O Funeral do Papa Francisco

A morte de um papa não é apenas o fim de um pontificado — é o encerramento de um capítulo na história viva da Igreja e do mundo. É um momento carregado de simbolismo, introspecção e comunhão. Para milhões de fiéis, a partida do sucessor de Pedro é vivida com emoção e reverência, como se perdessem não apenas um líder, mas um pai espiritual.

Todos os procedimentos que seguem o falecimento de um papa são meticulosamente definidos na Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis, promulgada por João Paulo II, em 1996. Esse documento estabelece os ritos e protocolos a serem seguidos até a eleição de um novo pontífice.

A confirmação da morte é um dos momentos mais simbólicos. Cabe ao camerlengo — hoje o cardeal estadunidense Kevin Joseph Farrell — verificar o falecimento. Seguindo uma tradição secular, ele chama o pontífice pelo nome de batismo, neste caso “Jorge Mario Bergoglio”, por três vezes. Diante do silêncio, declara oficialmente a morte. Em seguida, inutiliza o Anel do Pescador, símbolo do poder pontifício, para que ninguém o use indevidamente. É um gesto simples, mas carregado de significado: o poder, que nunca foi propriedade pessoal, retorna às mãos da Igreja.

O corpo do papa é velado de forma íntima, geralmente na capela do Mosteiro Mater Ecclesiae ou no Palácio Apostólico. É nesse momento que os mais próximos — auxiliares, religiosos e familiares — podem se despedir em clima de oração e silêncio. Depois, o caixão é levado à Basílica de São Pedro, onde por três dias o povo pode prestar suas últimas homenagens.

O funeral, carregado de simbolismo e solenidade, é presidido pelo cardeal decano do Colégio Cardinalício. No caso do Papa Francisco, espera-se que o rito também reflita sua profunda identificação com os pobres, os marginalizados e com a espiritualidade inaciana. Imaginar esse momento é quase ouvir ecos de homilias simples, palavras de ternura aos mais vulneráveis, e aquele olhar que, tantas vezes, falou mais do que mil discursos.

Após a missa celebrada na Praça de São Pedro, o corpo é levado à Basílica de Santa Maria Maior — igreja romana particularmente querida por Francisco, que ali rezava antes e depois de cada viagem apostólica. 

Dentro do caixão, além do corpo, são colocados elementos que contam sua história: moedas cunhadas durante o pontificado, um pergaminho com um resumo de sua vida e de sua missão como papa, e a veste litúrgica que simboliza seu serviço à Igreja.

Com o enterro, inicia-se o período da sede vacante. A Sé de Pedro está vazia. Os sinos da Basílica soam com um timbre diferente. Começa, então, o conclave, reunião dos cardeais na Capela Sistina, um dos momentos mais solenes da vida da Igreja. Ali, sob a presença silenciosa do Juízo Final de Michelangelo, eles rezam, discutem, votam para eleger o novo pastor.

O corpo do papa Francisco será sepultado no próximo sábado, em Roma. Antes, haverá cerimônias fúnebres na Praça de São Pedro, com missa presidida pelo decano do colégio cardinalício, Giovanni Battista Re. Em seguida, o caixão será conduzido em procissão até a Basílica de Santa Maria Maior, indicada por Francisco em seu testamento por ser a igreja de sua predileção. Há mais de um século nenhum papa foi sepultado fora dos muros do Vaticano. Os predecessores de Francisco estão enterrados nas grutas vaticanas, abaixo do altar da Basílica de São Pedro.

É tradição os papas serem enterrados em um triplo caixão, de cipreste, chumbo e carvalho. Francisco manifestou o desejo de que o seu fosse simples, de madeira revestida de zinco por dentro. E não será colocado sobre um catafalco; na lápide, haverá apenas a palavra “Franciscus”, sem nenhum adorno. Todas as exéquias serão custeadas por um benfeitor amigo de Francisco, sem onerar os cofres da Igreja.

Escritor e educador popular, autor de “Jesus militante – Evangelho e projeto político do Reino de Deus” (Vozes), entre outros livros.

Páscoa em tempo de incertezas

A Páscoa é, por excelência, a celebração da vida que vence a morte. Mais que data religiosa, traz em seu bojo uma mensagem universal de esperança, renovação e possibilidade de recomeço. A ressurreição de Jesus Cristo, há mais de dois mil anos, continua a ecoar como símbolo máximo de superação diante do impossível. E, hoje, essa mensagem se faz necessária em um mundo mergulhado em incertezas econômicas e sociais e guerras atrozes.

Vivemos um momento de profunda crise global agravada pelo desatino do (des)governo Trump. Inflação elevada, desemprego crescente, cadeias produtivas fragilizadas, uberização das relações trabalhistas e um abismo cada vez maior entre os que têm muito e os que mal sobrevivem.

Em todo o mundo, famílias enfrentam desafios diários para colocar comida na mesa e sonhar com um futuro minimamente estável. A esperança parece escassa, o desânimo se espalha como uma sombra silenciosa, a distopia abate inúmeros jovens.

Nesse cenário, a mensagem da Páscoa brota como luz insistente e resistente. O sepulcro vazio, sinal da ressurreição de Cristo, é uma metáfora significativa: o fim nem sempre é o fim. Aquilo que parecia perdido, vencido, destruído, pode se transformar em ponto de partida para algo novo. Jesus, que sofreu humilhação, dor e morte, ressurgiu como sinal de que o amor, a justiça e a verdade não podem ser enterrados.

A crise econômica aprofundada pela guerra das tarifas, com toda sua força destrutiva, nos coloca diante de um “sábado de silêncio”, como aquele vivido pelos discípulos entre a morte e a ressurreição de Jesus. Um tempo de incerteza, de luto, de espera. Mas o domingo chega. A pedra do túmulo é removida. A vida ressurge. E é justamente aí que se situa o convite pascal: acreditar que há esperança, que há um “depois”, mesmo quando tudo parece perdido.

Essa esperança não é ingênua. Não ignora a dor nem minimiza os sofrimentos. Pelo contrário, nasce justamente no coração da adversidade e como clamor de justiça. Jesus não foi poupado do sofrimento e o assumiu. Do mesmo modo, a Páscoa nos convida a enfrentar as dores do presente com coragem e fé, certos de que a crise, por mais dura que pareça, não tem a última palavra.

