Gregis. Logo que os cardeais se reúnem em Roma, este documento é lido. Sob juramento, os prelados ficam obrigados ao sigilo.

Com a vacância da Sé de Pedro, todos os cardeais da Cúria Romana, inclusive o Secretário de Estado, que equivale à função de primeiro-ministro, são compulsoriamente demitidos. Apenas três permanecem em suas atuais funções: o carmelengo, cardeal Kevin Joseph Farrell, responsável pela transição e eleição do novo pontífice; o penitenciário-mor, cardeal Angelo De Donatis, a quem cabe  perdoar um dos pecados cuja absolvição é reservada à Santa Sé, como a quebra do sigilo da confissão; e o vigário geral da diocese de Roma, cardeal Mauro Gambetti.

Os poderes do Colégio Cardinalício na fase transitória são limitados. Não pode, por exemplo, modificar regras que regem a eleição papal, nomear novos cardeais ou tomar qualquer decisão que possa vir a constranger a autoridade do futuro pontífice.

A Capela Sistina é preparada para o conclave. Visitas turísticas são suspensas, para que a equipe de segurança investigue se há no recinto dispositivos eletrônicos.

São convocados à reclusão todos os cardeais presentes no Vaticano. Dos atuais 252 cardeais, 135 estão aptos a votar, se não tiverem completado 80 anos. Serão 133 eleitores. Os cardeais Antonio Cañizares, da Espanha, e Vinko Puljic, da Bósnia, não irão por motivo de saúde.

O início do conclave ocorre tão logo haja tempo suficiente para que todos os prelados cheguem a Roma. Em 1922, na eleição de Pio XI, cardeais da América do Norte e do Sul perderam o conclave porque os navios não atracaram a tempo. Hoje, as viagens aéreas tornam tudo mais fácil.
Uma vez trancados no Vaticano, nenhum deles pode sair, até que o novo pontífice esteja escolhido, exceto em caso de doença ou acidente com risco de vida e após consenso da maioria de seus pares.

Ingressam no conclave, junto com os cardeais, o secretário do Colégio dos Cardeais, Dom Lorenzo Baldisseri, que foi núncio no Brasil durante 9 anos (2002-2012); o mestre das liturgias papais, acompanhado por dois mestres de cerimônia e dois religiosos da sacristia papal; um assistente para o cardeal decano; uns poucos frades ou monges de diferentes idiomas, para atuar como confessores; dois médicos; e o pessoal do serviço de cozinha e limpeza, em geral freiras.

Nenhum cardeal pode levar assistente pessoal, exceto médico particular em caso de doença grave. Nada de computadores, celulares, jornais, TV, rádio, tablets ou aparelhos de gravação de som ou imagem. É mantida apenas uma linha telefônica, de uso exclusivo do carmelengo em caso de emergência.

Apenas três cardeais têm o direito a contatar seus escritórios: o penitenciário-mor; o vigário da diocese de Roma; e o pároco da Basílica de São Pedro. 

As normas da Igreja proíbem conchavos e articulações eleitorais antes do conclave. Isso remonta ao papa Félix IV (526-530), que pressionou o clero e o senado romanos a elegerem como seu sucessor Bonifácio, seu arcediago. Os senadores promulgaram um edito vetando qualquer discussão sobre a eleição do futuro papa enquanto o atual  estivesse vivo.

A rigor, qualquer católico solteiro do sexo masculino, maior de trinta e cinco anos, é virtual candidato a papa e poderá vir a calçar as sandálias do Pescador, ainda que seja leigo. Se eleito, deverá ser imediatamente ordenado bispo, como ocorreu com João XIX (eleito em 1024) e Benedito IX (eleito em 1032).

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Batismo de sangue” (Rocco), entre outros livros.

Quem será o novo Papa?

Não participo de apostas e conheço bem os bastidores da Igreja Católica. Este é o sexto conclave que acompanho. Quase nunca as previsões predominantes são confirmadas. Exceto a eleição de Bento XVI, em 2005, pois o cardeal Ratzinger era o teólogo preferido de João Paulo II e ocupava altas funções no Vaticano. Bergoglio, cardeal de Buenos Aires, foi o segundo mais votado em 2005, me confidenciou um cardeal. Embora sua eleição a papa, em 2013, após a renúncia de Bento XVI, tenha surpreendido o mundo, era prevista pelo colégio cardinalício.

O que conheço dos bastidores de conclaves me foi contado por um cardeal que participou de dois. Como ocorre desde a eleição de Paulo VI, em 1963, os cardeais dos EUA tentarão, mais uma vez, emplacar um de seus pares. Em vão. Por serem os mais ricos e arrogantes, há muita rejeição a eles entre os eleitores.

Nas bolsas de apostas muitos investem na eleição de um africano, já que a África é, hoje, o continente onde o catolicismo mais se expande. O último pontífice africano data do século V, papa Gelásio (492-496). Ora, se a preferência dos eleitores for por alguém que dê continuidade à linha pastoral de Francisco será difícil encontrar um africano, embora ele tenha nomeado 15 entre os 18 cardeais daquele continente. Com exceção do cardeal Peter Turkson, de Gana, os demais são moderados ou conservadores. Nem sempre Francisco promoveu arcebispos progressistas, já que levava em conta o consenso entre os bispos do país.

