Coletivo Terceira Margem entrevista Frei Betto

Por Evandro Affonso Ferreira

Publicado no “Coletivo Terceira Margem”

Frade da Ordem Dominicana. Teólogo, escritor e jornalista. Mineiro. Militante dos movimentos pastorais e sociais. Coordenou a Mobilização Social do Programa Fome Zero. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Escreveu dezenas de livros, entre eles: Batismo de Sangue (Prêmio Jabuti, Juca Pato). Ser humano especial: primeira grandeza.

Evandro Affonso Ferreira – E as certezas? Vida toda ultrapassamos, se tanto, o pórtico do talvez?

Frei Betto — Talvez. Ou nem isso. Como disse seu Antônio, de 62 anos, na formatura do curso de alfabetização, sem nunca ter ouvido falar de Sócrates, “agora sei quanta coisa não sei”. Por isso a fé me é tão útil, porque me inserta em uma esfera literalmente fabulosa, que me imprime o que mais importa nesta vida – um sentido.

Evandro — É difícil adquirir o hábito de deixar logo de manhãzinha o furor no fundo da gaveta?

Frei Betto — Sim, sou matutino. Jamais escrevo após desaparecer a luz do sol. Acordo muito cedo e, como Pandora, arranco a tampa da jarra e volatilizo todos os males. Medito. A meditação me salvou na prisão e, agora, na quarentena (cf. meu “Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos” [Rocco, 2020]). Resta a esperança e, como ensinou Santo Agostinho, com suas duas filhas – a indignação, para me rebelar contra toda essa desordem estabelecida, e a coragem, para lutar pela mudança.

Evandro — E quando você se vê num compartimento de reduzidas proporções, cujo nome é pressentimento?

Frei Betto — Melhor, porque me fornece uma direção. A vida é um jogo permanente de opções e, portanto, também o reverso, renúncias. Se o compartimento é muito reduzido, mergulho para dentro de mim mesmo. E me desafogo…

Evandro – Costumo dizer que sou muito afetivo, pegajoso, motivo pelo qual gostaria que Deus fosse palpável. Afinal, procurar Deus é querer apalpar plenitudes?

Frei Betto — Não plenitudes, mas platitudes, como nesta minha

PROFISSÃO DE FÉ

Frei Betto

Frei Betto
Frei Betto

E se em vez de canto gregoriano
Eu disser pelo pubiano,
Aqui está Deus?

E se em vez de sacramento
Eu disser excremento,
Aqui está Deus?

E se em vez de teodiceia
Eu disser diarreia,
Aqui está Deus?

E se em vez de adorar
Eu disser urinar,
Aqui está Deus?

E se em vez de salvação
Eu disser salivação,
Aqui está Deus?

E se em vez de cruz
Eu disser pus,
Aqui está Deus?

E se em vez de celebrar
Eu disser arrotar,
Aqui está Deus?

E se em vez de Vésperas
Eu disser vísceras,
Aqui está Deus?

E se em vez de batina
Eu disser vagina,
Aqui está Deus?

E se em vez de meditação
Eu disser menstruação,
Aqui está Deus?

E se em vez de prelado
Eu disser pelado,
Aqui está Deus?

E se em vez de perdoar
Eu disser protestar
Aqui está Deus?

E se em vez de procissão
Eu disser revolução,
Aqui está Deus?

E se em vez de sermão
Eu disser tesão,
Aqui está Deus?

E se em vez de Pio
Eu disser cio,
Aqui está Deus?

E se em vez de consagrar
Eu disser lupanar,
Aqui está Deus?

E se em vez de virtude da fé
Eu disser bicho-do-pé,
Aqui está Deus?

Está.
(Deus só nega
O desamor,
E jamais o que criou)

Evandro — E quando o afago se descamba para a obliquidade? Como consertar as empenas do telhado do fraterno?

Frei Betto — Inevitável, porque tudo que é humano é oblíquo. O Universo é feito de curvaturas. E uma palavra significa tanta coisa, como os gestos, que inclusive exige dicionário… O fraterno, para não empenar, tem que apoiar o telhado nas estacas da tolerância e do perdão. Fora disso é se embebedar de amargura no bar da solidão.

Evandro – É possível rastrear lampejos?

Frei Betto — São eles que iluminam nossos caminhos. Nascer é muito solidário, mas viver, como morrer, é muito solitário. São os lampejos que vagaluminam nossos caminhos. Por vezes, incertos. Ainda assim, prefiro não rastreá-los.

Evandro – E quando seus passos não se adaptam de jeito nenhum às probabilidades peregrinas?

Frei Betto — Nem me atrevo ao risco assumido por Raskolnikov, nem cedo do desespero de Madame Bovary. E se há uma autodefinição para os meus passos é esta: “Peregrino da vida, viajo a bordo de um paradoxo”.

Evandro – É possível se precaver tempo todo contra as próprias contradições?

Frei Betto — Jamais, porque muitas delas são sutis ou se apresentam revestidas de celofane (que vocábulo admirável!). Como escreve Guimarães Rosa em “Tutameia”, “Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. (…) De sofre e amar, a gente não se desfaz”.

Evandro – E quando as mágoas se embrenham nas suas entranhas? Como se livrar dos urros do rancor?

Frei Betto — Jamais odeio ou guardo mágoa, rancor. Não por virtude, e sim por comodismo. Aprendi na prisão: o ódio é um veneno que você toma esperando que o outro morra. Já disseram que a frase é do Shakespeare. Pesquisei todo e não encontrei. Então, me apropriei.

Evandro – Você já ensinou seu próprio olhar a refutar angústias e todos os seus apetrechos melancólicos?

Frei Betto — Mineiro como você, procuro avistar além das montanhas. Não me resta tempo para a melancolia. E minha única angústia é a saudade que sinto do futuro espelhado em minhas utopias.

Como escreve Frei Betto

Publicado no site “Como eu escrevo”, por José Nunes

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?

Em geral, não tenho rotina, pois em tempos normais viajo muito. Porém, a pandemia me exige isolamento social e, assim, a semana de trabalho é mais previsível. Escrevo pela manhã e à tarde, jamais à noite, quando as musas vão dormir…

Sim, trabalho em vários projetos literários simultaneamente, mas sempre priorizo um deles.

Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?

Por vezes o novo projeto me “persegue” por muitos anos. Sinto-me “grávido” dele. Até que decido redigi-lo. Deixo fluir. Faço esquemas simples, muita pesquisa, e redijo manualmente antes de passar ao computador. Exceto artigos e conferências, trabalho sem pressa ou pressão. O mais difícil é encontrar o “sotaque” do texto. A “voz” original.

Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?

Sou muito disciplinado. Escrevo todos os dias, preferencialmente pela manhã. Levanto muito cedo. Quando me canso de um projeto literário, passo a outro, pois trabalho em vários ao mesmo tempo. Quando me sinto árido, sem inspiração, leio clássicos como Machado de Assis, Dostoievski, Cervantes etc.

Para criar ficção, necessito de silêncio e solidão. Artigos e ensaios escrevo em aeroporto ou até em sala de espera de dentista…

Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?

Deixo de lado o projeto literário A e passo ao B ou paro de escrever e vou ler, de preferência um clássico da literatura, o que me reanima.

Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?

O que me demandou mais tempo e pesquisa foi o romance MINAS DO OURO (Rocco), no qual narro 500 anos da história de Minas Gerais. Levei 12 anos para terminá-lo e consultei mais de 100 obras.

Entre meus 69 livros publicados, destacam-se uma meia dúzia que me dão muita alegria, inclusive por nunca saírem de catálogo: CARTAS DE PRISÃO (Companhia das Letras), meu primeiro livro, cujas cartas não foram escritas para serem publicadas; BATISMO DE SANGUE (Rocco), que me exigiu muita pesquisa para desmontar a versão policial sobre a morte de Carlos Marighella, e também ousadia por editá-lo ainda em plena ditadura. Nele descrevo a participação dos frades dominicanos na luta guerrilheira e as torturas e a morte de frei Tito de Alencar Lima; A OBRA DO ARTISTA – UMA VISÃO HOLÍSTICA DO UNIVERSO (José Olympio), fruto de seis anos de pesquisas e que me obrigou a estudar física, química e biologia; FIDEL E A RELIGIÃO (Companhia das Letras), um longa entrevista na qual, pela primeira vez, um líder comunista no poder, Fidel Castro, fala positivamente da religião; o romance policial HOTEL BRASIL – O MISTÉRIO DAS CABEÇAS DEGOLADAS (Rocco), um desafio literário, pois em narrativa policial há que combinar a criação ficcional com a tensão do mistério; UM HOMEM CHAMADO JESUS (Rocco), os quatro evangelhos em forma de romance; e o romance ALDEIA DO SILÊNCIO (Rocco), cujo personagem principal jamais profere uma única palavra.

Veja o conjunto de minhas obras: www.freibetto.org/livros

Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?

Os temas é que me escolhem. Súbito, sou “possuído” pelo tema e, por vezes, levo muitos anos até iniciar o processo de escrita.

Não, jamais imagino um leitor ideal. Aprendi com meu primeiro editor, Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, que o leitor ideal sou eu, ou seja, somente entregar os originais ao editor após sentir esgotado todo o meu potencial criativo e estar convencido de que produzi uma boa obra.

Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?

Jamais entrego os originais ao editor sem antes solicitar a meia dúzia de pessoas que leiam. Nunca são as mesmas pessoas. No caso de um ensaio, como A OBRA DO ARTISTA, pedi a vários cientistas e filósofos uma prévia leitura crítica. No caso de um romance, encaminho a quem é afeito a esse gênero literário e me inspira confiança de que fará uma leitura crítica.

Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?

Sim, quando aos 8 anos meu ego bateu no teto da sala de aula ao ouvir a professora Dercy Passos, minha alfabetizadora no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em Belo Horizonte, dizer à toda classe: “Vocês deveriam fazer como o Carlos Alberto. Ele mesmo escreve as composições dele. Não pede aos pais.” E aos 11 anos ouvi de meu professor de Português no colégio marista, irmão José Henriques Pereira: “Você só não será escritor se não quiser”. Hoje, de tanto escrever, produzi até o livro OFÍCIO DE ESCREVER (Rocco), no qual narro meu trabalho literário e dou dicas a escritores.

Desde criança escrevo muito. Mas supunha que produzir um livro estava muito além de minhas possibilidades e talento. Por isso fui cursar Jornalismo… Foram os generais da ditadura que me promoveram de escritor a autor. As cartas que escrevi em quatro anos de cárcere (1969-1973) foram reunidas aqui fora por Maria Valéria Rezende, hoje uma romancista consagrada, e editadas, primeiro, na Europa.

Gostaria de ter ouvido: “Você tem talento para ser romancista”.

Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?

Cada novo projeto literário é, para mim, começar do zero e enfrentar muitas dificuldades. Mas não tenho pressa, não comento com ninguém o que estou escrevendo, jamais aceito adiantamento de editor e não marco prazo.

Achar o “sotaque” de uma obra de ficção é sempre um enorme desafio para mim. Sei que meu estilo, por razões óbvias, tem muito de jornalístico, pois estou neste ramo há mais de 50 anos. Felizmente tenho conseguido um tom mais poético em algumas obras, como A ARTE DE SEMEAR ESTRELAS (Rocco) e MINHA AVÓ E SEUS MISTÉRIOS (Rocco).

Sou muito influenciado por Machado de Assis, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Marguerite Yourcenar, Dostoievski, Camus, entre outros.

Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?

Atualmente, por razões óbvias, o meu mais recente, o DIÁRIO DE QUARENTENA – 90 DIAS EM FRAGMENTOS EVOCATIVOS (Rocco), publicado em fins de 2020.

Entrevista sobre agricultura familiar – direitos humanos

Por Sara Campos

Publicado no site Terra Madre Brasil

Frei Betto
Frei Betto

“Não basta defender os Direitos Humanos em palavras e textos. É preciso retornar às bases populares”, aponta Frei Betto sobre a militância da agricultura familiar.

Um dos grandes símbolos de resistência durante a Ditadura Militar na Igreja Católica, Frei Betto conta com uma trajetória marcada pela defesa dos Direitos Humanos no país. Autor de 69 livros editados no Brasil e no exterior, foi premiado com o Jabuti de literatura pelas obras Batismo de Sangue (1982) e Típicos Tipos – perfis literários (2005). O escritor, jornalista e religioso esteve presente no Terra Madre Brasil 2020, na programação Diálogos do Terra Madre Brasil – Outros Caminhos Possíveis, junto com o músico e pesquisador de cultura afrobrasileira Tiganá Santana. O diálogo tinha previsto a participação de Jerá Guarani, impossibilitada pela dificuldade de conexão à internet.

Sara Campos: Poderia comentar o momento mais impactante durante a conversa que contou com sua participação no Terra Madre Brasil?

Frei Betto: Gostei de toda a conversa. Considero que toda ela foi impactante.

Sara Campos: O senhor possui uma larga experiência como defensor dos Direitos Humanos. No contexto político atual acredita que a militância desta pauta precisa passar por mais transformações?

Frei Betto: Sim, não basta defender os Direitos Humanos em palavras e textos. É preciso retornar às bases populares e promover intensa atividade de formação em Direitos Humanos junto a lideranças de movimentos populares e pastorais, sindicatos e associações, enfim, de todos os setores organizados no universo da periferia e da zona rural, onde vivem os marginalizados e excluídos.

Sara Campos: De que forma a agricultura familiar pode contribuir para a garantia dos Direitos Humanos nas áreas rurais do país?

Frei Betto: A agricultura familiar assegura 70% dos alimentos que nos chegam à mesa. No entanto, o governo concede muito mais recursos ao agronegócio, que exporta o que produz, goza de isenções tributárias absurdas (como a lei Kandir) e representa apenas 0,27% do imposto recolhido no país. A valorização da agricultura familiar é a solução para evitar o aumento da miséria no campo e nos livrar do império das gigantes manipuladoras do mercado alimentício, como Monsanto, Basf e outras produtoras de transgênicos. Além disso, é a agricultura familiar que conserva o saber agrícola ancestral, que nos salva do excesso de agrotóxicos e, portanto, de tantas enfermidades daí decorrentes.

Sara Campos: Seu nome esteve entre os grandes nomes do Programa Fome Zero, do governo Lula. Acredita que a sociedade civil pode contribuir com esse legado em ações que não envolvam o Governo Federal?

Frei Betto: Sim, como faz o Slow Food ao valorizar as produções artesanais e a agricultura familiar. Bom exemplo disso são os assentamentos do MST, baseados na agricultura orgânica e no sistema produtivo de partilha.

Não é Pandemia, é Sindemia

É possível erradicar a pandemia de Covid-19 e preservar o capitalismo? A resposta à pergunta foi dada em setembro de 2020, na prestigiosa revista científica “The Lancet”, por Richard Horton, professor da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e da Universidade de Oslo. Em artigo intitulado “Não é uma pandemia”, longe de se posicionar ao lado dos negacionistas, Horton afirma que ocorre mais do que uma pandemia, há uma sindemia, conceito forjado em 1990 pelo epidemiologista Merrill Singer.

Sindemia significa que a doença infecciosa não pode ser encarada isoladamente. Ela se entrelaça com fatores sociais, políticos e econômicos, como desigualdade social, distribuição de riqueza, acesso a bens essenciais como moradia e saneamento.

O problema, portanto, não é apenas a Covid-19. É o capitalismo sindêmico que, em tudo, prioriza a perversa lógica da acumulação privada da riqueza. Temos visto isso no Brasil, tanto nas propostas que, com frequência, aparecem na grande mídia, de privatização do SUS disfarçada de parceria público-privada, quanto na corrida empreendida pela iniciativa privada para importar vacinas que estariam ao alcance somente de quem possui recursos para frequentar hospitais e clínicas particulares.

Os ricos podem pagar pela vacina e, assim, furar a fila dos que merecem prioridade, como profissionais da saúde e idosos. Mas investirão também na imunização de seus motoristas, faxineiras, cozinheiras e cuidadores de piscinas?

É sabido que endemias, como a gripe aviária e a SARS (Síndrome respiratória aguda grave), tiveram origem na criação intensiva de animais em cativeiro e destinados ao consumo humano, e nos processamentos da indústria alimentícia.

No livro “Grandes granjas, grandes gripes”, Rob Wallace, epidemiologista especialista em agroecologia, descreve como são processados os animais consumidos por humanos e como isso facilita o surgimento de novas modalidades de vírus. O capitalismo transformou a natureza em laboratório, onde são aplicados todo tipo de procedimentos para forçar o aumento da produção e do monopólio sobre os bens naturais, como é o caso dos transgênicos e das sementes “suicidas”, aquelas que o agricultor não consegue reproduzir e se vê obrigado a adquiri-las das gigantes dos venenos agrícolas, como a Monsanto.

Santiago Alba Rico, filósofo espanhol, no artigo “Capitalismo pandêmico” ressalta que, hoje em dia, há mais mortes causadas por infecções hospitalares que gripes, apesar de todos os protocolos higiênicos adotados. Se ocorre em hospitais, diz ele, imagina nas granjas! O que esperar de animais submetidos a confinamento, iluminação permanente, coquetéis de antibióticos e rações químicas? Wallace afirma: “Ao tornar a natureza capitalista, o capitalismo passa a ser considerado algo natural”.

À debilidade de nossas defesas imunológicas frente às novas ondas virais, acresce-se o apartheid produzido pela desigualdade social. Os “laboratórios naturais” de granjas, currais e frigoríficos geram vírus que infectam sobretudo aqueles que, por razões sociais e etárias, possuem menos defesas naturais: os pobres e idosos. Como diz Rico, “os vírus passam de animais maltratados a humanos maltratados, numa sinergia potencialmente apocalíptica”.

Desde que a OMS declarou o caráter pandêmico da Covi-19, em março de 2020, diferentes países adotaram diferentes maneiras de tentar deter o seu avanço. A China investiu em controle social e tecnológico. A União Europeia adotou medidas sanitárias combinadas com restrições que reduziram a mobilidade e o consumo. EUA e Brasil decidiram priorizar a economia em detrimento de vidas humanas.

Eis um falso dilema: salvar vidas ou a economia? A pergunta embute a odiosa discriminação de classe social, já que só os privilegiados podem se dar ao luxo de ficar confinados em casa e, ao mesmo tempo, trabalhar via online e consumir graças às entregas em domicílio. A questão encobre a sentença de morte aos mais pobres, já que o desconfinamento será inevitavelmente praticado por quem só sobrevive se sair à rua e utilizar transporte coletivo.

A lógica capitalista reforça a sindemia ao aplicar a moderna separação entre Estado e religiões à suposta separação entre economia e política (daí a ênfase na autonomia dos bancos centrais). Como se uma esfera pudesse se distanciar minimamente da outra. E outro dualismo, introduzido pelos negacionistas, é ignorar a palavra da ciência. Isso favorece a relativização das medidas restritivas recomendadas pelos cientistas.

Mais uma vez o capitalismo fala mais alto, já que ignorar a ciência permite não destinar recursos públicos a auxílios emergenciais, hospitais de campanha, importação de insumos sanitários e vacinas etc.

Somado à descredibilidade da política, esse negacionismo favorece as aglomerações, em especial a indiferença dos jovens frente à ameaça do vírus. Para eles tudo se explica por alguma teoria conspiratória, como o “comunavírus” denunciado pelo chanceler brasileiro Ernesto Araújo.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor de “Diário de Quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos” (Rocco).

Diálogo virótico

Conto inserido na coletânea “20 contos sobre a pandemia de 2020”, por Rogério Faria Tavares, Belo Horizonte, Autêntica, 2020.

I

E agora?

Agora o quê, companheiro?

Estamos fritos. Esse povo conseguiu deter o nosso avanço em pouco tempo.

Ora, Corona, você sabe como os chineses são disciplinados. Funcionam como um exército. Quem libertou um país deste tamanho do colonialismo euronipônico, haveria de nos enfrentar com agilidade. E ainda mais agora, que contam com avançadas tecnologias que permitiram detectar com rapidez cada pessoa que conseguimos infectar.

Felizmente, caro Covid, logramos ultrapassar a muralha da China. Bem que você teve a brilhante ideia de nos introduzir nas equipes de resgate de estrangeiros que pousaram em Wuhan para levar de volta americanos, franceses e ingleses.

Mal sabiam eles que, ao penetrarmos na célula humana, em menos de vinte e quatro horas nos reproduzimos em cem mil cópias! Os humanos são a nossa salvação, Corona. Fora deles nosso prazo de validade é muito curto.

Sim, Covid. Segundo nosso Manual de Sobrevivência, podemos ter brevíssima vida útil em superfícies plásticas e metálicas. Mas fora da célula não temos salvação.

Nossa saída, agora, é emigrar. Vamos acertar o seguinte: eu viajo pelo mundo e você fica aqui monitorando, combinado?

Combinado, Corona.

II

Olá, Covid, como vão as coisas aí na Itália?

Maravilhosas! Giuseppe Sala, prefeito de Milão, declarou que não representamos nenhuma ameaça. Em poucos dias, nossos replicantes já fizeram um enorme estrago na Lombardia. São centenas de mortos a cada vinte e quatro horas e milhares de infectados.

Parabéns, Covid! E as outras regiões do país?

Tomaram precauções. A partir da experiência dos chineses, adotaram medidas preventivas rigorosas, o que dificulta a nossa disseminação. Todo mundo fica em casa, as ruas estão vazias e o comércio fechado. Todos usam máscaras e lavam as mãos diversas vezes ao dia.

Não é uma boa notícia, confesso. Embora sejamos resistentes aos mais potentes antibióticos, descobriram o nosso calcanhar de Aquiles – o sabão. Impossível suportar uma bolha de sabão. Estoura a nossa pele e nos leva imediatamente a óbito.

As máscaras, Corona, retêm as gotículas que nos transportam. Felizmente encontro aqui gente que não faz o uso correto delas e a todo o momento leva as mãos ao rosto.

Esses são os nossos aliados, Covid, considerando que temos apenas três portas de entrada no corpo humano – olhos, narinas e boca. Quanto mais colocarem as mãos no rosto, mais nos liberam o trânsito.

Avançamos também no Reino Unido, cujo primeiro-ministro andou nos desdenhando. Então, decidi infectá-lo. Foi parar num hospital público, onde esteve aos cuidados de uma enfermeira filipina e um enfermeiro português. Logo ele, o homem do Brexit, que defendia a privatização do sistema de saúde e a expulsão de imigrantes e refugiados do país!

Bem feito, amigo! Assim ele abaixa aquele topete despenteado. Quais seus planos agora?

Viajar a dois países cujos presidentes são nossos aliados – Estados Unidos e Brasil.

Excelente ideia, companheiro! Vá em frente!

III

Aqui nos Estados Unidos, caro Corona, nosso avanço colhe o maior sucesso! Comecei por Nova York, a fim de dar uma rasteira na petulância da cidade. Ela se julga o umbigo do mundo.

Então encontrou condições favoráveis?

Muito. O presidente Trump me deu o green card no mesmo dia em que cheguei. Favoreceu-nos muito ao minimizar o nosso potencial de letalidade. Pelo jeito, aqui teremos mais êxito. Milhares e milhares de mortos! Diante do desespero da população, Trump sugeriu que os infectados se curassem com injeções de desinfetante. No primeiro dia, após o anúncio, apenas em Nova York morreram trinta pessoas que deram ouvidos à Casa Branca.

E o Brasil?

Também o presidente preparou um terreno muito propício à nossa expansão. Declarou que o nosso efeito na saúde humana não passa de uma “gripezinha”, e todo fim de semana ele dá o exemplo de que não se deve guardar quarentena. Assim, circula pelas ruas sem máscara, põe as mãos no rosto, cumprimenta e abraça as pessoas. Um grande aliado!

Tive notícias aqui, Covid, de que o SARS e o MERS, gerações viróticas que nos antecederam, estão com muita inveja de nosso sucesso. Não conseguiram se disseminar tanto como nós e foram logo contidos por eficazes vacinas.

Vai ser difícil os humanos nos deterem, Corona. Os laboratórios atuam na lógica capitalista, de acirrada concorrência. Os da Alemanha não compartilham suas pesquisas com os dos Estados Unidos e nem os deste país com os da França. É a nossa sorte. Houvesse cooperação entre eles, uma vacina já teria sido criada para nos exterminar.

Que belo estrago causamos, amigo! O sistema capitalista ficou de joelhos. Agora as Bolsas de Valores deveriam ser chamadas de Bolsas de Desvalorização, tão profunda foi a queda do valor das ações. Com a redução dos transportes terrestres, aéreos e marítimos em todo o planeta, o preço do barril de petróleo despencou e as empresas petroleiras já não dispõem de tanques para estocar combustível. O desemprego aumentou em todo o mundo. Nos Estados Unidos subiu, em duas semanas, de 16 milhões de desocupados para mais de 35 milhões. O rombo na economia global será maior do que o causado pela crise de 1929, a grande depressão.

Quem manda essa gente não investir em sistema público de saúde! Transformaram a medicina em mercadoria e hastearam, como panaceia para todos os males, a bandeira da privatização. Resultado: falta o básico nos hospitais, como pessoal qualificado, respiradores, equipamentos de proteção individual, e até álcool em gel, essa gelatina que nos faz escorregar para o corredor da morte.

Não sou ingênuo, Covid. Sei que um dia seremos contidos por uma vacina. O que me consola é a certeza de que teremos descendentes, assim como somos o nono galho de nossa árvore genealógica viral.

Por que diz isso com segurança, Corona?

Porque os humanos continuarão a criar condições para novos coronavírus enquanto devastarem o planeta, alterarem seu equilíbrio ambiental e aumentarem o aquecimento global. Apesar da rasteira que levaram agora com a nossa ofensiva global, os humanos voltarão a ser indiferentes à desigualdade social, e bilhões deles não terão como sobreviver senão em locais desprovidos de saneamento básico e, portanto, propícios ao surgimento de nossos descendentes.

Frei Betto é frade dominicano, jornalista e escritor, autor do romance sobre a história de Minas Gerais, Minas de Ouro (Rocco).