A ressurreição não é apenas um acontecimento espiritual. É também fato político, chamado à ação. Quando Jesus ressuscita, envia seus discípulos a transformar o mundo. A Boa Nova da ressurreição não se limita ao consolo pessoal; é fermento de mudança social, ética e econômica. O Cristo ressuscitado convoca seus seguidores a serem agentes de justiça, solidariedade e renovação.

Diante da crise econômica mundial, da degradação ambiental e dos conflitos bélicos, essa convocação se torna urgente. Ressuscitar, hoje, é promover políticas centradas no cuidado dos mais pobres, fomentar economias sustentáveis, preservar a natureza, alcançar a paz como fruto de justiça, combater as desigualdades sociais. É recusar a indiferença,  agir com compaixão. É erguer os que desanimam, partilhar o pão, dar voz aos silenciados. É fazer a ressurreição de Cristo se traduzir em ressurreições cotidianas, visíveis, palpáveis.

A crise, por mais aguda que seja, não anula a possibilidade de recomeços. Ao contrário, pode ser o terreno fértil para novas sementes libertadoras. A mensagem do túmulo vazio é que nenhuma escuridão é definitiva. Nenhuma morte, econômica, moral ou social, é irreversível. Há sempre um terceiro dia.

Tomara que esta Páscoa, em meio a tantas instabilidades e incertezas, nos inspire a não perder a esperança, não sucumbir ao medo e não aceitar a injustiça como normal. A ressurreição de Jesus deve nos mover à solidariedade e à construção de um novo modelo de sociedade, mais humana, justa e fraterna. Afinal, a verdadeira vitória da Páscoa não está apenas na superação da morte, mas na escolha diária pela vida – e vida em plenitude.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus rebelde – Mateus, o evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros.

Documentos de Santa Fé e o perfil religioso da América Latina

A América Latina passou por profundas transformações religiosas ao longo das últimas décadas do século XX. Um dos fenômenos mais notáveis foi o crescimento expressivo das Igrejas evangélicas, especialmente as de orientação pentecostal e neopentecostal. Embora diversos fatores internos — crises sociais, esvaziamento da Igreja Católica, e a busca por experiências religiosas mais pessoais — tenham contribuído para esse processo, há também influências externas, políticas e estratégicas, que desempenharam papel crucial.

Nesse contexto, destacam-se os Documentos Santa Fé I (1980) e Santa Fé II (1988), produzidos por setores conservadores da política e dos serviços de inteligência dos Estados Unidos, com o objetivo de orientar a política externa do país frente à América Latina durante a Guerra Fria.

Esses documentos foram elaborados em reuniões na cidade de Santa Fé, no Novo México (EUA), e não apenas formulam uma crítica contundente à Teologia da Libertação, mas também defendem ações práticas que acabaram contribuindo para o fortalecimento de movimentos evangélicos na região. (Os documentos podem ser encontrados em: https://www.oocities.org/proyectoemancipacion/documentossantafe/documentos_santa_fe.htm)
 
Santa Fé I e II
 
Em maio de 1980, o governo dos EUA, então presidido por Jimmy Carter, emitiu o Documento Santa Fé I, denominado “Uma nova política interamericana para os anos 80”. E no governo Ronald Reagan foi publicado o Documento Santa Fé II, intitulado “Uma estratégia para a América Latina nos anos 90”.

Os signatários dos dois documentos afirmam que “o regime democrático é aquele no qual o governo tem a responsabilidade de preservar a sociedade vigente de ataques externos ou da intromissão do aparato estatal permanente.” Ou seja, reduzir ao máximo a intervenção do Estado na economia. Na prática, privatizar, privatizar, privatizar. O que o capitalismo tenta esconder é que a maioria das privatizações é financiada por dinheiro público!

No contexto da Guerra Fria, os documentos alertavam para a “ofensiva cultural marxista”, ao afirmar: “Para os teóricos marxistas, o método mais promissor para a criação de um regime estatista em um ambiente democrático se obtém mediante a conquista da cultura da nação. De acordo com este modelo, todos os movimentos marxistas na América Latina têm sido encabeçados por intelectuais e estudantes, e não por trabalhadores”.

Isso explica o horror que a direita tem de intelectuais e cientistas. Prefere pessoas analfabetas ou semianalfabetas, mais fáceis de serem manipuladas.

O Documento Santa Fé II assinala que nesse contexto “deve ser entendida a Teologia da Libertação, uma doutrina política disfarçada de crença religiosa com uma significação antipapal e contrária à livre empresa, com o propósito de debilitar a independência da sociedade”.

Na época, o papa era João Paulo II, polonês anticomunista, aliado de Reagan. Hoje, com certeza, a alusão à “significação antipapal” não constaria, já que o papa Francisco é considerado “comunista” até mesmo por bispos estadunidenses.
 
Contexto da Guerra Fria e a preocupação ianque

Durante a Guerra Fria, os EUA viam a América Latina como região estratégica na contenção da expansão do socialismo. Após a Revolução Cubana, em 1959, aumentou o temor de que outros países latino-americanos seguissem o mesmo caminho, abraçando regimes socialistas. A ascensão da Teologia da Libertação, nas décadas de 1960 e 1970 — um movimento dentro do catolicismo que combina fé cristã com análises marxistas da sociedade, defendendo a luta contra a opressão e a injustiça social — passou a ser vista com crescente preocupação pelos setores conservadores dos EUA, tanto no governo quanto em think tanks e setores religiosos.

O primeiro documento, conhecido como Santa Fé I, foi elaborado em 1980 por um grupo de assessores conservadores de política externa ligados a Ronald Reagan. Seu objetivo era fornecer diretrizes para a ação americana na América Latina diante do avanço do marxismo e de movimentos revolucionários. O texto traz uma crítica direta à Teologia da Libertação, classificando-a como uma ferramenta ideológica do marxismo que se infiltrara na Igreja Católica. Os autores alegavam que padres e bispos progressistas, inspirados por essa teologia, estavam incentivando a luta de classes, a desobediência civil e a revolução armada.

O documento defende a necessidade de conter essa influência teológica por meio de uma “reorientação cultural” que envolva o incentivo a formas alternativas de cristianismo. Embora o texto não mencione explicitamente o apoio a Igrejas evangélicas, a lógica subjacente é clara: a necessidade de promover formas de religiosidade  anticomunistas, individualistas, “apolíticas” e alinhadas aos valores do “mundo livre” capitalista.

Igrejas evangélicas pentecostais se encaixam perfeitamente nesse perfil, pois enfatizam a salvação pessoal, a prosperidade individual, a autoridade bíblica e a rejeição de ideologias políticas consideradas subversivas.

O Santa Fé II, publicado em 1988, em pleno governo Reagan, reafirma e aprofunda essas diretrizes. O novo documento volta a criticar a Teologia da Libertação, classificando-a como ameaça à estabilidade política e à influência dos EUA na América Latina. Além disso, alerta para o papel das universidades católicas, ONGs e outras instituições ligadas à Igreja na difusão de ideias “marxistas”. A solução proposta segue na mesma linha: enfraquecer a influência dessas correntes através de um reforço da “guerra cultural”, promovendo valores tradicionais, religiosos e pró-Ocidente.

Embora os Documentos Santa Fé não defendam explicitamente o financiamento ou a implantação de Igrejas evangélicas, na prática, suas diretrizes são interpretadas e operacionalizadas por diversas agências e grupos com atuação direta. Missões evangélicas norte-americanas, como a Summer Institute of Linguistics (SIL) e organizações pentecostais como as Assembleias de Deus, receberam incentivos diretos e indiretos para expandirem sua atuação na América Latina, especialmente em regiões indígenas e pobres, tradicionalmente negligenciadas pela Igreja Católica.

O apoio envolvia desde isenções fiscais e vistos facilitados para missionários, até financiamentos por parte de fundações conservadoras estadunidenses. Essas Igrejas e missões foram encaradas como aliadas ideológicas por promoverem valores como disciplina, obediência, moralidade conservadora e anticomunismo. E sua penetração em comunidades carentes contribuía para desmobilizar movimentos de base influenciados pela Teologia da Libertação, desviando o foco da luta política para questões espirituais e individuais.
 
O ataque à Teologia da Libertação

A estratégia delineada nos documentos Santa Fé mostrou-se eficaz a médio e longo prazos. A partir da década de 1980, diversos fatores contribuíram para o enfraquecimento da Teologia da Libertação: a repressão por regimes autoritários, a censura do Vaticano sob o pontificado de João Paulo II, e a ascensão de lideranças eclesiásticas conservadoras em várias dioceses.

A pressão estadunidense, tanto direta quanto indireta, também desempenhou papel importante. Ao mesmo tempo, o crescimento exponencial das Igrejas evangélicas transformava o panorama religioso latino-americano.

O discurso dessas Igrejas, centrado na experiência pessoal de conversão, na promessa de prosperidade e na rejeição de ideologias políticas, contrasta com a proposta de transformação estrutural da Teologia da Libertação. Muitos fiéis encontram nelas uma alternativa mais imediata e emocional às suas angústias, ao mesmo tempo em que se afastam dos discursos de luta de classes e mobilização política.

O impacto dos Documentos de Santa Fé e da estratégia que inspiraram continua a ser sentido. A América Latina, que até meados do século XX era majoritariamente católica, passou a ter uma presença evangélica cada vez mais forte. Muitos países assistiram à ascensão de lideranças políticas vinculadas a Igrejas evangélicas, e que expressam uma visão de mundo fortemente conservadora e alinhada a valores tradicionais.

Além disso, o declínio da Teologia da Libertação abriu espaço para uma nova configuração religiosa e política, marcada por  menor presença das Comunidades Eclesiais de Base e maior protagonismo de Igrejas com discursos centrados na prosperidade, no combate a “inimigos espirituais” e na negação da política como instrumento de transformação social.
 
Conclusão  
 
Os Documentos de Santa Fé I e II são mais do que simples relatórios de análise política. São instrumentos estratégicos que ajudaram a moldar o panorama religioso e ideológico da América Latina nas últimas décadas do século XX e neste início do século XXI. Ao identificarem a Teologia da Libertação como inimiga e defenderem uma reorientação cultural na região, contribuíram diretamente para a ascensão das Igrejas evangélicas como alternativa ideológica e espiritual.

Embora não sejam a única causa desse fenômeno, desempenharam papel decisivo ao alinhar interesses geopolíticos, religiosos e culturais em uma frente comum contra o que era percebido como ameaça do “marxismo teológico”. O resultado foi uma profunda transformação no tecido religioso latino-americano — cujos efeitos continuam a reverberar até hoje.

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus revolucionário” (Vozes), entre outros livros.

Resgatar a confiança: Como o governo Lula pode melhorar sua imagem nas futuras pesquisas

O governo Lula inicia o terceiro ano de mandato enfrentando um desafio central: recuperar a confiança de parcela expressiva da população que permanece cética quanto aos rumos do país. Apesar de avanços em áreas como o controle da inflação e o crescimento do PIB acima das expectativas em 2024, os índices de aprovação pessoal e do governo ainda oscilam em patamares inferiores ao desejado. Para reverter esse quadro e ganhar fôlego político até o fim do mandato, o governo precisa assumir prioridades claras, comunicar melhor seus feitos e fortalecer alianças estratégicas com a sociedade.

Um dos principais gargalos da atual gestão é a comunicação. Apesar de conquistas concretas — como a valorização do salário mínimo, o avanço em obras do PAC e em programas sociais —, parte significativa da população desconhece ou não associa essas medidas ao governo federal.

Lula e sua equipe precisam investir em uma comunicação mais ágil, direta e com linguagem acessível, especialmente nas redes digitais, onde a disputa de narrativas com a direita é feroz. É preciso sair da bolha institucional e conversar com o Brasil real — utilizar rádios regionais, influenciadores populares e lideranças comunitárias para levar a mensagem adiante. Dialogar com os segmentos religiosos, hoje em dia expressivos na formação da opinião pública e na mobilização popular.

Embora os indicadores macroeconômicos estejam melhores, a percepção no bolso do cidadão ainda é de dificuldade. O governo deve concentrar esforços em políticas que impactem diretamente na vida das famílias de renda mais baixa. Isso inclui: acelerar o programa Minha Casa, Minha Vida com foco na faixa 1 (renda mensal até R$ 2,85 mil), beneficiando os mais pobres; crédito acessível a pequenos empreendedores, especialmente informais e MEIs; nova rodada de valorização do salário mínimo e ampliação de programas de qualificação profissional (deveria ser a terceira condicionalidade do Bolsa Família); estímulo à indústria nacional e às compras públicas locais, em especial produtos da agricultura familiar, para geração de empregos em larga escala.

A pauta da segurança pública ainda é um ponto frágil. O aumento da violência urbana e a sensação de insegurança nas grandes cidades pressionam o governo a adotar uma postura mais assertiva. Lula precisa assumir o tema como uma prioridade nacional — sem ceder ao populismo penal, mas também sem se esquivar do debate. Daí a importância de ampliar o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci 2), priorizar a parceria com os Estados e investir em tecnologia para as polícias.

A governabilidade depende da articulação política. Lula deve fortalecer o diálogo com o Congresso, buscando pactos mínimos em temas de interesse popular — como reforma tributária sobre o consumo, desoneração da folha para setores estratégicos e regulamentação das plataformas digitais.

Também é crucial recompor pontes com setores do centro político e com governadores de diversos espectros ideológicos, promovendo uma agenda federativa que contemple obras, investimentos e programas sociais coordenados.

A juventude que em 2022 foi às urnas por esperança, hoje se mostra distante da política tradicional. O governo precisa ampliar as políticas para esse público — educação de qualidade, cultura periférica, esportes juvenis, apoio ao empreendedorismo jovem e protagonismo ambiental.

Programas como o Pé-de-Meia são importantes, mas precisam ser amplamente divulgados. O engajamento dessa geração será decisivo para a consolidação de um legado progressista e sustentável.

Lula voltou a colocar o Brasil no mapa geopolítico, mas essa atuação precisa gerar dividendos concretos internamente. A realização da COP30 em Belém em 2025, por exemplo, é uma oportunidade de ouro para posicionar o Brasil como referência em transição energética, proteção ambiental e inclusão social.

Ampliar os investimentos em energia limpa, proteção da Amazônia com emprego e renda, e cooperação internacional pode fortalecer a imagem do governo, especialmente entre setores urbanos e ambientalistas.

Mais do que disputas retóricas, a grande arma de Lula para reverter a imagem em queda nas pesquisas é entregar resultados concretos para quem mais precisa. Comunicar bem, priorizar o que importa e manter uma escuta ativa com a sociedade são pilares para resgatar confiança e garantir a governabilidade. O tempo ainda está a favor — mas o relógio político-eleitoral começa a acelerar.

Frei Betto é escritor, autor de “Quando fui pai de meu irmão” (Alta Books/70), entre outros livros.

Carta aos Bispos Católicos do Brasil

Eminências: O catolicismo era, no Brasil, a confissão religiosa majoritária na década de 1950, abraçada por 93,5% da população. (IBGE). No censo de 2010, declararam-se católicos 64,6% da população. Os evangélicos, 30%. Em 2030, segundo prognósticos, os católicos serão de 35 a 40% da população e os evangélicos, de 38 a 40%. Enquanto os católicos declinam 1 ponto percentual ao ano, os evangélicos crescem na mesma proporção.

Por que o catolicismo retrocede? São várias as razões. A hierarquia católica cometeu dois pecados capitais nos últimos 60 anos: fragilizou o apoio às Comunidades Eclesiais de Base – o movimento eclesial mais expressivo da história da Igreja no Brasil e de maior capilaridade nacional.

Mas o primeiro pecado foi, após o golpe militar de 1964, levar a Ação Católica à agonia e morte. Onde se encontra, hoje, o laicato participativo, crítico, apostolicamente ativo entre operários, universitários e intelectuais? Aliás, nossas universidades católicas evangelizam? Em muitas delas se formaram notórios políticos corruptos e legitimadores da opressão social.

De fato, o clero sempre temeu o protagonismo dos leigos. Devem ser apenas cordeiros cuja lã serve para ser tosquiada pelos pastores, como declarou o papa Inocêncio III.

Por que, em nossas missas dominicais em paróquias de classe média, os patrões comparecem, mas seus empregados (cozinheiras, faxineiras, porteiros de prédios etc.) vão para a Igreja evangélica? Diz-se que a Igreja Católica fez opção pelos pobres, e os pobres, pelas Igrejas evangélicas…

Aponto algumas causas da redução de nossa grei. Uma delas, com frequência denunciada pelo papa Francisco, é o clericalismo. Vide uma missa dominical. Tudo centrado na figura do sacerdote. Quando muito, um leigo ou leiga lê um dos textos litúrgicos. Os fiéis ignoram uns aos outros. No “abraço da paz” saúdam os vizinhos de banco sem sequer perguntar pelos nomes deles. Na hora da homilia, por vezes suportam a pregação aborrecida de um celebrante que nunca fez curso de oratória, não tem conteúdo (não lê e teve formação medíocre em filosofia e teologia), adota um discurso moralista. Procura se salvar com evocações emotivas porque não sabe como abastecer “as razões de nossa esperança”.

Sei que a maioria dos senhores jamais participou de um culto evangélico. Nosso ecumenismo não ultrapassa os limites de algumas Igrejas protestantes históricas. O que é uma lástima. Os seminaristas não são incentivados a abraçar o diálogo interreligioso e, em geral, têm visão preconceituosa das outras confissões religiosas. O que sabem de nossas religiões indígenas? Alguma vez foram a um terreiro de candomblé ou umbanda? Ou a um centro espírita? A maioria ignora as matrizes da religiosidade brasileira.

Se os senhores bispos fossem a um culto evangélico veriam os motivos do crescimento exponencial desse segmento cristão. Há cultos que duram duas ou três horas sem aborrecer os fiéis, ao contrário de muitas de nossas missas. Sabem por quê? Porque os fiéis têm participação ativa. Dão testemunhos de vida, vídeos atrativos são exibidos, os músicos e cantores aprimoram seus talentos, há escolas bíblicas. Os fiéis se conhecem pelo nome, o aniversário de cada um é comemorado em comunidade, há forte corrente de entreajuda (um dentista ou médico atende irmãos e irmãs). Ali as pessoas não são anônimas; ganham autoestima. Um cuida de arrumar emprego para o outro. Há entre eles forte vínculo afetivo. E a pauta de costumes leva-os a conhecer a prosperidade, pois abandonam os vícios e, assim, aumentam a poupança familiar.

Não me sinto afinado com a teologia da maioria das Igrejas evangélicas, porque enfatizam mais o Antigo que o Novo Testamento; o diabo mais que Deus; o Deus da punição mais que o Deus do amor; o pecado mais que a graça. E muitas Igrejas estão politicamente alinhadas ao conservadorismo, à naturalização da desigualdade social, à exaltação das riquezas. Incutem nos fiéis a “servidão voluntária”. Fazem uma leitura equivocada da Bíblia ao retirar o texto do contexto, como também acontece entre nós, católicos. Porém, conseguem criar forte senso de pertença e comunidade, imprimindo sentido à vida de todos.

Não escrevo aos senhores para suscitar espírito de competição entre Igrejas. Temos muito a aprender com nossos irmãos evangélicos. Escrevo porque me inquieta o retrocesso da Igreja Católica, a perda do profetismo de nossos pastores, o esvaziamento de nossas paróquias, essa nova geração de seminaristas e padres apegada à batina, aos símbolos religiosos, às imagens sacras. Sacerdotes próximos às classes média e rica, e distante dos excluídos e vulneráveis, apegados ao conforto e à acumulação de bens. Escrevo porque sinto que Francisco, como João Batista, é um papa que clama no deserto…

Será que dentro da Igreja Católica ainda há salvação para o Evangelho de Jesus?

Deus nos encoraje e ilumine!

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus rebelde” (Vozes), entre outros livros.

A vida de meu irmão e a morte de Tancredo

Há episódios que marcam definitivamente nossas vidas. No meu caso, meia dúzia deles: duas prisões sob a ditadura militar; o ofício de escrever; a recusa de embolsar 2 milhões de dólares em troca de uma informação que não causaria prejuízo a ninguém; o modo como livrei meu irmão do inferno das drogas; a trágica morte de Tancredo Neves.

Todos esses episódios estão relatados em meu mais recente livro: “Quando fui pai de meu irmão – o desafio é sempre imprimir sentido à existência” (Alta Books/70).

Antônio era o caçula de oito irmãos. Quando nasceu, eu já estava de malas prontas para trocar Belo Horizonte pelo Rio de Janeiro. Aos 12 anos, amigos o iniciaram nas drogas. Aos 16, sofreu grave acidente de moto que comprometeu a parte lógica do seu cérebro. Aos 20, recebi-o em São Paulo para assegurar a nossos pais alguns dias de tranquilidade.

Conviver com uma pessoa adicta é viver em permanente sobressalto. A estadia comigo, programada para durar 10 ou 15 dias, se prolongou por cinco anos. Tornei-me pai do meu irmão. Sofri mais que nos quatro anos de prisão. E amei como jamais fiz, faço ou farei. Cinco anos depois ele retornou “limpo” a Belo Horizonte.

Embora Antônio tenha tido todos os cuidados terapêuticos, aprendi que uma pessoa se torna adicta por carência afetiva. Entra pela porta do desamor e só sai pela do amor. Cuidados médicos, medicamentos, internações periódicas são necessários. Mas é o se sentir amada que a faz emergir da escuridão à claridade.

É muito difícil amar sem imediata reciprocidade. E o adicto suga-nos o afeto antes de poder dar algo em troca. Aliás, todo viciado em drogas é um místico em potencial. Quer plenificar sua subjetividade. A diferença é que ele entra pela porta do absurdo; o místico, pela do Absoluto.

Relações familiares me levaram a acompanhar, em São Paulo, a agonia e morte de Tancredo Neves, presidente eleito pelo Colégio Eleitoral em 1985. A comoção nacional aflorou. O homem que encarnava o advento da democracia após 21 anos de ditadura não podia morrer. Após sete cirurgias, não resistiu. Ali no Incor, chamado por dona Risoleta, orei com a família e dei por encerrada minha missão pastoral. Até porque o SNI me comunicou que não haveria lugar para mim no avião que levaria o corpo e a família a Brasília, Belo Horizonte e São João del-Rei.

Dona Risoleta, dotada de enérgica lucidez ao longo de toda a “via crucis” do marido, obrigou o cerimonial a me credenciar. Acompanhei o cortejo fúnebre em Brasília e Belo Horizonte. A viúva queria que eu pregasse em uma das missas de corpo presente. Os bispos não permitiram.
 
Na capital mineira, ao rezar ao microfone um “Pai Nosso” na sacada do Palácio da Liberdade, contive a multidão que derrubara o portão, esmagara sete pessoas e ferira inúmeras outras. Em São João del-Rei dona Risoleta convenceu o bispo de me dar a palavra na missa assistida pelo presidente Sarney e seus ministros.

A Agência Nacional, que retransmitia a celebração aos demais veículos de comunicação, sabotou a divulgação de minha homilia ao deslocar a imagem do interior da igreja para o belo entardecer no horizonte da cidade.

Convenci dona Risoleta a permitir que a última pessoa da infindável fila no cemitério pranteasse seu marido antes de o caixão descer à cova.

Agora, na data simbólica de 21 de abril, comemoramos 40 anos do fatídico desfecho da vida daquele que, como Tiradentes, simbolizou a insaciável sede de democracia da nação brasileira.

Frei Betto é escritor, assessor de movimentos sociais e educador popular, autor de “Jesus revolucionário” (Vozes), entre outros livros.

Calendário político

Podemos não perceber, mas a política está presente em tudo: na qualidade do nosso café da manhã e do transporte utilizado para ir à escola ou ao trabalho.

Mas nem tudo é política. Um casal em lua de mel não é necessariamente uma questão política. Porém, o local para o qual viajou (ou não) tem a ver com política, que influencia na renda familiar.

A política é uma faca de “dois legumes”, como se diz em Minas. Serve para oprimir ou libertar. É como a religião, que também serve para oprimir ou libertar.

Um dos exemplos mais curiosos de que tudo tem a ver com a política é este: pergunte a um grupo qual é o último mês do ano. Todos responderão: “Dezembro”. Agora indague: “Equivale a qual numeral?” Com certeza a maioria dirá: “Doze”. Errado! Dezembro equivale ao numeral dez. Antes dele, novembro, nove; outubro, oito; setembro, sete. E por que o ano tem doze meses?

Eis a política: na Roma antiga o ano tinha 304 dias e dez meses (martius, aprilis, maius, junius, quintilis, sextilis, september, october, november e december). Mais tarde, foram acrescidos os meses de janus e februarius.Para homenagear os césares, o senado romano mudou os nomes de quintilis para julho, em honra do imperador Júlio César. O imperador Augusto, seu sucessor, não quis ficar atrás e exigiu também um mês em sua homenagem. Sextilis virou agosto, em honra de César Augusto.

Os astrônomos do reino, constrangidos, lembraram ao imperador da alternância de 31/30 nos dias de cada mês. Portanto, o mês de Augusto teria um dia a menos que o de Júlio. “Quero isonomia!”, teria dito o imperador. “Ou amanhã os senhores não terão a cabeça em cima do corpo”. O que fizeram? Arrancaram um dia de fevereiro. Julho e agosto são os únicos meses consecutivos com 31 dias.

Uma pergunta que sempre me fazem: por que a data do Carnaval muda todo ano e sob que critérios? Mudam-se também as datas da Semana Santa, de Corpus Christi e de outras efemérides litúrgicas.

Nosso calendário gregoriano é solar, ou seja, regido pela rotação da Terra em torno da estrela que nos ilumina. O calendário litúrgico é lunar, baseado nas fases da lua. Sua festa central é a Páscoa, sempre comemorada pelos judeus na primeira lua cheia do mês de Nisan. Este mês do calendário judaico corresponde ao período entre 22 de março e 25 de abril. Para nós, que vivemos no hemisfério Sul, o domingo de Páscoa é sempre aquele seguido da primeira lua cheia do outono. Neste ano, 20 de abril. Para evitar confusão com a festa judaica, a Igreja adotou o domingo seguinte ao da festa da Páscoa judaica como o da celebração da ressurreição de Jesus.

O domingo de Carnaval é sempre o sétimo antes da Páscoa cristã. A quinta-feira de Corpus Christi, a primeira depois do domingo da Santíssima Trindade, comemorado 57 dias depois da Páscoa.

O domingo de Páscoa é a data de referência das demais festas litúrgicas chamadas móveis. Há também as imóveis, como o Natal, comemorado invariavelmente a 25 de dezembro, não importa o dia da semana em que cai.

Todos os povos que seguem um calendário anual celebram a chegada do Ano-Novo denominada, entre nós, réveillon, do verbo francês réveiller, que significa “despertar”. Foi o imperador Júlio César que, no ano 46 a.C., decretou o 1º de janeiro como primeiro dia do Ano-Novo. Celebrava-se na data a festa de Jano, deus dos portões, dotado de duas faces, uma virada para frente, outra para trás. Janeiro deriva de Jano.

Os dias da semana, em português, foram nomeados por Martinho de Dume, bispo de Braga, Portugal, no século VI. Ele denominou, em latim, os dias da Semana Santa como aqueles nos quais não se devia trabalhar: feria secunda (segundo dia de feriado ou férias), feria tertia etc. Feria originou a corruptela feira.

O imperador Constantino (280-337), convertido ao Cristianismo, já havia denominado Dies Dominica, “dia do Senhor”, o domingo, primeiro dia da semana. O sétimo dia, sábado, vem do hebreu shabāt, que significa “descanso”.

Outros idiomas latinos conservam os nomes pagãos dos dias, concernentes aos planetas, como é o caso do francês, do italiano e do espanhol. Na língua de Cervantes segunda-feira é lunes, de lua; terça, martes, de Marte etc.

Todas essas convenções e denominações estão calcadas na dança cabrocha da Terra em torno do mestre-sala, o Sol. Nesse bailar, percorre quatro estações: verão, outono, inverno e primavera. E não apenas a Estação Primeira de Mangueira…

Aliás, se a evolução do Universo, surgido há 13,8 bilhões de anos, fosse compactada no calendário gregoriano, o Big-Bang, a explosão primordial, teria ocorrido a 1° de janeiro; nossa galáxia, a Via Láctea, se formado em 1° de maio; nosso sistema solar, em 9 de setembro; o surgimento da Terra, em 14 de setembro; as primeiras manifestações de vida, a 25 de setembro; e o ser humano, nos últimos segundos de 31 de dezembro.

De vez em quando é muito bom dar um passeio pela ciência, tão desprestigiada por essa gente que adora as fake news de Trump.

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.

Trump e Putin se miram no espelho

Donald Trump deve ter sido aquela criança que, ao começar a perder no jogo, agarra a bola e sai de campo, emburrada. Aliás, a cara dele é uma caricatura permanente de emburrado arrogante. Tão pretensioso, deve estar intimamente convicto de que a morte jamais o abaterá.

Ele veio bagunçar o arrumadinho coreto da ordem ocidental. Os países da União Europeia parecem um bando de baratas tontas sem saber para onde correr depois que Trump levantou o tapete. Deu uma banana para a Ucrânia, humilhou Zelensky no salão oval da Casa Branca, suspendeu as ajudas bélicas e financeiras, fragilizou a OTAN e – o mais sintomático – confirmou que é aliado de Putin, hoje o inimigo número 1 da Europa Ocidental.

Finda a cornucópia de Washington, a União Europeia desembolsa, agora, 800 bilhões de euros para produzir armamentos e aumentar a defesa de suas fronteiras. Dinheiro para a morte nunca falta. Para a vida, como erradicar a fome no mundo, nunca há.

Eis a pergunta que vale 1 trilhão de dólares: por que Trump é refém de Putin? As raras críticas feitas por ele ao governante russo sempre foram amenas e, em seguida, contrabalançadas por ponderações elogiosas. Sim, Trump considerou “horrível” (horrible, ele adora este adjetivo) a invasão da Ucrânia. Mas qualificou de “inteligente” a estratégia do russo.

Durante seu primeiro mandato, Trump criticou a construção do gasoduto subaquático Nord Stream 2. Disse que tornaria a Europa mais dependente da energia russa. E impôs sanções à Rússia para tentar bloquear o projeto. Em setembro de 2022, uma operação de sabotagem explodiu o gasoduto. Suspeita-se que tenha sido uma operação da CIA realizada por um ucraniano.

Os EUA sempre se opuseram ao Nord Stream 2 porque querem forçar a Europa a comprar energia “made in USA”. Em 2019, o embaixador estadunidense na Alemanha, Richard Grenell, enviou cartas ameaçadoras para as empresas alemãs envolvidas na construção do gasoduto. Ainda assim, a obra foi concluída em 2021. E, no ano seguinte, destruída.

Com o início da guerra à Ucrânia em fevereiro de 2022, a União Europeia adotou sanções contra a Rússia e Putin reduziu a fornecimento de gás do Nord Stream 1 aos países europeus da OTAN. Em agosto do mesmo ano, interrompeu-o totalmente. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, declarou que ele só seria retomado quando as sanções contra a Rússia forem suspensas. E vale observar que as sanções em nada prejudicam a Rússia. Aliás, o país se fortaleceu nos últimos anos.

É bom não esquecer: Trump esteve três vezes em Moscou, em 1987, para discutir possíveis investimentos em hotéis; em 1996, para um investimento imobiliário que não teve êxito; e em 2013, para promover o concurso Miss Universo, do qual detinha todos os direitos.

Nesta última viagem, Trump se hospedou no Ritz-Carlton Moscou, um dos mais requintados do mundo. (Agora, Carlton Moscou, desde que o grupo Marriott, ao qual pertencia, se retirou da Rússia em julho de 2022, devido à guerra com a Ucrânia). O hotel é famoso não apenas por seu luxo, mas também por abrigar em seus bares as mais belas prostitutas russas, atraídas pelos hóspedes endinheirados.

Também é bom não esquecer: Putin fez sua carreira profissional, primeiro, como agente do serviço de inteligência da KGB ao longo de 16 anos (1975-1991). Ingressou em seguida no FSB, que sucedeu a KGB, da qual se tornou diretor em 1998. Permaneceu no cargo até 1999, quando foi nomeado primeiro-ministro da Rússia. Trump acaba de cancelar o serviço de inteligência dos EUA na Ucrânia, o que torna o país ainda mais vulnerável aos ataques.

Por que Trump é refém de Putin? Segundo a mídia usamericana, relatório vazado da CIA registra que Trump teria praticado “golden showers” com garotas de programa no hotel Ritz-Carlton. Não há comprovação. A revista pornô Penthouse chegou a oferecer 1 milhão de dólares por um suposto vídeo da orgia.

Quem conhece a história da espionagem sabe que as agências do setor utilizam como recursos de cooptação e submissão de fontes duas iscas em especial: dinheiro (corrupção) e sexo (chantagem). Vide os filmes de 007, baseados na obra de Ian Fleming, ex-agente do serviço secreto britânico.

Quando Trump se olha no espelho vê a cara de Putin. E vice-versa. Os dois são autocratas, os dois são imperialistas – vide a anexação de territórios da Ucrânia, de um lado; de outro, as ameaças de anexação do Canadá, Groenlândia e Canal de Panamá. Os dois consideram os migrantes raça subumana.

Trump faz uma verdadeira “limpeza étnica” nos EUA ao promover deportações em massa de imigrantes. A Rússia, em 2013, tinha de 7 a 8 milhões de trabalhadores estrangeiros em seu território. Hoje o número é três vezes menor.

Após Moscou ter sido abalada pelo atentado jihadista à sala de concertos Crocus City Hall, em março de 2024, a Federação Russa fechou suas fronteiros aos migrantes da Ásia Central. Milícias de direita participam com a polícia de incursões “preventivas” em mercados e mesquitas. O Quirguistão e o Tadjiquistão passaram a aconselhar seus cidadãos a não viajarem para a Rússia. Mais de trinta regiões russas proibiram imigrantes de trabalharem como taxistas, comerciários ou educadores. Em agosto passado, Putin assinou um decreto que autoriza a expulsão de estrangeiros em situação irregular sem que haja questionamento na Justiça. E até o próximo 30 de abril todos os estrangeiros deverão fornecer suas informações biométricas ao governo e comprovar que estão empregados e falam russo. (Le Monde Diplomatique, 2/2025).

Com o papa Francisco adoecido e o mundo controlado pelas Big Techs, versão tecnológica de Argos Panoptes, o monstro de cem olhos da mitologia grega, resta-nos buscar, com urgência, uma nova Élpis, a deusa da esperança que restou no fundo da Caixa de Pandora.

Frei Betto é escritor, autor de “Quando fui pai do meu irmão” (Altabooks/70), entre outros livros.

Papas também renunciam

“O papa não adoece até que morra”, diz antigo provérbio romano. João Paulo II, homem midiático, não temeu expor–se enfermo aos olhos do mundo. Bento XVI deu um testemunho de humildade ao admitir as limitações de seu precário estado de saúde e anunciar sua renúncia, em 28 de fevereiro de 2013. Nada impede que Francisco venha a adotar a mesma atitude.

Na história da Igreja, cinco papas renunciaram ao ministério petrino: Bento IX (1º de maio de 1045), Gregório VI (20 de dezembro de 1046), Celestino V (13 de dezembro de 1294), Gregório XII (4 de julho de 1415) e Bento XVI.

Sagrado papa aos 20 anos, em 1032, Bento IX não primava pela ética e muito menos pela moral. Sua vida era um escândalo para a Igreja. O povo romano expulsou-o da cidade em 1044. No ano seguinte, voltou a ocupar o trono de Pedro e, meses depois, renunciou. Retornou ao papado em 1047, do qual foi deposto definitivamente no mesmo ano.

João Graciano, padrinho de Bento IX, pagou considerável quantia de dinheiro para que o afilhado lhe cedesse o lugar. Eleito papa em maio de 1045, adotou o nome de Gregório VI e governou a Igreja até dezembro de 1046, quando o afilhado o derrubou sob acusação de simonia.

Morto Nicolau IV, em 1292, cardeais italianos e franceses fizeram do conclave arena de disputas pelo poder, como bem demonstra o filme “Conclave”, movidos mais por interesses políticos que pelas luzes do Espírito Santo. Após dois anos e três meses de impasse na eleição do novo papa, Pedro Morrone, eremita italiano, de sua caverna nas montanhas enviou carta ao conclave instigando-o a não abusar da paciência divina. 

Os cardeais viram na carta um sinal de Deus e decidiram fazer do monge o novo chefe da Igreja. Pedro Morrone relutou, não queria abandonar sua vida de pobreza e silêncio, mas os prelados o convenceram de que o consenso em torno de seu nome tiraria a Igreja do impasse.

Com o nome de Celestino V, tornou-se papa em agosto de 1294. Menos de quatro meses depois, a politicagem vaticana o levou ao limite de sua resistência. Em consulta a seus eleitores, levantou a pergunta-tabu: pode o papa renunciar?

O colégio cardinalício não se opôs e, numa bula histórica, Morrone justificou-se, alegando deixar o trono de Pedro para salvar sua saúde física e espiritual. A 13 de dezembro do mesmo ano retornou à solidão contemplativa nas montanhas. Vinte anos depois foi canonizado, exaltado como exemplo de santidade. A 19 de maio a Igreja celebra a festa de São Pedro Celestino. 

Também o papa Gregório XII renunciou, no início do século XV – período em que três papas reivindicavam legitimidade – para evitar que o cisma na Igreja se aprofundasse.

Joseph Ratzinger (Bento XVI) era sobretudo um teólogo. Enquanto papa, não deixou de escrever, tanto que lançou uma trilogia sobre Jesus. São raros os papas autores, sem considerarmos os documentos pontifícios, como encíclicas, bulas e alocuções, quase sempre redigidos por assessores. Francisco lançou em fevereiro deste ano sua autobiografia, “Esperança”.

Em geral, intelectuais não se dão bem com funções de poder. As questões administrativas parecem enfadonhas diante de tantos livros por ler e escrever. O político quer administrar; o intelectual, criar. Ratzinger talvez tenha decidido reservar o que lhe restava de tempo de vida para recolher-se à oração e à produção teológica.

Como a internação de Francisco, inicia-se agora, nos bastidores da Igreja, uma sutil campanha eleitoral: a da eleição de seu sucessor. Entre os atuais 252 cardeais da Igreja Católica, 138 têm direito a voto, pois ainda não completaram 80 anos.

Entre os eleitores figuram sete brasileiros: Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo; Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro; Sérgio da Rocha, arcebispo de Salvador; Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus; Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre; Paulo Costa, arcebispo de Brasília; e João Braz Avis, ex-arcebispo de Brasília, atualmente em Roma como cardeal emérito da Cúria Romana. 

Quem será o sucessor do papa Francisco? Os 17 cardeais dos EUA com certeza haverão de tentar a eleição de um deles. Os italianos, ainda inconformados com a perda da sucessão contínua de tantos papas oriundos de seu colégio de cardeais, também se empenharão em recuperar o trono de Pedro. Mas é possível que muitos prelados queiram que, pela primeira vez nos tempos modernos, seja eleito um papa africano ou asiático. No momento não há nenhum cardeal latino-americano “papabile”, ou seja, capaz de se tornar papa. 

O próximo conclave será tenso, já que a maioria do clero católico, formado ao longo dos 34 anos dos pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI, se sente incomodada com as medidas e as encíclicas progressistas do papa Francisco. Assim como a política mundial, a Igreja também está em retrocesso.

Tempos difíceis e desafiadores configuram o horizonte daqueles que, como eu, se empenham na conquista de um mundo menos desigual e menos devastador da natureza. Mas é preciso guardar o pessimismo para dias melhores. 

Frei Betto é escritor, autor de “Jesus revolucionário – contradição de classes no evangelho de Lucas” (Vozes), entre outros livros.

País dos canecos

O Carnaval foi, em tempos idos, uma festa religiosa. Como revela sua etimologia, era (e ainda é, em outro sentido) o “festival da carne”. No tríduo que antecede a Quaresma, os cristãos fartavam-se de carnes. Após a Quarta-Feira de Cinzas, passavam 40 dias em abstinência, não só de bifes e chouriços, mas também de relações sexuais.

Com o tempo, o Carnaval transmutou-se em folguedo profano. Festa em que se brinca invertendo papéis pessoais e sociais. O rosto coberto com a máscara do diabo ou do político, o homem vestido de mulher e a mulher em trajes masculinos, o rico à rua em farrapos, o pobre em trajes imperiais.

Outrora, uma festa sadia, na qual todos participavam. Em cada cidade do Brasil, blocos, cordões, bailes, desfiles e carros alegóricos. Em avenidas e praças, adultos e crianças mesclavam-se na alegria. Ninguém saía à rua atento à bolsa ou à carteira. Pulava-se Carnaval sem drogas e violências, embora houvesse quem exagerasse na bebida e cheirasse lança-perfume.

Mudou o Brasil, mudamos nós. O Carnaval adquiriu, então, o caráter de folia – do francês “folie”, loucura. A sobrevivência difícil reduziu o nosso espaço de lazer e o império da TV, o nosso tempo. A festa de Momo restou como momento de catarse. Alguns buscam o prazer imediato no sexo e na droga; outros, a transgressão de valores na nudez e na irreverência agressivas. Nos desfiles das escolas de samba, títulos, promoções e prêmios.

Hoje, o Carnaval é um feriadão. Escravizados pelos ícones eletrônicos, muitos deixam de participar para ficar como meros (tele)espectadores. Despem a fantasia do corpo para confiná-la na mente. Eis a globalização do voyeurismo. Refestelados na poltrona, veem a passista volatilizar-se no carrossel de imagens. Ficam reduzidos à condição de fregueses de um açougue virtual, cujas postas são pedaços de gente salpicados de purpurina e confete.

Os principais palcos são os sambódromos do Rio e de São Paulo, os trios elétricos de Salvador, os blocos de Olinda. Muitas vezes também ali o dinheiro supera o ronco da cuíca, os bem-nascidos tomam o lugar da gente do morro, enredos e passistas são obscurecidos pelo nu explícito. Os destaques das escolas, criadas em favelas e vilas, ficam para as estrelas globais e o narcisismo daqueles que, convencidos de sua esbeltez física ou fissurados pela fama, exibem-se nas passarelas de samba.

Sobra para alguns a tristeza de saber que a única alegria é dar ibope a quem desfila para exaltar a vitória de todas as cervejas. Assim, são condicionados a acreditar que a felicidade está ao alcance da mão, brilha como ouro e refresca como neve nesse calor tropical: no copo, o líquido dourado coroado pela espuma branca.

Também pudera, cerveja nas mãos, bola nos pés rumo à taça do próximo campeonato de futebol e o governo esperando que os investidores estrangeiros nos tragam mais dólares. Não merecemos o título de país dos canecos?

Frei Betto é escritor, autor de “Quando fui pai do meu irmão” (Alta Books -70), entre outros livros.