Minha previsão é de que o papado voltará às mãos dos italianos, inconformados por terem perdido a preferência desde a eleição de Wojtyla. Entre os seis cardeais italianos nomeados por Francisco, cinco abraçam a mesma linha pastoral: Zuppi (Bolonha); Betori (Florença); Montenegro (Sicília); Lojudice (Montalcino); e Gambetti (vigário geral do Vaticano).

Encaro também como azarões os cardeais Tagle, das Filipinas, 67 anos, e o inglês Timothy Radcliffe, 79 anos, meu confrade na Ordem Dominicana. Era o teólogo preferido de Francisco e assessor de vários sínodos. A alegação de ter idade avançada já não procede como outrora, porque atualmente um pontificado de 12 anos, como o de Francisco, é considerado longo, e as comunicações e meios de locomoção são bem mais rápidos.

Os cardeais brasileiros teriam alguma chance? Acredito que não. São também prelados “do fim do mundo” como Bergoglio, mas nenhum dos oito se destaca como “papabile”. Aliás, quase tivemos um papa brasileiro. No conclave que elegeu Wojtyla, em 1978, o primeiro a obter 2/3 dos votos foi o cardeal de Fortaleza, Aloísio Lorscheider. Ao ser consultado se aceitava o pontificado, declinou alegando ter oito pontes de safena e a Igreja, que havia perdido João Paulo I, ocupante da Sé de Pedro por apenas 33 dias, não suportaria outro conclave em pouco tempo. Detalhe: o eleito, João Paulo II, faleceu em 2005; Lorscheider, em 2007.

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Jesus rebelde – Mateus, o Evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros.

Sobre Conclaves

Conclave, palavra que deriva do latim cum clave, significa “com chave”, uma vez que os cardeais eleitores ficam trancados no Vaticano até elegerem um novo papa.

O sistema de eleição, tal como conhecemos hoje, foi instituído em 1274, durante o Concílio de Lyon II, pelo papa Gregório X. A motivação foi o conclave que o elegeu, o mais longo da história, em Viterbo. Durou 33 meses, quase três anos (1268 a 1271). Os cardeais se dividiam entre facções políticas, partidários dos angevinos (pró-França) e dos gibelinos (pró-Sacro Império Romano-Germânico).

Isso causou o impasse prolongado, e tanta frustração e revolta, que a população local trancou os cardeais no palácio episcopal e, no início do inverno, removeu o teto e restringiu a entrada de alimentos para forçá-los a apressar a escolha do novo pontífice.

O eleito, Gregório X (1271-1276), criou então regras para tornar o processo mais rápido e eficiente, como isolamento dos cardeais; restrição de contato externo; redução gradual de conforto (menos refeições); exigência de maioria qualificada (2/3) para a eleição, de modo a pressionar a decisão.

A eleição dos papas já era feita por cardeais desde 1059, por iniciativa do papa Nicolau II, mas não havia um sistema fechado nem regras tão definidas. O processo podia durar meses, envolver influência externa (sobretudo de reis e imperadores), e ser bastante caótico.

O conclave mais breve da história da Igreja Católica, realizado na Capela Sistina, foi o que elegeu o cardeal Eugenio Pacelli, ex-núncio na Alemanha nazista, papa Pio XII. Durou apenas 24 horas, com três votações realizadas no mesmo dia 1º de março de 1939 por 62 cardeais.

Outro conclave longo foi o que elegeu Celestino V. Morto Nicolau IV, em 1292, cardeais italianos e franceses fizeram do conclave arena de disputas pelo poder, movidos mais por interesses políticos que pelas luzes do Espírito Santo. Após dois anos e três meses de impasse na eleição do novo papa, Pedro Morrone, eremita italiano, de sua caverna nas montanhas enviou carta aos cardeais, instigando-os a não abusar da paciência divina. O conclave viu na carta um sinal divino e decidiu fazer do monge o novo chefe da Igreja. Pedro Morrone relutou, não queria abandonar sua vida de pobreza, solidão e silêncio, mas os prelados o convenceram de que o consenso em torno de seu nome tiraria a Igreja do impasse.

Com o nome de Celestino V, tornou-se papa em agosto de 1294. Menos de quatro meses depois, a politicagem vaticana o levou ao limite de sua resistência. E levantou a pergunta inesperada: posso renunciar? O colégio cardinalício não se opôs e, numa bula histórica, Morrone justificou-se, alegando que deixava o trono de Pedro para salvar sua saúde física e espiritual. A 13 de dezembro do mesmo ano retornou à solidão contemplativa nas montanhas. Vinte anos depois foi canonizado, exaltado como exemplo de santidade. A 19 de maio a Igreja celebra a festa de São Pedro Celestino.

Antes de Celestino V, o papa Gregório XII renunciou em 1415 para facilitar a resolução da crise durante o Grande Cisma do Ocidente, quando três papas estiveram à frente da Igreja.

O terceiro papa a renunciar foi Bento XVI, em 2013, devido à idade avançada e falta de alento. Intelectual, Ratzinger vivia o conflito entre sua afeição à teologia e as exigências de administração da Igreja.

Pressinto que o conclave responsável pela eleição do sucessor de Francisco não será tão rápido quanto os que elegeram Ratzinger e Bergoglio, que não ultrapassaram 48 horas. Mas sobre isso escreverei em seguida.

Escritor e educador popular, autor de “Jesus rebelde – Mateus, o Evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros.